Tailândia-Brasil #08 — Ainda não acabou

Murillo Leal
Expresso Tailândia-Brasil
4 min readMar 24, 2021
PHOTOGRAPH BY CÉDRIC GERBEHAYE

Este texto faz parte de uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, um dos autores escreve uma carta no Expresso Tailândia-Brasil. Leia a carta anterior do Matheus aqui

Outro dia caí desproporcionalmente numa dessas publicações de blogs duvidosos. Descobri acidentalmente que a consagrada atriz Audrey Hepburn — com quem tenho um crush imortal — foi uma das celebridades que trocou de nome antes de fazer sucesso. Ela nasceu Audrey Kathleen Ruston. Nada mal, mas o Hepburn ficou melhor.

A minha curiosidade instintiva me fez seguir lendo a publicação lotada de curiosidades e mais uma vez flagrei duas coisas completamente surpreendentes: Nicolas Cage tem o sobrenome Coppola. E não é só isso. Sim, ele é sobrinho do renomado Francis Ford Coppola, mas como ele imaginou que isso deveria garantir boas chances no mundo do cinema, Nicholas Kim adotou o nome artístico para não acharem que ele não teria seus méritos.

Mas o que isso tem a ver com o nosso papo? O fato, meu amigo, é que senti uma falta danada de conversar com você por cartas. Faz 250 dias desde que me mandou a última carta. Tive notícias de que nem está mais na Tailândia, mas era tarde demais para mudar o nome do projeto. Funcionou apenas com Cage e com Hepburn falsos.

Tanto faz, na verdade. Nem eu e nem você íamos imaginar que essa porcaria de pandemia ia durar tanto. Não adianta mudar o nome das coisas à essas alturas. Fiquei sabendo que estava na Etiópia.

Aqui no Brasil as coisas não andam bem. Deve acompanhar pela imprensa mundial. Hoje, estamos com 298.676 óbitos. É verdade que temos mais de 10.601.658 recuperados. E mesmo assim, estamos vivendo uma das coisas mais insanas que podemos experimentar.

Eu preciso preservar a minha sanidade. Vou mudar ligeiramente de assunto como um truque de carteado. Estou empolgado para saber como andam seus dias. Queria mesmo era retomar este contato por pura saudade.

Não quero te preocupar, mas você sabe quando as coisas estão apertadas a gente sempre se lembra dos tempos bons. Acredita que deixei de beber por saúde? Sim, parei com o álcool. Não sei até quando dura, mas pileques não são mais uma rotina. Talvez seja culpa da idade, talvez seja falta da sua companhia. Não sei. Um dia descubro.

Não quis te chatear com as informações daqui, mas é que quando está tudo virado de perna pro ar soa conveniente escrever. A gente que escreve vive do que está diante dos olhos, mesmo que nem sempre se acostume. Por alguma razão, sabe-se de pessoas que estão morrendo às pencas. Velhos, a maioria gente de idade. O enfarto saiu de moda.

Até o futebol está sem graça. Não temos nem vontade mais de xingar as mães dos juízes sem competência por imaginar que as velhinhas podem estar sem vacina por aí. Os jogadores também não ajudam. Eu os vejo mais no Instagram do que driblando como nosso conterrâneo sulista Ronaldo fazia.

Eu até desisti de parecer um cara mais rabugento. A vida está amarga demais com todos. Ninguém precisa de um ranzinza a mais. Um galanteio com o mal-humor pode ser perigoso. Em matéria de entretenimento, eu tenho mergulhado nas séries lúdicas. Outro dia falávamos sobre a falta de Allens, mas, tenho me deliciado em coisas bobas. Inocentes. Não dá para querer a realidade o tempo inteiro.

Da minha janela tem um céu azul com nuvens rajadas que as decoram. O céu de Londrina é sempre assim. Faz tempo que não chove. Talvez até a água tenha desistido de vir pra cá. Da sacada, consigo ver cachorros levando seus donos para passear, menos carros importados desfilando porque ninguém mais se interessa e sacadas cheias de pessoas sem máscara. É como rezar uma missa e não levar a batina.

Mesmo com meus cabelos indo embora, nunca deixo a peruca cair. Não literal. Mesmo diante dos trovadores de moral ilibada dizendo as maiores besteiras do mundo com uma oratória impecável. Crianças, tenho visto poucas por aí. Essas sim estão de castigo. Até o parquinho do prédio chorou na piscina.

Bem, fico por aqui, à sua espera. Que pena que não pude te ver quando esteve em São Paulo. Essa pandemia é mesmo um arregaço. Ainda não é seguro para você me perder no meio de uma pandemia de desgraças. Eu realmente não sei o que seria da sua vida sem a minha mesquinharia de amizade.

Agora, uma coisa importante tenho que dizer pra finalizar: se você decidir que não mereço mais resposta depois de meses de silêncio, eu até entenderia sua vingança, mas saiba que eu realmente decidi virar mudo.

Nesse país, ou você se finge de louco ou é ponta de lança pra todo lado. Eu estou sem escudo mental agora. Não me cobre por ser um idiota. As vezes, essa é a melhor escapatória da crueldade que a vida tem com quem quer ser esperto demais.

Me conta sobre tudo, menos sobre o seu Flamengo porque isso é realmente um assunto delicado pro momento. Um abraço bem brasileiro.

Murillo

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Murillo Leal
Expresso Tailândia-Brasil

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