Tailândia-Brasil #01: Não-pertencimento

Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil
4 min readMay 8, 2020
Bill Murray em”Lost in Translation” (2003).
Bill Murray em ”Lost in Translation” (2003).

Tem início neste texto uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, toda sexta-feira, um dos autores escreve uma carta.

Leia a carta seguinte aqui (disponível em 15/05/2020).

Murillo, meu bruxo, te escrevo na solitude involuntária de um apartamento cafona em Chiang Mai, na Tailândia, quando deveria estar na beira da praia de Da Nang, no Vietnã, tentando a sorte com alguma mochileira europeia. O maldito covid-19, cujo nome me lembra o filho da Grimes com o Elon Musk, me prendeu aqui.

Nos fones de ouvido a voz melancólica de Lana Del Rey reflete meu momento atual. Em Hope is a dangerous thing for a woman like me to have — but i have it, faixa do maravilhoso Norman Fucking Rockwell! (2019), ela canta:

"Não pergunte se eu estou feliz, você sabe que eu não estou / Mas o melhor que eu posso dizer é que não estou triste".

Esses dias de quarentena têm me feito refletir sobre o meu cada vez mais constante sentimento de não-pertencimento. A pergunta que mais tenho ouvido dos amigos brasileiros é "por que você não volta para o Brasil?".

Respondo que, dadas as atuais circunstâncias, é mais seguro estar aqui. E de fato é, Murillo. Mas a verdade é que não quero ter que lidar com isso agora. Uma parte de mim quer voltar e criar raízes. Outra segue com essa necessidade de descobrir o que o mundo tem a me oferecer.

E ele tem coisa demais, cara.

Ainda quero morar numa fazenda no Uruguai, num apartamento minimalista no Japão, numa cabana na Islândia e, quem sabe, num apartamento hipster em Manhattan –– quando o dólar estiver mais barato, claro.

Falando em Manhattan, ontem assisti mais uma vez Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), do Woody Allen. Tem algo na personagem da Diane Keaton que me lembra, de um jeito bom, a doçura daquela gaúcha que você conhece bem.

Sinto saudades dela. E sinto saudades daqueles dias em São Paulo. Jogar conversa fora no Bar da Dona Onça, ter ideias para projetos que nunca tiraremos do papel, flanar pela Avenida Paulista, acabar a noite em algum karaokê. Olhando em retrospecto, foi o mais próximo de pertencer a algum lugar que cheguei nos últimos anos. O lançamento do livro, meus amigos, a gaúcha, o Copan, dinheiro entrando, tudo estava em sintonia.

E não pense, Murillo, que todo esse papo nostálgico é fruto do isolamento social. Eu venho experimentando essa rotina solitária desde o começo do último ano. Por vontade própria, é bem verdade, mas a cada videochamada feita na quarentena com alguma alma perdida do outro lado da tela lembro daquelas noites que virei em Tbilisi, na Geórgia, fazendo o mesmo enquanto ouvia aquele sotaque gostoso do sul do Brasil. Ver as pessoas que gosto pela tela de um celular não é algo novo pra mim.

Em quarentena do outro lado do mundo, num país em que não falo o idioma e com uma cultura completamente diferente da nossa, me sinto numa mistura de dois ótimos filmes estrelados por Bill Murray: Feitiço do Tempo (1993), aquele do Dia da Marmota, e Lost in Translation (2003), aquele com a apaixonante Scarlett Johansson e que escrevo em inglês porque Encontros e Desencontros, o título original no Brasil, não capta a metáfora do filme.

O pior da pandemia já passou por aqui, Murillo. A Tailândia foi o primeiro lugar fora da China onde uma pessoa testou positivo para o covid-19 e a curva de infectados segue descendo. O problema agora para um forasteiro como eu, meu amigo, são os efeitos disso na vida em sociedade, no novo normal.

Mesmo antes de as máscaras se tornarem obrigatórias por aqui, tenho usado uma por conta de uma declaração xenófoba do Ministro da Saúde tailandês que, dado o tamanho da merda que falou, poderia facilmente ser Ministro do governo Bolsonaro.

O cara disse no final de março, em rede nacional, que a culpa do covid-19 ter chego na Tailândia é dos turistas ocidentais. Segundo ele, não tomamos banho e somos sujos.

Desde então desenvolvi uma paranoia de que todo mundo está me olhando quando saio na rua. Sinto que não sou mais bem-vindo aqui. Que não pertenço a este lugar –– mesmo tomando banho todos os dias.

A Tailândia não é tão paz e amor quanto parece, Murillo. Os militares comandam o país, a imprensa está censurada e é proibido falar mal da família real.

Mesmo utilizando um serviço de VPN e escrevendo em português, não vou me arriscar escrever o nome do rei. Mas, cara, enquanto o negócio pega fogo aqui o maluco está num hotel na Alemanha com as… 4 esposas e 20 namoradas (!!!). Não vou linkar a matéria, mas joga no Google.

Surreal, mano.

Mas, me conta aí, Murillo, como estão as coisas em Londrina?

E as namoradinha?

Saudades de você, cara.

Um abraço,

Matheus

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Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil

Escritor, educador e palestrante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.