Método Andrea para salas de roteiro

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
10 min readDec 14, 2021

O texto abaixo é o resumo de uma aula sobre a condução de salas de roteiro que Andréa Midori Simão ministrou no meu curso Dramaturgia Audiovisual IV. Achei que valia a pena publicar aqui porque o método de Andrea tem ótimos resultados criativos, cumpre prazos e garante um processo gostoso.

Reescrita da bíblia de venda

Equipe: chefe da sala, assistente de roteiro e um roteirista.

O produtor apresenta uma bíblia de venda do projeto para o canal. Depois de aprovada a série, o primeiro passo no desenvolvimento da sala é transformar a bíblia de venda em bíblia de sala. Dura de três semanas a dois meses, dependendo do escopo do projeto. Se é uma série sem arco, por exemplo uma série infantil de aventuras, geralmente é menor este tempo. Este trabalho envolve pesquisa, definição de tom e ritmo, tema, teste de personagens e, se der tempo, fatiar a história em sinopses.

Caso a Bíblia de venda não tenha sinopses ou estas forem completamente reescritas nesse processo, a ABRA (Associação de Autores Roteiristas) indica que os participantes desta fase entrem no crédito de criação.

Nessa etapa o assistente também trabalha no cronograma do desenvolvimento junto com o chefe da sala para que a série seja entregue a tempo para a pré-produção. Todas as datas são batidas com a produção e o cronograma é fechado.

Definição dos arcos dos personagens.

Sem pensar em episódios ainda. Prestando atenção em ver se está tudo realmente no lugar: algum personagem não aparece nos arcos? As características do protagonista são iluminadas pelas características dos outros personagens? Será que estes dois personagens aqui na verdade são um?

Definição do tom e ritmo.

Tentar entender o ritmo e o tom da série, para ficar bem claro junto ao cliente que série pretendemos fazer. O intuito é todos estarem com a mesma série na cabeça, esteticamente, para tanto o processo de sala quanto o processo de aprovações ser mais fluído.

Exemplos de atividades para se chegar nas definições de tom e ritmo da série: decupar números de cenas por episódio de séries que são referências; entender se a série é mais realista ou se permite licenças poéticas; definir o tipo de humor; fazer um mood board.

Devemos fazer um documento consolidando estas decisões estéticas, que será consultado, não só idealmente pelos diretores e outras funções criativas, mas também pelos roteiristas que entrarão na próxima fase.

Começa a sala

Equipe: chefe da sala, assistente de roteiro, 3 roteiristas.

É possível ter mais roteiristas em sala, principalmente em séries sem arco (nas quais a ordem dos episódios não faz diferença), porque nelas você poder ter, por exemplo, o roteirista que só faz punch up, (cria piadas e torna o diálogo mais engraçado), enquanto outros só escaletam ou só abrem diálogos.

Sinopses

1º) Fatiar e desbravar

Primeiro se trata de fatiar por episódio aqueles arcos que fizemos por personagens. Fazemos isso em sala ou o chefe faz sozinho.

Depois deste fatiamento dos arcos vem o que chamo de “desbravar a história”, que é pegar os eventos de todos os arcos que foram fatiados e realmente criar ali o episódio. Entender como ele começa, qual o tom dele, qual o tema, sobre o que ele fala, o que faz este episódio diferente dos demais. Será que uma festa consegue aglomerar todos estes eventos? Será que esses eventos aqui deste episódio podem estar sob o tema “separação”? Esse tipo de coisa. O desbravar eu pessoalmente gosto de fazer sozinha antes da sala atacar o episódio.

Nesta etapa de fatiar e desbravar, presto atenção em procurar ganchos fortes no final dos episódios.

  1. Garantir eventos fortes dos personagens principais em cada episódio.
  2. Encontrar o tema de cada episódio se for o caso. (As vezes não tem tema, mas então a história que se conta neste EP (episódio) precisa ser satisfatória no sentido de dar uma grande virada na narrativa. Para mim, cada EP precisa dar uma grande virada na narrativa. E pra avaliar se isso está ou não acontecendo, o documento “Sinopse” é o documento perfeito.)
  3. Verificar se cada personagem tem seu arco por episódio.

2º) Leitura vertical dos personagens

Para avaliar os arcos dos personagens, a sala lança mão de um processo que chamo de leitura vertical dos personagens, ou seja, uma lista com a progressão dos eventos (beats) que acontecem com cada personagem, em cada episódio, para ver se há coerência em suas ações, motivações e sentimentos.

3º) Pré-escaleta

Eu acabo tendo uma pré-escaleta antes da sinopse por causa do processo acima, que acaba por resultar numa lista de beats da história, ou seja, já começando a entender em que ordem cada item do arco de cada personagem entra. E este acaba ficando um documento grande, as vezes até maior que a sinopse.

4º) Sinopse

Então, quando passamos para a sinopse alteramos algumas ordens de “cenas” pra ficar mais gostoso de ler, subtraímos alguns movimentos também, com esse propósito. Mas a história tá lá, o seu núcleo duro. E é muito importante ler essa sinopse, pra sentir se a história está acontecendo, se o episódio está mesmo ali.

Quanto tempo dura esse processo de escrita das sinopses? No mínimo duas semanas pra cada sinopse. Com duas semanas dá para pré escaletar, ir pra sinopse e voltar na pré-escaleta pra mudá-la segundo os insights que a sinopse trouxe. Isso muitas vezes acontece, pois com esse tipo de documento conseguimos enxergar a história “de longe”. Essa mudança de “lentes” que a gente usa para enxergar a história é um exercício cansativo mas muito eficaz pra melhorar o episódio cada vez mais.

Uma vez escritas as sinopses, começa o processo de escaletas e roteirização. Como são escritos ao mesmo tempo, a organização do processo é bem complexa. (Como já mencionado, eu nesse ponto já tenho pré-escaletas às vezes bem maduras, resultantes do próprio processo de sinopses.)

Escaletas e roteiros

1) Escaleta V1

Chamo de EscaletaV1 o documento onde ainda não enxergamos totalmente o design da cena, mas as motivações e consequências das ações precisam estar claras, mesmo que ainda somente em intenção. De preferência o cliente recebe somente a sinopse e esta EscaletaV1 antes do roteiro. Nela, eu presto atenção em:

  • Garantir o máximo de viradas possível. Pra isso contamos com falsas viradas, passagens de cenas que soam como viradas, etc. Estamos com o botão “quero surpreender o espectador” ligado.
  • Número de cenas. Aqui é importante ter já um número de cenas razoável de acordo com o ritmo que estabelecemos na 1ª etapa.
  • Entender quais são as cenas de montagem. Muitas vezes não dá tempo de ter a cena perfeitamente montada ali ainda, e só conseguimos isso na v2.
  • Plantações e colheitas. É quase o oposto do botão “quero surpreender o espectador”, porque no caso você quer dar algo familiar para ele sentir prazer em ver este elemento (que pode ser uma ação, um personagem, um objeto ou um diálogo) de novo, ou vê-lo de novo ressignificado.
  • Dia cênicos. Não podemos partir pra v2 vendo que temos um dia de 72 horas ou temos duas noites distintas quase na sequência, por exemplo.
  • Os arcos precisam ser emocionantes. A “leitura vertical” dos personagens é um recurso que eu uso em várias etapas. Mas o da escaleta v1 é o mais importante. Se não estiver funcionando, vou precisar mudar cena de ordem, mudar dia cênico, repensar motivações.

Etapas de escrita da EscaletaV1 — que na verdade tem no mínimo 2 versões internas à sala:

  1. Um rascunho é criado na sala. Normalmente essa é a pre-escaleta que usamos pra fazer a sinopse. É escrita na sala, mas o primeiro rascunho dela sai da minha mão, que é o “desbravar a história”, que eu pessoalmente gosto de fazer sozinha pra, além de dar a minha visão, não chegar na sala tendo que construir tão do zero o episódio.
  2. Um roteirista passa a limpo, sempre de olho na sinopse. Se o roteirista percebe um furo, retorna para o chefe da sala.
  3. Chefe da sala revisa e faz notas que são discutidas em sala.
  4. Roteirista passa a limpo.
  5. Chefe de roteiro revisa e, se achar o caso, volta para a sala. Se não, faz o texto final e entrega ao cliente.

2) Escaleta V2

Chamo de EscaletaV2 o documento muito mais detalhado, com todos os designs de cena definidos, ou seja, como a cena começa, se desenvolve, chega num clímax e fecha com um gancho. Eu não gosto de entregar este documento para o cliente porque normalmente só a sala consegue entender. Para fazer uma versão que o cliente ou qualquer outra pessoa fora da sala entenda, dá muito trabalho e quase nunca temos este tempo. É um documento mais sujo mesmo, que geralmente tem em sua versão final ainda observações do chefe.

  1. O chefe da sala recebe o feedback do cliente em cima da EscaletaV1. Ele já responde este Feedback com soluções.
  2. Em sala, absorvemos as alterações que o chefe julgou que fazem sentido.
  3. O roteirista responsável por esta escaleta fica no processo de “engorda”: que é pegar a escaleta V1 bem de perto e adicionar detalhes para chegarmos num texto que é praticamente o roteiro sem diálogo. Nesta fase é importante só parafrasear o diálogo. Usar aspas somente se a exata frase precise ser dita daquela maneira, senão o que acontece é que, na hora de abrir o diálogo, acabamos correndo o risco de transcrever aquele diálogo pensado às pressas, o que não é ideal.
  4. O chefe de roteiro pega este documento, que é a escaletaV1 engordada, e faz ali observações, enche mesmo de anotações.
  5. Em sala temos a reunião de engorda, que é o chefe dando sua visão do designs de todas as cenas do roteiro, uma a uma, como irão começar, se desenvolver e acabar. Neste processo somente o roteirista encarregado do roteiro é suficiente. Se possível envolver outros roteiristas, melhor.

Nesta fase eu presto atenção em:

  • Plantar e colher no micro: dentro das cenas, nas ações e diálogos. Isso tem a ver com o tom e ritmo que estabelecemos na 1ª etapa.
  • Se todos os cortes de cena pra cena estão funcionando com ganchos, se não tem nenhuma cena que eu acabe de ler e não sinta imediatamente vontade de pular para outra. As cenas precisam começar e terminar de modo instigante.
  • Se o documento está interessante de ler pra quem tá na sala e conhece todos os pormenores. Precisa estar surpreendente mesmo para quem acompanhou todo o processo, porque cada etapa é momento de melhorar o que já temos.

Observações desta etapa:

  • De preferência o mesmo roteirista que escreveu a EscaletaV1 escreve esta EscaletaV2.
  • Quem escreve essa escaleta merece crédito de roteirista.
  • Quando o roteirista é assistente ou convidado, a escaletaV2 é feita em sala (mínimo de um roteirista e um assistente), em cima das observações previamente feitas pelo chefe de roteiro. Se possível, com a presença do roteirista convidado se for este o caso.

3) Roteiro V1

  1. O roteirista que escreveu a escaleta escreve sozinho.
  2. Chefe anota ou mexe. Dois dias anotando.

4) Roteiro V2

  1. O roteirista escreve a partir das notas do chefe da sala.
  2. Chefe anota ou mexe. Poucas notas em geral

5) Roteiro V3

  1. O roteirista escreve a partir das notas do chefe da sala.
  2. Redação final do chefe.
  3. Esse vai ser o primeiro roteiro entregue ao cliente.

6) Roteiro V1 do cliente.

  1. Recebem as notas do cliente.
  2. Chefe de roteiro responde as notas.
  3. Roteirista mexe no roteiro segundo as notas do chefe.
  4. Chefe faz a redação final e envia de volta ao cliente.

8) Roteiro V2 do cliente.

  1. Recebem as notas do cliente.
  2. Chefe de roteiro responde as notas.
  3. Roteirista mexe no roteiro segundo as notas do chefe.
  4. Chefe faz a redação final e envia de volta ao cliente.

9) Roteiro V3 do cliente.

É raro, mas as vezes continua.

Organização do processo de escrita

  • O chefe da sala tem muitas atribuições concomitantes e isso acaba impondo um fluxo no trabalho que se não for muito organizado, resulta em roteiristas parados esperando feedback do chefe.
  • Então, o assistente monta um cronograma detalhado e faz programação semanal da sala. A programação tem os objetivos da semana. Todo dia de cada membro da equipe é dividido em dois períodos (manhã e tarde), com atividades específicas para cada um desses períodos.
  • O chefe de sala não pode perder a visão de conjunto do processo e deixar a sala se perder nos detalhes. Senão, o cronograma não se cumpre.
  • A cada etapa o trabalho tem que brilhar mais, cada etapa é uma melhora no que já temos. Sem que isso signifique jogar fora o que temos. É dali pra frente, dali pra mais.
  • Ser chefe de roteiro é viver no fio da navalha entre se comprometer versus mudar de idéia. Você precisa ter comprometimento com suas decisões, caso contrário nada é construído. Por outro lado, você precisa saber quando mudar de ideia, senão o chefe não teria uma equipe pensando em conjunto, dando opiniões distintas — ele trabalharia sozinho.
  • Notas do canal vão só para o chefe. Isso porque a equipe precisa ser protegida pelo chefe de observações que às vezes são caóticas ou não são expressas da melhor maneira. Mas, mesmo assim, o chefe precisa ter uma leitura atenta e sem preconceitos de todo e qualquer feedback, pois por trás de uma observação às vezes mal comunicada, há ali algo a ser melhorado.
  • Não discutir em sala o como acontece, mas sim o que acontece. Não é preciso se precipitar em preencher a lacuna, ou seja não é para perder tempo sobre qual acidente fará a personagem perder um documento importante. Mas sabemos que é um acidente, que a locação é no banheiro, e pronto. De tarde os roteiristas, assistentes, estagiários e as vezes até o chefe da sala, se ele tiver tempo, passam lá no “brain” (documentos abertos aos quais todos têm acesso) pra colaborar. Um lê a ideia do outro, e saem sempre coisas bem legais.
  • O assistente deve ter a oportunidade de abrir um roteiro. Nesse caso o chefe dá mais feedbacks e mais prazo.
  • A sala de roteiro deve ser um espaço amoroso onde as pessoas têm prazer em trocar, onde ouvem e elogiam ideias. Um espaço onde você não precisa se desculpar por uma ideia ruim, onde você não tem medo do outro. Todos na sala estão construindo no mesmo fluxo de pensamento.
  • Em sala, o roteirista não fala somente para rejeitar uma ideia. É importante trazer sempre sua ideia, mesmo que não esteja completa.
  • Em sala, não insista em sua ideia mais de uma vez. Se o chefe já deixou claro que procura outras soluções, todo pensamento da sala precisa estar em busca desta nova solução, cuja direção é obrigação do chefe de roteiro apontar.
  • O chefe deve dar o exemplo e colocar o seu trabalho em avaliação. A sala é uma eterna avaliação, mas com a fé de que juntos se pode ir mais longe. Deixar a vaidade para fora da sala. É preciso fé no olhar do outro.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.