O roteiro

Estilo e formato de escrita do roteiro.

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
9 min readMar 24, 2020

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Photo by Luca Onniboni on Unsplash

É comum um leitor de projetos experiente, ler a sinopse e depois pular todos os outros itens de um projeto e ir direto à leitura do roteiro. Ou o roteiro fica de pé sozinho, apoiado na sua dramaturgia e em um texto correto e fluente, ou é descartado imediatamente.

Os comentários que seguem não dizem respeito à dramaturgia, mas sim ao “texto correto e fluente”, ou seja, ao estilo de escrita. Um roteiro existe antes de mais nada para ser avaliado, seja por um produtor, uma comissão de seleção ou um diretor. Só num segundo momento é que passa a orientar o trabalho da equipe na realização do produto audiovisual. Ou seja, de nada adianta um roteiro genial cuja leitura é difícil, porque provavelmente ele será descartado. Esta dimensão do roteiro é muito cruel, porque o leitor profissional é pouco tolerante. Por necessidade do ofício, está sempre atrasado em suas leituras e tem pouco paciência.

Todo leitor de roteiros tem uma pilha de outros roteiros ao lado, sobretudo se for uma comissão de seleção. Se ele chegar na página 20–30 do roteiro e não tiver entendido a que veio o filme… ele vai deixar de lado seu roteiro e pegar o próximo da pilha. É duro isso, mas ele não tem a obrigação de ler todo o seu projeto e nem mesmo de se esforçar para entender o que você quer dizer. Um roteiro que tem um começo ruim é descartado de cara.

O roteiro é, num primeiro momento, uma peça promocional do projeto. Trata-se de vender uma idéia. Portanto, é um meio e não deve prejudicar o objetivo a ser alcançado, ao contrário, ele deve ser esforçar de todos os modos para garantir a realização do filme. O projeto não deve dar nenhum pretexto para o leitor ficar impaciente e de mau humor.

Por isso, a correção gramatical é obrigatória, assim como seguir as regras de formatação. A primeira avaliação vai ser visual. Se o roteiro não tiver a cara padrão já se sabe que é um amador, estudante ou diletante. É claro que se o roteiro for assinado por Jean-Claude Carrière ele não vai se incomodar nem um pouco com isso. Mas se você está começando uma carreira de roteirista é melhor não se prejudicar na apresentação.

Nos EUA, inclusive o método de encadernação é padronizado. Parece bobagem, mas quem já teve que lidar com pilhas de roteiros sabe o quanto a espiral atrapalha.

Uma razão prática importante é que esse formato garante, em princípio, que uma pagina de roteiro equivale a um minuto de filme. Não é uma verdade absoluta, mas é o melhor que temos. Para quem se interessa por esse problema, vale dar uma lida nesse texto excelente do Stephen Follows.

Hoje em dia não há porque apresentar um roteiro fora do formato padrão. Existem muitos programas de computador, inclusive gratuitos, que facilitam o trabalho.

Sempre reescrever. É importante manter uma ortografia correta e formatar adequadamente os trabalhos. Mas é na revisão que um texto ganha forma. Alguém já disse que escrever é reescrever.

São inúmeros os manuais de formatação, mas o melhor a meu ver é o de Trottier (2005).

Aí vão os meus toques:

Ação

A descrição da ação equivale às rubricas das peças teatrais.

Ela sempre precede qualquer diálogo, afinal, vemos uma cena antes de ouvir os diálogos.

Tempo verbal

Evitar os gerúndios. Roteiros são escritos no presente. Ao invés de

João está beijando Maria quando vê Pedro abrindo a porta.

É melhor

João beija Maria e vê Pedro abrir a porta.

Descrições sucintas

Cuidado com descrições excessivamente detalhadas.

João vira sua cabeça à esquerda e olha num ângulo de 45 graus a janela. Sua perna direita está apoiada num banquinho de 30 cm de altura e tem nas mãos uma revista Cruzeiro de 1960 com a Norma Benguel na capa. Uma pomba entra pela janela. João descreve um movimento circular com a cabeça, enquanto seu pé sai do banquinho e se apóia no chão para impulsionar sua mão que, num movimento circular e paralelo ao chão acerta a pomba embaixo de pescoço. A pomba é arremesada contra a parede e João cai no chão com o ombro direito sobre sua cabeça. João morre.

Ou seja. cuidado com direita, esquerda, embaixo, em cima, ao lado, etc. É difícil de visualizar. Outro exemplo:

Rosa é uma mulher na casa dos 30 anos. Está produzida, porém visivelmente desconfortável com os saltos altos. Ela olha para o salão, seu olhar para na mesa bem ao centro, onde se encontra Alberto. Ela sorri e respira fundo. Aproxima-se da mesa e pára próxima ao assento livre.

Facilmente pode ser corrigido para

Rosa, 30 anos, produzida, mas desconfortável em seu salto alto, olha para Alberto. Rosa sorri, respira fundo e se aproxima da mesa.

É importante que a descrição esclareça o que acontece na cena. o excesso de detalhes esconde a ação.

Evite os “eles”, “elas”, “deles” e “delas”. É melhor ser objetivo, ainda que redundante. “João olha para Maria, que fica envergonhada. João pega na mão de Maria”. É estranho? Não, é um roteiro. Mas use o bom senso. Não se trata de proibir os pronomes.

Também é importante sempre que você introduzir um personagem ou uma locação, colocar uma breve descrição. A imagem está clara para você, mas não para o leitor. As vezes, quando um personagem desaparece do filme durante muito tempo, ou quando são muitos personagens, é bom relembrar de quem se trata com algum detalhe significativo. Uma dica é usar nomes bem diferentes para cada personagem, assim fica mais difícil de se confundir.

Linguagem despojada

Cuidado com linguagem literária. Infelizmente no cinema e na televisão uma imagem é apenas uma imagem e não uma metáfora. Se limite a descrever aquilo que está sendo visto e ouvido.

Não dizer como as coisas não são, mas sim como elas são.

Ser positivo no texto. Roteiros são assertivos. Jamais use frases como:

Pode-se tentar um tom vermelho para a cena.Estão caracterizados como jovens de classe média ou média/alta.Claudia, uma garota de aproximadamente 20 anos, entra na sala.João pode usar uma calça azul.

De novo, roteiros são escritos no presente com frases assertivas porque os acontecimentos sempre são únicos e no presente em um filme. Não existem imagens no condicional.

Evite usar parênteses nas descrições.

João (22, segurando uma pasta) e Antônio (21, comum livro na mão) olham para Artur (25, carregando uma mochila) sentado no banco.

Mais fluente é

João, 22 anos, segurando uma pasta e Antônio, 21 anos, com um livro na mão, olham para Artur, 25 anos, carregando uma mochila e sentado no banco.

O “Vemos…”

Não usar “vejo”, “olhando”, “vemos” para indicar o ângulo da câmera. É a sua descrição que deve fazer o leitor ver. Ao invés de:

Vemos Jason sentado no chão em frente à arvore.

É melhor:

Jason está sentado no chão em frente à arvore.

Usar o vemos é impreciso. Todo o conteúdo da rubrica é parte de um filme que já está sendo “visto”. Basta descrever a ação, fica mais claro.

Apresentação dos personagens

O roteiro de Taxi Driver: motorista de taxi (Taxi Driver, 1976) escrito por Paul Schrader abre com uma longa biografia de Travies. Este texto está na capa do roteiro e é de excepcional qualidade literária.

“Toda a convicção da minha vida repousa agora na crença de que a solidão, longe de ser um fenômeno raro e curioso, é o fato central e inevitável da existência humana”. — Thomas Wolfe, “o homem solitário de Deus”

TRAVIS BICKLE, 26 anos, magro, duro, o consumado solitário. Na superfície, tem boa aparência, parece até bonitão; ele tem um olhar calmo e firme e um sorriso desarmante que pisca do nada, iluminando todo o seu rosto. Mas por trás desse sorriso, em torno de seus olhos escuros, em suas bochechas magras, pode-se ver as manchas ameaçadoras causadas por uma vida de medo, vazio e solidão. Ele parece ter saído de uma terra onde está sempre frio, um país onde os habitantes raramente falam. A cabeça se move, a expressão muda, mas os olhos permanecem sempre fixos, sem piscar, perfurando o espaço vazio. Travis agora está entrando e saindo da vida noturna de Nova York, uma sombra escura entre as sombras mais escuras. Não notado, não há razão para ser notado, Travis desaparece no ambiente. Ele usa jeans de ciclista, botas de caubói, uma camisa xadrez ocidental e uma jaqueta bege desgastada com um trecho escrito, “King Kong Company 1968–70”. Ele exala o cheiro de sexo: sexo doente, sexo reprimido, sexo solitário, mas sexo. Ele é uma força masculina crua, avançando; em direção ao que, não se pode dizer. Então, quando se olha de perto, se vê o inevitável. O coroa do relógio não pode mais ser enrolada, está no limite. Enquanto a terra se move em direção ao sol, Travis Bickle se move em direção à violência.

Mas, que eu saiba, é um caso único. Quando as biografias estão inseridas numa rubrica, em meio ao roteiro, descrição do personagem é mais sucinta, em geral com uma ou duas linhas. Esta é a a descrição do personagem de Clint Eastwood em Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992) retirada do roteiro de David Webb Peoples.

Munny tem trinta e cinco ou quarenta anos de idade, seu cabelo está ralo e seu bigode cai pesadamente sobre sua mandíbula. Se não fosse por seus olhos, ele se pareceria com qualquer criador de porcos com sua calça enfiada em suas botas empurrando um porco.

Mas não há regras. Por exemplo, Pulp Fiction: tempo de violência (Pulp Fiction, 1994), roteiro de Tarantino:

Uma cafeteria normal, tipo Denny’s,em Los Angeles. São cerca de 9:00 da manhã. Enquanto o lugar não está lotado, há várias pessoas tomando café, mastigando bacon e comendo ovos. Duas dessas pessoas são um JOVEM HOMEM e uma JOVEM MULHER. O jovem tem um leve sotaque inglês da classe trabalhadora e, como seus compatriotas, fuma cigarros como se estivessem saindo de moda. É impossível dizer de onde é a Jovem ou quantos anos ela tem; tudo o que ela faz contradiz algo que já fez. O menino e a menina sentam-se em uma mesa. Seu diálogo deve ser dito em um ritmo acelerado, tipo HIS GIRL FRIDAY.

É curto, mas conseguimos visualizar sem dificuldades a cena com seus personagens. Em todo caso você deve sempre se perguntar qual o melhor modo de apresentar os personagens ao seu leitor.

Termos técnicos

Não usar termos técnicos. Nada de travelling, PM, panorâmica, contra-campo ou câmera. Jean-Claude Carrière chama a atenção para uma “linguagem secreta do roteiro”: o modo como o texto é escrito deve sugerir uma decupagem para o leitor. Por exemplo:

A caixa de balas está sobre a mesa.

João pega pega uma bala e olha para o retrato de Suzana.

Esta frase começa com um plano de detalhe das balas, provavelmente com o retrato ao seu lado, e abre para um PM de João chupando a bala.

Um dica é mudar de parágrafo a cada plano.

Este tipo de recurso é muito mais elegante do que dificultar a leitura com termos técnicos que vão ser necessariamente ignorados pelo diretor.

Cabeçalho

O cabeçalho deve ser simples, fácil de ler. O modelo é:

INT. SALA DE JANTAR - DIA

É sempre em maiúsculas.

A ordem também também não varia: int/ext, locação, período. Ele é uma ferramenta útil sobretudo para o planejamento da produção.

Exemplos errados:

INTERNA, CAFÉ DA RUA ENGANO, 311 - DIACENA 33 - INT. SALA, CASA DE BRUNO - FIM DE TARDE

Personagens

Não usar nomes genéricos: Vitima, Bandido, Homem, Mulher, Jovem, etc. É bom dar nome aos personagens. O nome faz parte da descrição de um personagem. Uma personagem chamada Odete é muito diferente de Tainá.

Sobretudo, não usar letras. Fica muito dificil lembrar e acompanhar quem é quem: X falou para Z que Y esqueceu o nome de H…

Também é importante que os nomes sejam diferentes entre si. Tiago e Tadeu é muito fácil de confundir durante a leitura.

Parênteses

É a maior dificuldade da maioria dos roteiristas, inclusive profissionais. O parêntese tem apenas duas funções:

  1. Indicar uma intenção de interpretação que não é clara pelo próprio texto.

O exemplo abaixo é errado, pois o nervosismo já está contido no diálogo.

               JOÃO
(nervoso)
Foi sem querer, foi sem querer.

Muitas vezes há varias indicações como essa a cada frase! O parênteses deve ser usado com parcimônia, só quando o sentido não pode ser compreendido. Um uso mais correto seria:

               JOÃO
(sussurrando)
Foi sem querer, foi sem querer.

Aqui o parêntese indica uma intenção na fala que não é óbvia.

2. A outra função é marcar uma pausa.

                JOÃO
Foi sem querer.
(pausa)
Foi sem querer.

A pausa não pode ser indicada de modo cifrado (P), entremeada ao texto. O ritmo da leitura deve seguir o ritmo da cena, por isso ela precisa de destaque.

Mas, de longe, o erro mais comum é transformar o parênteses em uma rubrica.

                 JOÃO
(ajoelhando em frente a Maria
com as mãos em prece)
Foi sem querer, foi sem querer.

Atenção também para o lugar do parêntese. Os exemplos abaixo estão errados.

                JOÃO (sussurrando)
Foi sem querer, foi sem querer.
JOÃO
(SUSSURRANDO) Foi sem querer, foi sem
querer. (GRITA) Eu juro!

As palavras entre parênteses não são em maiúsculas, nem mesmo a primeira letra é em maiúscula.

Estas foram algumas observações de estilo de escrita. Existem inúmeras complicações na hora de escrever. Como fazer um sonho? Como indicar um diálogo telefônico? Como escrever cenas de ação? Esses e outros problemas são muito bem destrinchados por Trottier (2005), um manual útil de se ter sobre a mesa enquanto digitamos.

Referências

TROTTIER, D. The Screenwriter’s Bible: A Complete Guide to Writing, Formatting, and Selling Your Script. Los Angeles: Silman-James Press, 2005.

CARRIÈRE, J.-C. A Linguagem Secreta Do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.