Manifestando paisagens habitáveis — Notar

Tainá Scartezini
Tainá Scartezini — Portfólio
8 min readMay 25, 2024
Foto: Mudas de reflorestamento, Rondônia, Tainá Scartezini, 2022.

Este texto faz parte da minha dissertação de mestrado, Quem some com o carbono?, disponível para download no catálogo de teses da USP e no meu perfil do Academia.edu.

O Andarilho se mudou para Rondônia no final dos anos 1970, a procura de não sabe bem o quê e tendo deixado mulher e filhos para trás. Mas só se mudou definitivamente para a estância em 1994, embora tenha adquirido a propriedade ainda na década de 1980. Quando lhe perguntei “por que Rondônia?”, ele me contou duas histórias106. A primeira, de quando
ainda era criança no oeste de Santa Catarina, um lugar conhecido pelas duras geadas no inverno e que conheço muito bem, pois também sou de lá. Olhando para os pássaros no céu, O Andarilho perguntou para onde iam. “Para o norte, porque no norte não faz frio”, alguém respondeu. E ele pensou que um dia seguiria aqueles pássaros e fugiria do frio. Ele conta, com muita jovialidade ainda, a surpresa que teve ao descobrir existir um lugar no mundo que nunca fazia frio. A segunda história é de seus anos em Curitiba, onde descobriu o budismo. Nessa época, pôs na cabeça que iria estudar budismo em um monastério no Nepal, porém abortou o plano assim que soube que também fazia frio no Nepal, pois o frio o “deixa
melancólico”, diz. É por conta desse rechaço às temperaturas amenas que optei por renomear o local como Estância Sol y Calor e, claro, a palavra “estância” remete ao vocabulário do sul, de onde O Andarilho vem.

O conheci por meio de meu padrinho de crisma, que é um dos muitos irmãos mais novos dele. A razão pela qual meu padrinho se mudou para Rondônia reside justamente nesta relação: se mudou para viver perto do irmão e da estância, um recanto próximo da natureza, distante dos homens e de sua vilania(107). É assim, ao menos, que eles pensam a vida naquelas
paradas. Filho de madeireiros catarinenses, ele próprio já trabalhou como um e reconhece nas atividades predatórias rondonienses uma herança do sul, algo de que Maria também me falou(108). Hoje, ambos O Andarilho e meu padrinho tentam se reaproximar daquilo que seus pais não queriam mais nem para eles, nem para si: a mata.

A estância não é tão distante de Cacoal, mas seu acesso é limitado. As estradas ainda são de chão e é preciso atravessar um rio por balsa, estando sujeito aos horários do balseiro. O Andarilho fala que no passado era pior. Não duvido. Ele se estabeleceu ali dois anos antes de Tuga começar a operar a balsa, sobre quem falei brevemente na seção “Cheiro” do Capítulo 1. O local outrora fora uma fazenda da qual se extraia madeira e estava bastante desmatado quando ele se mudou para lá. Até hoje, apesar d’O Andarilho ter replantado muitas árvores e ⅔ da área estarem preservadas(109), ainda é possível caminhar pela antiga estrada interna usada pelos madeireiros (figura 15).

O Andarilho mora sozinho há cerca de 30 anos (28 anos quando nos conhecemos, para ser mais exata) e revela que no começo a adaptação foi custosa em razão da solidão. Apesar disso, gradualmente aprendeu a reconhecer outros seres e formas de vida a seu redor, fazendo da estância seu monastério, isto é, um lugar em que ficava “quinze dias ou mais sem ver uma alma, meditava, lia e apreciava as coisas”(110). Hoje, caminha pelo terreno e sabe dizer quais animais passaram por ali observando pegadas, fezes e vocalizações, pois cada pássaro tem um canto, assim como as cigarras e os bugios também tem suas vozes. Também reconhece a
presença de alguns animais observando quais sementes ou pedaços de frutas estão espalhadas no chão, uma vez que certas plantas são consumidas somente por alguns bichos, que acabam atuando na dispersão das mesmas. Além disso, sabe reconhecer muitas plantas por várias de suas características, como folhas, frutos, sementes, cheiro, cor, tamanho, etc(111).

O Andarilho aprendeu tudo isso na prática, observando aquilo que estava à sua volta. Logo, é justo afirmar que, nesses anos sem companhia humana, se tornou um praticante das artes da atentividade. Pude vê-lo exercer sua arte da atenção durante uma trilha que percorremos pela propriedade. Nos sentamos para ver o sol se pôr (figura 14). Alguns insetos e animais costumam realizar vocalizações nesse horário, hora em que certas plantas também emitem um cheiro adocicado a fim de atrair polinizadores. Percebi o barulho, mas quando O Andarilho chamou a atenção para isso, distinguindo cada um dos sons — as cigarras mais agudas, os bugios mais roucos — naquilo que para mim era uma massa amorfa, compreendi
que para ele aquilo não barulho, era, na verdade, um som significante, um indicativo da presença de outrem. Em suma, aquilo que era cacofonia para os meus sentidos, era polifonia para os dele. É a essa habilidade de perceber a presença de outros seres, seja por suas vocalizações ou quaisquer outras características, que chamo de “notar”.

A fauna e flora do local são compostas por diversas espécies. Sem realizar um inventário exaustivo, cito aqui algumas que vi(112). Da avifauna pude observar arara, harpia, maritaca, um tipo de pica-pau, quero-quero, sabiá e tucano. Da mastofauna convive com alguns tatus e bugios cotidianamente. Também já foram registradas onças por meio de uma câmera fotográfica noturna. De insetos há uma variedade de mosquitos, além de cupins, abelhas sem ferrão e carrapatos. Da flora tem cupuaçu (Theobroma grandiflorum), manga (Mangifera indica L), cajueiro (Anacardium occidentale L.), buriti (Mauritia flexuosa), tucumã (Astrocarym aculeatum Meyer), bambu, castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa), sete copas (Terminalia mantaly., figura 22), bacuri (Garcinia gardneriana, figura 23), cerejeira (Amburana cearesis var. acreana, figura 24), angelim (Swartzia cf. grandifolia Benth, figura 25), jatobá (Hymenaea courbaril, figura 26), caixeta (Simarouba amara Aubl., figura 27), pau-amargo (Geissospermum laeve (Vell.) Miers, figura 28), cumaru (Dipteryx odorata, figura 29), imbirema (Couratari sp., figura 30) e palmeiras diversas, dentre as quais a de dendê (Elaeis guineensis). Na seção “Quem, afinal, some com o carbono: interpretando as plantas em conjunto” descrevo a vegetação do local com mais detalhes, comparando-a com a das outras experiências de reflorestamento. Também há uma tabela com os nomes científicos das
espécies ao final da seção, organizadas em ordem alfabética por família botânica.

No terço restante da propriedade, além da casa que construiu para si, O Andarilho arrenda a terra para pasto, um arranjo comum no estado. Nesses arranjos, as cabeças de gado pertencem a uma pessoa diferente daquela a que a terra onde o rebanho descansa pertence. Mas essa não é uma pastagem como outra qualquer, intensiva, é um “pasto sombreado”(113).
Nesse tipo de pastagem a terra não é completamente desmatada. Ao contrário, são dispostas várias árvores agrupadas em múltiplos pontos da terra a fim de que o gado possa comer e descansar na sombra (figura 13). Ele afirma que isso é bom para o bem-estar animal e, consequentemente, renderia mais na produção final da carne. Seria bom também para a
natureza, que não é arrasada. A lotação máxima, para ele, é de 400 cabeças em 140 alqueires, aluguel que rende cerca de R$15mil por mês. A vantagem desse arranjo, para os donos do rebanho, é não ter que cuidar da terra, isto é, fazer a manutenção dela, nem pagar multas. Outra vantagem é a alta liquidez que as cabeças de gado têm, haja vista que a venda é fácil.
Na região, é comum que pessoas peguem empréstimos em bancos para comprar as cabeças, esperem o gado se valorizar e vendam o rebanho. A operação é vantajosa financeiramente, pois a valorização compensa o pagamento de juros e ainda é possível lucrar com a venda. É por isso que se busca mais terras para instalar mais rebanhos.

O Andarilho acredita que vive como os índios, “na natureza”, diz(114). No entanto, nenhum indígena vive sozinho, ou mesmo solteiro, haja vista o problema social que isso provoca, afinal, estas são sociedades nas quais existe uma divisão sexual do trabalho, logo, um solteiro carece de alguém que execute a outra metade do trabalho e também das relações de aliança que o casamento poderia proporcionar (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 77–8). Ele, o Andarilho, lembra Christopher McCandless, um jovem nômade que usava o pseudônimo Alexander Supertramp e cuja biografia é contada no filme “Na natureza selvagem” (2007), baseado no livro de mesmo nome. Tramp, em inglês, é um termo usado para se referir a moradores de rua e/ou pessoas que viajam a pé sem se estabelecer em lugar nenhum. É uma
figura que no Brasil conhecemos como os andarilhos de beira de estrada, razão pela qual renomeei meu interlocutor como O Andarilho, apesar de ele, assim como Alexander Supertramp, ter eventualmente se estabelecido em um lugar. Ambos se desiludiram com a “civilização”, como se todos os males se originassem dela, como se a sociedade corrompesse o homem — uma perspectiva bastante rousseauniana. Por isso, rechaçaram a vida coletiva, idealizando uma vida “na natureza”, um lugar sem problemas. Entretanto, diferente de Alexander Supertramp, que morreu comendo uma planta venenosa no Alasca em 1992, O Andarilho sobreviveu à jornada de fuga até o Guaporé (cf. GILBERTO GIL, 1984).

Outra diferença entre O Andarilho e os povos indígenas é a continuidade de sua forma de vida. O Andarilho está sozinho, não tem para quem passar seus conhecimentos. Quando perguntei o que aconteceria quando morresse, numa negação do problema de continuidade, meu padrinho respondeu “mas ele não vai morrer”. Se os filhos d’O Andarilho, que ainda
moram em Santa Catarina, vão dar seguimento ao que ele manifestou, é incerto. Os dois, meu padrinho e seu irmão, afirmam que “a ideia era fazer algo para si mesmo, por fora do sistema”(115), o que demonstra um limite desse tipo de experiência individualista que surge do desencantamento com o mundo social dos humanos.

A princípio, achei esse jeito d’O Andarilho “nem esquerda, nem direita, mas jornada espiritual” um escapismo. Não deixa de ser, mas não é só isso. Fui entendendo ser também uma estratégia para lidar com seus vizinhos yaraey que, assim como ele, arrendam terras ou criam os próprios rebanhos, porém sem as mesmas preocupações ambientais. O Andarilho, justamente por sua condição de yara solitário, não tem o mesmo suporte de ONGs que os Paiter Suruí têm, por exemplo. Por causa disso precisa criar outros modos de lidar com a pressão dos vizinhos para arrendar também os ⅔ da terra que estão preservados. A explicação pela via da jornada espiritual parece convencê-los neste caso.

Apesar da pressão para desmatar, O Andarilho resiste e a Estância Sol y Calor atrai pesquisadores brasileiros e estrangeiros, assim como fotógrafos e amadores — outros amantes da natureza, observadores de pássaros — que se hospedam na casa dele para também notar as plantas e os animais.

NOTAS

106 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 61.

107 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 64–6.

108 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 76–7.

109 Nem toda mata que tem na estância foi plantada pelo Andarilho, parte considerável já estava lá. O que ele fez foi recuperar áreas mais desmatadas do local.

110 CADERNO DE CAMPO, p. 61.

111 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 66–7.

112 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 65–7.

113 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 69–70.

114 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 61.

115 CADERNO DE CAMPO, p. 64.

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Tainá Scartezini
Tainá Scartezini — Portfólio

Writer and Journalist. Brazilian and Latin American culture, literature, tips, and more. https://linktr.ee/tscartezini 🇱🇷 🇧🇷 🇮🇹 🇨🇵