Dogma para a criação de séries de televisão

Este é o meu dogma pessoal para séries de televisão. É um processo que amadureceu ao longo das séries de que participei e de tantos outros projetos que não foram para a frente. Não é uma verdade absoluta. Estou publicando para estimular outros produtores, diretores e roteiristas a refletirem sobre os processos de que estão participando.

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
6 min readJan 21, 2020

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Photo by Diego González on Unsplash

Do showrunner

O showrunner tem a palavra final. É a pessoa que escreve a última versão do roteiro, está presente em todas as reuniões da sala, define as tarefas de cada roteirista, acompanha o casting, escolhe o diretor, aprova a direção de arte e o corte final. É a pessoa para quem o canal liga quando precisa resolver um problema.

No Brasil, como as produtoras vinham de um esquema artesanal, em que o diretor é responsável pela obra, surgiu um problema. Temos o roteirista encarregado da sala, chamado de head writer, e o diretor. Aí o fluxo fica complicado. Quem tem a palavra final? Geralmente, o diretor, mas aí o roteirista-chefe precisa reescrever… E começa um ciclo que pode ficar infernal.

Que eu saiba, temos poucos showrunners. Vou falar da minha experiência com o Cao Hamburguer. Ele acompanhava a sala de Pedro e Bianca, reescrevia os roteiros, aprovava o casting, escolhia e acompanhava os diretores e aprovava o corte final. É um showrunner. Parece que o Lucas Paraizo tem trabalhado assim na Globo. Acho que o Pedro Aguilera tem cada vez mais esse poder.

Ainda que pouco praticado por aqui, esse é o modelo a ser seguido. Chega uma hora em que é preciso bater o martelo. Fazer uma escolha sempre é assumir um risco. Um produto artístico é ambíguo, imponderável, aberto. Não há uma verdade que pode ser constatada por um trabalho de equipe partilhado, como na pesquisa científica. Necessariamente é uma verdade relativa, subjetiva. E por isso precisa emanar de uma só pessoa. Se a série tem uma bíblia, o showrunner é Deus.

E, continuando com a metáfora cristã, só assim evitamos o development hell, o inferno do desenvolvimento. Quem já viveu sabe o quanto é desgastante. Uma atividade que deve ser gostosa, criativa e divertida vira um pesadelo. Pior, o resultado fica ruim! Há essa ilusão no nosso meio que o sofrimento gera qualidade. É uma mentira sádica. Em tudo que li sobre criatividade acontece o oposto: as boas idéias surgem de concentração, do jogo e da alegria; não de sofrimento, da dor e do ressentimento.

Uma diferença importante do modelo americano é que os roteiristas subordinados ao showrunner supervisionam a produção junto com ele. Por exemplo, sempre há um roteirista no set acompanhando o que está sendo filmado, e com mais poder que o diretor. Os roteiristas desempenham a função de produtores executivos e, por isso, acumulam também esse crédito. Quem só escreve ainda está no primeiro degrau da carreira. Claro que há outros modelos, mas em geral é assim que funciona.

Vale conferir o texto escrito pelo sindicato de roteiristas da Espanha, a excelente dissertação de Bartira Bejarano, Sala de roteiristas: A writer’s room brasileira e seu processo de escrita colaborativa de séries televisivas, e o livro de Cristina Kallas.

Da sala de roteiristas

  1. Não vale criticar sem trazer uma solução. É preciso ter uma postura cordata, acolhedora e construtiva.
  2. Frente a um problema, enumerar as soluções, sem preconceitos, sem censura. Depois revisar e escolher a melhor. É assim que são estruturados brainstorms.
  3. É difícil ouvir o outro. Sempre estamos certos que a nossa idéia é a melhor! Mas é preciso discutir de peito aberto e estar pronto para voltar atrás.
  4. Quem não leu todos os documentos do projeto não opina. Todo mundo tem que estar na mesma página.
  5. O assistente da sala mantém todos os documentos atualizados e em ordem, de modo que um recém-chegado possa se apoderar rapidamente do projeto. Essa é a função da bíblia; ela contem a verdade da série. A bíblia pode ser um folheto de venda, um apoio para a defesa oral do projeto; mas não é esse o espírito original do documento.
  6. A sala tem que ser um lugar agradável, com imagens, lousas e cadeiras confortáveis.
  7. As paredes da sala devem ter tabelas, fotos e desenhos que rapidamente nos ajudam compreender a série que está sendo criada. Como se a bíblia estivesse na parede. É preciso que isso seja didático e simples.
  8. Sem celulares e computadores, afora o do assistente.

Do processo

  1. Existe um processo a ser seguido. Não segui-lo é receita de confusão:
    ⁃ Divisão da história em grandes beats. Isso pode dar origem a um argumento.
    ⁃ Escrita da escaleta de cada episódio. Uma vez fechada a escaleta, o episódio tem que aderir a ela.
    ⁃ Escrita do roteiro.
    ⁃ Revisão do roteiro.
  2. Todos os envolvidos precisam acompanhar essas etapas, assim a responsabilidade é compartilhada e não há espaço para reescritas desnecessárias. Assim é que se caminha sempre em frente.
  3. A palavra final é do showrunner, mas na real ela é do público. É ele que vai acolher ou rejeitar a obra. E se pudéssemos antecipar esse retorno? Por isso defendo uma pesquisa de opinião antes de começar a escrever os roteiros. É simples, barato e evita muita dor de cabeça. Basta fazer um bom pitching de cada episódio para um grupo representativo do público-alvo e ouvir o retorno. Isso acaba com todas as dúvidas e economiza muito dinheiro.

Dos personagens

  1. Devem despertar a preocupação e a torcida do público.
  2. Têm objetivos claros a cada cena, e seu comportamento manifesta esse objetivo.
  3. Devem ser colocados na pior situação possível em todo episódio.
  4. Têm um desejo consciente, mas uma necessidade que ignoram. É isso que dá profundidade ao personagem. Ao final do seu arco, realizam sua necessidade e não seu desejo, ou vice-versa. Se alcançarem os dois, atingem a plenitude e não tem segunda temporada.
  5. Ao final, precisam ter aprendido algo sobre si mesmos e sobre o mundo. Ótimo seria um aprendizado a cada episódio.
  6. Personagem de série dramática tem que ser complexo, contraditório, ambivalente. Só assim dá para sustentar conflitos por vários episódios. Por isso foi escrito um livro sobre séries chamado Homens Difíceis. Não se deve ter timidez em assumir o lado negro do ser humano. Como dizia André Gide, boas intenções não geram boa literatura. Essa é a principal diferença entre a série e o longa: o personagem do longa é mais unidimensional.

Da temporada

  1. O primeiro episódio coloca um problema que só resolvido no último.
  2. Um personagem é protagonista. Seu arco é claro, óbvio, consistente.
  3. Os episódios formam uma unidade. Tudo tem que ser coerente. Não há mais espaço para séries com episódios autônomos.
  4. Plantar num episódio e sempre colher no próximo. Isso garante dinamismo e engata o espectador na história.
  5. As séries devem ser bem ancoradas na realidade brasileira.

Do episódio

  1. Cenas espetaculares são obrigatórias. Seja um número musical, um monólogo incrível, uma luta impecável ou um efeito especial de tirar o fôlego. O ideal é ter pelo menos uma cena assim por episódio.
  2. Fechar todo episódio com um gancho forte para o próximo.
  3. Abrir com um teaser, uma provocação, que responde ao gancho do episódio anterior.
  4. Pensar sempre na primeira imagem que o espectador vai assistir.

Da cena

  1. Deve ter no máximo duas páginas; a média de duração nas séries é de um minuto.
  2. Pode ter mais de duas páginas se:
    ⁃ houver movimentação de personagens, ou seja, várias cenas dentro de uma só
    ⁃ se for o que os franceses chamavam de la scène a faire, a cena obrigatória, aquela que é absolutamente necessária no episódio.
  3. Começar sempre retomando um gancho da cena anterior.
  4. Deve ter conflito, ou seja, têm que existir uma ação e uma contra-ação.
  5. Podem existir cenas sem conflito apenas se forem espetaculares ou expositivas, e sempre com inteligência.
  6. Ter uma estrutura ascendente até um clímax.
  7. Ter um gancho no final. Pode ser uma transição dramática, espacial, sonora ou imagética, não importa. Sem ganchos não há continuidade. Em Stranger Things, 75% das transições tem gancho.
  8. A voz-off deve ser curta, objetiva e, se trouxer um ensinamento, deve ser pouco óbvio.

Dos diálogos

  1. Falas de no máximo 4 linhas.
  2. Show, don’t tell.
  3. Levantar uma bandeira vermelha sempre que um personagem diz o que está sentindo. É preciso investir no subtexto. Mckee sobre os roteiristas brasileiros:

Os roteiristas precisam aprender a não explicar tudo. No Brasil, os personagens dizem exatamente o que estão pensando. Não existe subtexto. É preciso confiar que o ator e o público vão entender o que está sendo dito sem precisar de todas as palavras. Isso é absolutamente fundamental na hora de criar uma série com padrão internacional.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.