Lajos Egri sobre o personagem

Os personagens são a solução de todos o problemas

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
9 min readMar 24, 2020

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“I still think his The Art of Dramatic Writing is the most stimulating and best book on the subject ever written, and I have them all.” (Lax, 2000, pg. 74)

Woody Allen

Apresentação

Um modelo clássico de biografia pregressa como ferramenta de escrita é o de Lajos Egri. Ao ler a descrição de Irene deve-se ter em mente que o modelo de drama para Egri é Ibsen. Isto fica evidente no uso de um determinismo que chega até à fisiologia. Mas sua visão naturalista -e materialista também- ainda é um ótimo ponto de partida para compreender as múltiplas motivações que podem estar por trás das ações de uma personagem. Apesar de datado em sua moral, os aspectos levantados por Egri obrigam a desenvolver uma visão multidimensional da personagem.

O único aspecto que eu acrescentaria à sua lista é o medo: definir o medo de uma personagem é tão importante quanto encontrar a sua ambição. Também acho que algumas observações sobre as motivações e arco da personagem são úteis. No final proponho a minha ficha de personagem.

Mais uma observação. Egri não está preocupado em ser original, mas sim em demonstrar um método. Leiam este texto apenas como um ponto de partida, o início de um processo incessante de reescrita ao final do qual, quem sabe, algo interessante pode aparecer.

Biografia de Irene

Vamos parar agora, congelar um ser humano e deixa-lo imóvel. Vamos analisar detidamente a garota que abandonou uma família religiosa para se tornar uma prostituta. Não é suficiente dizer que certas forças causaram sua degeneração. Houveram forças, é claro, mas quais foram? Alguma força sobrenatural a guiou? Ela honestamente considerou a prostituição promissora? Dificilmente. Ela leu e ouviu de seus pais ou do pastor na igreja, que a prostituição é um mal terrível da sociedade, repleto de incertezas, doenças e horror. Ela sabia que uma prostituta é caçada pela lei, explorada por cafetões, que tanto seus clientes como seus senhores, vão tirar vantagens e que, ao final, a espera uma morte solitária e miserável. É quase impossível uma garota normal, de boa família, querer tornar-se uma prostituta. No entanto, esta se tornou uma prostituta e outras também. Para comprender as razões para a ação dessa garota nós precisamos entende-la completamente. Só então poderemos perceber as contradições internas e externas a ela, e, através destas contradições, o movimento que é a vida. Vamos chamar essa garota Irene; esta é a estrutura óssea do caráter de Irene:

Fisiologia

  • Sexo: Feminino.
  • Idade: Dezenove.
  • Altura: 1,55 metros.
  • Peso: 49 quilos.
  • Cor do cabelo: Castanho escuro.
  • Cor dos olhos: Castanhos.
  • Pele: Lisa.
  • Postura: Ereta.
  • Aparência: Atraente.
  • Estilo: Muito arrumado.
  • Saúde: Ela fez uma operação de apêndice quando tinha 15 anos. É muito suscetível a resfriados, e toda a família tem um medo mórbido que fique tuberculosa. Ela parece não dar atenção, mas na verdade está convencida que vai morrer cedo e quer aproveitar a vida enquanto pode.
  • Marcas de nascimento: Nenhuma.
  • Anormalidade: Nenhuma, se não levarmos em conta a sua hipersensitividade.
  • Hereditariedade: Uma constituição frágil que herdou de sua mãe.

Sociologia

  • Classe: Classe média. Sua família vive confortavelmente. Seu pai tem um mercadinho, mas a competição tem tornado sua vida insuportável. Ele teme ser ultrapassado por pessoas mais jovens. Este medo ainda vai se tornar realidade, mas ele nunca vai incomodar sua família com isso.
  • Ocupação: Nenhuma. Irene deveria ajudar nos serviços domésticos, mas ela prefere ler e deixa o trabalho cair nas costas de sua irmã mais nova, Sylvia.
  • Educação: Colegial. Ela queria largar no segundo ano, mas a insistência e ameaças de seus pais a fizeram terminar o curso. Ela nunca gostou da escola ou de estudar. Não conseguia entender matemática ou geografia, mas gostava de história. A ousadia, os casos de amor, as traições a fascinavam. Ela lia muita história, mas como se fosse uma ficção. Datas e nomes não tinha importância e apenas o glamour a interessava. Sua memória era fraca e seus hábitos desleixados de trabalho levavam a constantes conflitos com seus professores. Sua boa aparência física não se refletia nas suas desamarradas e mal escritas composições. Terminar o colegial foi o dia mais feliz de sua vida.
  • Vida familiar: Os seus dois pais estão vivos. Sua mãe tem 48 anos e seu pai, 52. Eles se casaram tarde. A vida de sua mãe foi muito turbulenta. Ela teve um namorado durante dois anos e meio, ao final dos quais foi trocada por outra. Ela tentou se matar. Seu irmão a encontrou tentando se asfixiar com gás no banheiro. Teve um colapso nervoso e foi enviada para se curar na casa de uma tia. Depois, ficou nesta casa durante um ano, recuperou sua saúde e encontrou o homem que agora é seu marido. Eles se tornaram noivos, apesar dela não o amar. Seu desprezo pelos homens a tornou indiferente quanto a personalidade do homem com que se casou. Ele, por outro lado, era um homem bem normal, orgulhoso que uma garota tão bonita aceitasse casar consigo. Ela nunca contou de seu caso com o outro homem, mas também não se preocupou que ele descobrisse. Ele nunca o fez, já que não se importava com o passado dela. Ele a amava, ainda que no início ela fosse uma esposa muito pouco aplicada.
  • Depois do nascimento de Irene, ela mudou completamente. Se interessou pela casa, pela criança e até por seu marido. Mas agora os cálculos de sua vesícula biliar, que a incomodaram durante vários anos, só poderão ser retirados com uma operação. Ela ficou nervosa e irritável. Não lê mais como antigamente, nem mesmo os jornais. Ela só tem o primário e sonhava com Irene indo para a faculdade. Mas a rejeição de sua filha pelos estudos frustrou sua ambição.
  • Sua educação foi estupidamente negligenciada e ela atribui seu primeiro mal passo à negligência de seus país. Por isso ela controla de perto cada passo de Irene. Isto leva a constantes discussões entre mãe e filha. Irene odeia ser supervisionada, mas sua mãe insiste que, não apenas esta é uma prerrogativa sua, mas também seu dever sagrado.
  • O pai de Irene é de descendência escocesa. Ele é frugal, mas faz de tudo para satisfazer as necessidades de sua família. Irene é sua queridinha. Ele se preocupa com sua saúde e diversas vezes fica a seu lado nas discussões com sua mãe. No entanto, sabe que sua mulher quer o bem de Irene e concorda que é preciso cuidar dela. Ele herdou a loja de seu pai e é o único proprietário. Ele também freqüentou apenas o primário. Lê o jornal local, a Gazeta. Seus pais eram republicanos, e ele também é um republicano. Se questionado não saberia justificar as suas crenças. Ele acredita com firmeza em Deus e nos seu país. É um homem simples de gostos simples. Faz todo ano uma modesta contribuição para a igreja e é muito respeitado na comunidade.
  • Q.I.: O de Irene é um pouco abaixo do normal.
  • Religião: Presbiteriana. Irene é agnóstica, mas quase nunca pensa em religião pois está mais preocupada consigo mesma.
  • Comunidade: Ela participa de uma sociedade de cantores e do “Moonlight Serenade Club,” onde jovens se reúnem para dançar e jogar. As vezes os jogos degeneram em festas onde a garotada fica se agarrando. Irene é admirada pela sua beleza. Ela é uma boa dançarina, mas nada de especial. A admiração que ela recebe no clube deu origem ao desejo de ir para Nova York e tornar-se dançarina. É claro que, quando mencionou está idéia para sua mãe, aconteceu uma cena de histeria. O desejo da mãe de suprimir a ambição de Irene tem sua origem no medo do que pode acontecer com a moral dela se viver com liberdade numa cidade, e, bem menos, em como isso pode afetar a sua saúde delicada. A garota nunca mais mencionou o assunto.
  • Irene não é muito popular com as outras garotas, devido a um certo prazer que tem em fofocas maliciosas.
  • Filiações políticas: Nenhuma. Irene nunca conseguiu entender a diferenças entre os partidos Republicano e Democrata e nunca sequer percebeu que existiam outros.
  • Diversão: Filmes, dançar. Ela adora dançar. Fuma escondida.
  • Leituras: Pulp magazines, histórias de amor, romances e noticias do cinema.
  • Vida Sexual: Ela teve um caso com Jimmy, um membro do clube. Seu medo de que alguma terrível fatalidade tomaria conta dela provou-se infundada. Agora ela não sai mais com Jimmy, porque ele se recusou a casar com ela no momento em que mais precisava. Mas ela não lamentou muito, já que seu plano favorito era ser uma chorus girl em Nova York. Dançar em frente a publico de admiradores é o ápice dos seus sonhos.
  • Moralidade: “Não há nada errado com qualquer relação sexual desde que você saiba tomar conta de si mesma”.
  • Ambição: Dançar em Nova York. Ela está economizando a mais de um ano. Se todo o resto der errado, ela vai fugir. Ficou aliviada de Jimmy escapar do casamento, pois não conseguia se ver como uma esposa domesticada cuja maior ambição é cuidar das crianças. Ela sente que Plainsville seria um lugar terrível para morrer e que é insuportável para se viver. Irene nasceu na cidade e conhece cada uma das suas pedras. Ela sente que, mesmo se fracassar como dançarina, basta estar fora de Plainsville para que seja feliz.
  • Frustração: Não ter aulas de dança. Não existe uma academia na cidade e a despesa para ir estudar em outra cidade estava além dos recursos de seu pai. Ela passou a usar uma auréola trágica em torno de sua cabeça e deu a entender para sua família que estava sacrificando-se por eles.
  • Temperamento: É muito instável. A menor provocação a faz enraivecer. Ela é vingativa e orgulhosa. No entanto, quando sua mãe estava doente, impressionou toda a cidade pela sua devoção, ficando insistentemente com a mãe até a sua completa recuperação. Quando Irene tinha quatorze anos, seu canário morreu e ela ficou inconsolável durante semanas. Atitude: militante. Complexos: complexo de superioridade.
  • Atitude: militante.
  • Complexos: complexo de superioridade.
  • Superstições: Número treze. Se algo desagradável acontece numa sexta-feira, algo desagradável vai acontecer durante a semana.
  • Imaginação: Boa.

A tese neste caso é o desejo dos pais de arranjar o casamento mais vantajoso para Irene.

A antitese será a intenção de Irene em não se casar, mas sim de tornar-se a qualquer custo uma dançarina.

A síntese será a resolução: Irene fugindo e eventualmente acabando na rua.

Sinopse

Irene, ao invés de ir no grupo de canto, esteve saindo com um jovem. Uma garota, ao encontrar a mãe de Irene por acaso, pergunta, casualmente, porque Irene saiu do grupo. A mãe consegue esconder seu espanto com dificuldade, inventando que Irene tem estado doente ultimamente. Na casa acontece um terrível bate-boca. A mãe suspeita que Irene não é mais virgem e quer casa-la o mais rápido possível com um funcionário da loja do pai. Irene percebe o projeto da mãe e decide fugir para realizar os seus sonhos. Ela não consegue emprego no teatro e, sem profissão para conseguir se sustentar, sucumbe à necessidade premente e se volta para a prostituição.

Existem milhares de garotas que fogem de milhares de casas. É claro que todas elas não se tornam prostitutas — porque os seus aspectos físicos, mentais e sociológicos são diferentes de mil maneiras. Nossa sinopse é apenas uma versão de como uma garota de uma família respeitável pode se tornar uma prostituta.

(EGRI, 1950. Pg 52–57. Minha tradução.)

Ficha de personagem

  • Nome:
  • Gênero:
  • Orientação sexual:
  • Idade:
  • Altura:
  • Peso:
  • Cor do cabelo:
  • Cor dos olhos:
  • Pele:
  • Postura:
  • Aparência:
  • Estilo:
  • Saúde:
  • Marcas de nascimento:
  • Traço único:
  • Hereditariedade:
  • Classe social:
  • Ocupação:
  • Educação:
  • Vida familiar:
  • Inteligência:
  • Religião:
  • Comunidade:
  • Filiações políticas:
  • Diversão:
  • Hobbies:
  • Leituras:
  • Vida Sexual:
  • Moralidade:
  • Frustrações:
  • Temperamento:
  • Atitude:
  • Complexos:
  • Superstições:
  • Imaginação:
  • Objetivo: [o desejo explicito do personagem]
  • Necessidade: [aquilo que o personagem precisa, mas que ignora]
  • Ação: [o que ele faz para alcançar seu objetivo]
  • Contra-ação: [o que o impede de alcançar seu objetivo]
  • Arco da personagem: [quais os pontos de virada da sua história]

Referências

CARNICKE, S. M. Stanislavsky in Focus : An Acting Master for the 21st Century.New York, NY: Routledge, 2008.

CATTRYSSE, P. “The protagonist’s dramatic goals, wants and needs”. Journal of Screenwriting, v. 1, p. 83–97, 2010.

EGRI, L. The art of dramatic writing.London: Pitman, 1950.

LAX, E. Woody Allen: a biography. New York: Da Capo Press, 2000.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.