A cena e o diálogo

O corpo a corpo da escrita

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
7 min readMar 24, 2020

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Photo by Keagan Henman on Unsplash

A maioria dos manuais dá muito destaque à estrutura. Mas, como já disse e provou Howard Hawks, se você tiver uma serie de boas cenas, tem um filme.

São os seguintes os componentes de uma cena.

  1. Apresentação
  2. Gancho
  3. Catalisador
  4. Desenvolvimento
  5. Climax
  6. Resolução
  7. Gancho

Por exemplo, a primeira cena de Psicose (Psycho, 1960).

  1. Apresentação: plano geral da cidade com seu nome e horário, corrige para um prédio. Vemos uma janela.
  2. Gancho: não tem porque é a primeira cena.
  3. Catalisador: o conflito começa quando Marion diz que deseja uma relação compromissada com Sam.
  4. Desenvolvimento: eles ficam negociando o casamento.
  5. Climax: Marion diz que topa tudo e Sam recua.
  6. Resolução: Marion dispensa a companhia dele.
  7. Gancho: Marion diz que tem que trabalhar e na cena seguinte entra no seu trabalho.

Toda boa cena tem essa estrutura. Parece que estou sendo exagerado? Se dê ao trabalho de analisar e verá que é verdade (BORDWELL, 1985). Cena sem conflito é expositiva, não dramática. E o conflito precisa ser desenvolvido, tem começo, meio e fim.

Também vale observar que essa estrutura é muito semelhantes à do filme como um todo: uma apresentação, 1º ponto de virada, complicação, ponto mediano, 2º ponto de virada, climax, resolução (THOMPSON, 1999). Essa recursividade é uma característica do texto dramático.

Ganchos

Vale um destaque especial para os ganchos. Eles podem assumir as mais diferentes formas, mas precisam existir. As vezes é um gancho narrativo, muitas vezes uma relação de causalidade simples, uma contiguidade espacial, ou um floreio estilístico, não importa! se você quer um filme que flui com ritmo, os ganchos são necessários. Por exemplo, uma série como Stranger Things (2016), padrão para o entretenimento no streaming, tem 75% de suas transições de cena com gancho.

Diálogos

São quatro as funções do diálogo:

  • Avançar a história.
  • Revelar aspectos do personagem que não podem ser vistos de outro modo.
  • Apresentar e expor fatos passados.
  • Dar o tom do filme.

O diálogo não é uma conversa. Conversas são casuais. O diálogo é selecionado, ordenado e com finalidade. O que não atende a nenhuma função deve ser cortado. Sem piedade. “Na dúvida sempre corte!” Dizia Giacomo Rossini, um compositor cujas óperas são divertidas até hoje. Cortar sempre e manter apenas o essencial.

Através do diálogo são revelados vários aspectos dos personagens: seu modo de falar, seus pensamentos, seu passado. É através do diálogo que podemos descobrir como o personagem se posiciona em relação ao conflito que está vivendo. O diálogo faz avançar a ação porque é quase sempre através dele que se cria e resolve o conflito.

Não escrever frases grandiloqüentes ou literárias e que tenham valor por si só. Uma linha de diálogo não pode existir fora do contexto da história. O texto deve ser simples.

Palavras raras devem ser evitadas, a menos que ajudem a caracterizar o personagem. Lembre-se que o filme não pára e o espectador deve compreender o que está sendo dito.

As imagens e os textos muitas vezes são redundantes. Se alguém pergunta ‘Onde está Anabela?’ e nós já sabemos que ela está lavando o cabelo, qual é a função da resposta? No entanto, se alguém responde que ela está lavando o cabelo, quando na verdade sabemos que ela está morta, tudo fica dramático.

O estilo da fala de um personagem deve ser mantido do começo ao fim. Se ele fala de modo formal, deve falar sempre de modo formal. Procurar criar um estilo de fala, um ritmo, um vocabulário para cada personagem. Um mecânico fala diferente de um executivo. Um mecânico conversando com um cliente ou se dirigindo a um fornecedor fala de dois modos diferentes.

Os diálogos são descontínuos. As pessoas quando falam usam palavras incompletas e hesitam muito. Por isso o diálogo deve ser quebrado com comentários e reações. Se ficar óbvio, tipo ping-pong, fica monótono.


O que você acha?
MARIA
Acho que... Bom, Eu acho que o João...
Você lembra do João, não?

Lembro sim. Foi ele que...
MARIA
Ele mesmo. O do nariz quebrado.

Note a quantidade de repetições: três vezes o verbo achar, duas vezes lembrar, duas vezes o pronome ele, duas vezes João. Falas longas são adequadas no teatro e perigosas no cinema. Elas precisam ser muito justificadas dramaticamente e tendem a aparecer apenas no ápice de uma cena. Sempre que um personagem falar mais de três linhas confira se é mesmo necessário. Caso você cometa um monólogo procure tornar a linguagem do personagem a mais concreta possível. Ele deve descrever situações que podemos visualizar e não exprimir de modo genérico seus sentimentos.

A movimentação dos personagens enriquece os diálogos. Se a sequência for longa, não deixe os seus atores parados. Eles podem estar se vestindo, jogando cartas, atirando pedras n’água, etc. Quebre o diálogo com ações e reações.

As linhas de um diálogo devem se conectar. Todas as falas seguem de modo lógico, fluído, com finalidade. O espectador precisa compreender tudo. Um personagem pode repetir palavras do outro ou acabar uma frase que já foi começada. Quando usar rupturas… que seja com função dramática. Por exemplo uma dona de casa comenta a decoração da casa de sua vizinha e, de repente, pergunta a ela como é a vida de desquitada.

É claro que um diálogo pode ser obscuro. Mas, de novo, atendendo a uma exigência dramática e coerente com o projeto. Geralmente, diálogos obscuros são um problema. O autor conhece todas as circunstâncias da história e se engana pensando que seu leitor detém as mesmas informações. O que para nós parece didático, muitas vezes passa muito bem para o público.

Usar elementos não verbais. As vezes um sorriso, um suspiro, um olhar de esguelha podem significar muito. A expressão de emoções nos diálogos deve ser dramaticamente justificada. Um grito ou um sussurro podem ser igualmente eficientes. Tudo depende do momento. Mas não fuja da emoção. Ela precisa estar manifesta.

Versos e metáforas devem ser deixados para os poetas. Mas as vezes o personagem exige um tom mais elevado. É preciso que esta seja uma característica do personagem e não do filme. Atenção ao modo de falar. Seu personagem é nordestino, paulista ou carioca? Não seja caricato, mas se for o caso procure a frase regional. Ele utiliza gírias ou algum jargão técnico? Um médico sempre deixa escapar alguma palavra especializada. Se ele usa gírias, cuidado que elas tendem a envelhecer rápido. Em que circunstâncias o personagem se encontra? Uma secretaria fala com seu chefe de um jeito e com o boy de outro. Qual o seu nível de fala? O modo de falar revela extração social e educação. Cada personagem tem estas qualidades em níveis diferentes. Um padeiro brigando com um devedor fala diferente de um advogado negociando uma falência, ainda que os dois estejam fazendo uma cobrança.

Evite qualquer clichê. Coisas do tipo:

  • “Aqueles foram os melhores anos de minha vida.”
  • “Nada como um dia após o outro.”
  • “Parece que você viu um fantasma!”
  • “Eu nunca vou te esquecer.”
  • “Siga aquele carro!”
  • “Ele está com a vida por um fio.”

Jamais declarar a mensagem do filme no diálogo. Por sinal, evite textos com mensagens. Já disse o Samuel Goldwin: “Messages are for Western Union.”

O diálogo e a ação se completam. Geralmente, uma ação desencadeia uma reação (movimento, olhar) que por sua vez dá nova direção ao diálogo. A ação é a continuação do diálogo por outros meios (ou será o contrário?).

Atenção aquilo que não é dito. A palavra que é evitada, o silêncio que se impõe, em geral são muito mais interessantes que a melhor linha de diálogo.

Subtexto

Esta é uma estratégia para evitar o que os americanos chamam cenas on the nose,ou seja, uma cena sem subtexto, dizendo exatamente o que você quer dizer. Por exemplo, há uma cena classicamente ruim de Star Wars Episódio III: A Vingança dos Sith (Star Wars: Episode III — Revenge of the Sith, 2005) em que Anakin sai para uma varanda onde Padme está penteando o cabelo, e diz: “Você é tão linda”, ela responde, “É só porque estou apaixonada por você”, e ele diz: “Não, é porque eu estou apaixonado por você”. É uma cena óbvia, sem profundidade, que entrega para o espectador seu significado na bandeja, sem exigir um esforço de interpretação.

Mckee chama a atenção dos nossos escritores:

Os roteiristas precisam aprender a não explicar tudo. No Brasil, os personagens dizem exatamente o que estão pensando. Não existe subtexto. É preciso confiar que o ator e o público vão entender o que está sendo dito sem precisar de todas as palavras. Isso é absolutamente fundamental na hora de criar uma série com padrão internacional. (BRITTO, 2014)

Escrever o subtexto junto com a descrição da cena é uma estratégia para que o roteirista pense nesse problema.

O conceito de subtexto foi criado por Stanislavski (2008) e trata-se, no trabalho do ator, de um processo mental composto por imagens e palavras. É o subtexto que impulsiona e transforma a ação física e verbal. Muitas vezes é transcrito através de um monólogo interior. Para o escritor, é aquilo que não está explícito, mas sim significado. O subtexto responde a duas questões:

  • Qual o ponto de vista do personagem sobre a cena?
  • Quais as motivações internas de suas ações externas?

Um outro tipo de subtexto é o irônico. Neste caso, o personagem tem consciência do subtexto e joga com seu interlocutor. Um exemplo clássico é Bogart e Bacall usando a corrida de cavalos como simile de uma relação sexual em Uma Aventura na Martinica (To Have and Have Not,1946). Outro caso de ironia é quando o subtexto é óbvio para o espectador, mas não para o personagem. Em Sideways: Entre Umas e Outras (Sideways, 2004) um casal fala de sua relação usando uma discussão sobre vinhos.

Como afirmou Robert Towne, roteirista de Chinatown (1974):

… é quase como se o diálogo em um bom roteiro fosse um contraponto à cena. Porque você precisa dizer o que vê? (LENNON, 2009)

Referências

BORDWELL, D. Anatomy of the Scene. In: BORDWELL, D.; STAIGER, J.; THOMPSON, K. The Classical Hollywood Cinema: Film Style & Mode of Production to 1960. New York: Columbia University Press, 1985.

BRITTO, T. Guru em Hollywood, Robert McKee diz que roteiristas brasileiros devem aprender a não explicar tudo.Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/guru-em-hollywood-robert-mckee-diz-que-roteiristas-brasileiros-devem-aprender-nao-explicar-tudo-11539505#ixzz3ch5AIpsL. Acesso em: 07 de junho de 2015.

LENNON, E. The Screenplays of Robert Towne 1960–2000. Dublin: Dublin Institute of Technology, M.A. Film Studies, 2009.

STANISLAVSKY, K.; BENEDETTI, J. An actor’s work : a student’s diary. London; New York: Routledge, 2008.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.