Os sentidos do progresso — O cheiro

Tainá Scartezini
Tainá Scartezini — Portfólio
10 min readMay 25, 2024
Foto: Vista da BR-364 no trecho Porto Velho — Cacoal, Rondônia, Tainá Scartezini, 2022.

Este texto faz parte da minha dissertação de mestrado, Quem some com o carbono?, disponível para download no catálogo de teses da USP e no meu perfil do Academia.edu.

Ao descer do avião em Porto Velho, um ambiente de temperatura e ar controlados, fui engolfada pelo ar quente, muito embora já fosse adrugada, e por um odor acre custoso de descrever. Embora fizesse calor, havia uma névoa — hoje diria ser uma cortina de fumaça — me esperando do lado de fora do avião. Junto do calor e do cheiro de carvão queimado, essa
névoa era responsável por deixar o ar do lugar sufocante, opressivo. Na época, ainda se usavam máscaras por toda parte em São Paulo, mas não em Rondônia, como descobri depois. No entanto, estar com uma máscara naquele ambiente era tão ou mais sufocante porque o odor acre se impregnava no tecido da máscara, reforçando o fedor. Esse cheiro de queimado que me tomou de supetão me acompanhou pelos 500 quilômetros que percorri da capital até Cacoal de ônibus. Passei a viagem intrigada por essa estranha combinação entre calor, céu
azul e nevoeiro. Demorei para entender que essa neblina era, na verdade, a floresta queimando — o que agora me parece óbvio. Em Cacoal, me explicaram que a fuligem das queimadas só vai embora quando chove, mas a chuva só chega em outubro. Assim, enquanto a chuva não chega, as pessoas respiram a morte da floresta.

Em meio a fumaça, o sol nasce dia após dia como uma bola de fogo. Um cenário que ora me fazia lembrava de “Blade Runner 2049”, ora do quadro “Impressão, nascer do sol” de Monet, uma aurora pintada sob a “névoa” de carvão da Revolução Industrial. Em Rondônia, enquanto os astros estão próximos à linha do horizonte, eles já não têm mais as cores pelas
quais aprendemos a reconhecê-los: o amarelo e o prata. Lá, o sol nasce e se põe magenta (imagens 2 e 3) e a lua, vermelha.

Tuga, um descendente de colonos que opera uma balsa não motorizada de domingo a domingo das 9h às 21h desde 1996 — quase a totalidade da minha vida — acredita que a lua vermelha “é um sinal de que Deus é a favor das queimadas”(22). O balseiro, que me levou à noite até a Estância Sol y Calor, usa apenas um boné verde com a estampa “Bolsonaro 2022”
e um calção jeans. O torço, sempre exposto, é do mesmo vermelho queimado de sol que cresci vendo nos meus parentes que trabalhavam na lavoura. Tuga trabalha sozinho, à exceção de um radinho que carrega no bolso. Ali não há sinal de telefone, tampouco de internet, portanto, um celular não faria a menor diferença. Quando fica doente, o cunhado de Tuga o substitui, pois sem alguém para operar a balsa, não há como atravessar o rio sem ter de contorná-lo por via terrestre, um trajeto que pode levar muitas horas. A despeito de nossas evidentes diferenças (cosmo)políticas, senti simpatia por ele. Em todos esses anos, enquanto
eu estive em tantos lugares, lá estava ele, na balsa. Reforço que foi simpatia, não pena, que senti, porque, apesar de nossas diferenças, Tuga é bem-humorado, conversa com todo mundo, e o rio, de águas turvas, impenetrável na noite escura longe das luzes da cidade e das estrelas,
me acalmava.

Mahmud Darwich é considerado o poeta nacional da Palestina. Durante o exílio nos Estados Unidos, se impressionou com a similaridade entre a questão territorial de seu povo e dos povos indígenas. Em um dos livros do poeta (2020), ao descrever os cheiros das cidades de Acre, Haifa, Moscou, Cairo, Beirute, Paris, Damasco, Túnis e Rabat, diz: “não se deve
confiar em cidades que não se podem conhecer pelo cheiro” (p. 96). Sabendo o que sei sobre as cidades rondonienses, não posso dizer o mesmo, pois por lá é preciso desconfiar mesmo das cidades que se conhece pelo cheiro. Não obstante, se o cheiro é de fato a “presença de
outrem em nós mesmos” (TSING, 2015, p. 45, tradução livre)(23), quem, ou o que, era essa presença que se fazia viva em mim? E que passado esse cheiro condensa em si (cf. idb.)? Este capítulo é uma tentativa de responder a estas indagações.

Em 22 de agosto, onze dias antes de chegar em Rondônia, foram registrados 3.358 focos de queimadas na região norte pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O número é maior do que o registrado no “dia do fogo”, em 10 de agosto de 2019, quando
fazendeiros queimaram coordenadamente diversas áreas no Pará(24) — nove dias depois, inclusive, as cinzas desse dia chegariam em São Paulo no que ficou conhecido como o “dia que virou noite”(25). O saldo total do desmatamento na Amazônia em agosto de 2023 foi de 1.661 km², o segundo maior da série história do sistema DETER do INPE, e é 81% superior
ao registrado em agosto do ano passado(26). Agosto é um dos meses mais secos na região e, como o fogo se propaga com mais facilidade na vegetação seca do que úmida, qualquer foco de incêndio neste período pode tomar proporções inimagináveis. Em Cacoal, também logo
antes da minha chegada, no dia 26 de agosto, houve um incêndio acidental(27) iniciado por uma criança, que destruiu cerca de 400 mil m² de uma Área de Preservação Permanente (APP)(28), de modo que ainda era possível ver a vegetação carbonizada ao lado da estrada.

A paisagem é desoladora, pois as árvores não caem completamente e viram cinzas. Elas continuam em pé, só que sem vida. Mas esta não é uma paisagem desoladora somente porque são apenas árvores que morrem — como se isto já fosse pouco — ela o é porque são relações que morrem junto destas árvores. São bichos, insetos, fungos, enfim, famílias de outras gentes que se vão. São também sítios sagrados destruídos e espíritos que talvez não mais retornem. Em resumo, são indivíduos com histórias, biografias e relações que se foram. Sobre a individualidade de cada árvore, a botanista Judy Rankin, disse no documentário “A década da destruição”:

Se você olhar de relance, pode pensar à primeira vista que isso é apenas uma massa de folhas verdes indistinguíveis, mas na verdade essas árvores são tão únicas quanto seus amigos. Na realidade, esta é uma antiga amiga nossa. Já acompanho esta árvore há mais de dois anos junto de outra da mesma espécie, olhando a relação dela com as demais plantas e animais, tentando definir como ela interage com eles e a importância dela em transformar uma floresta tropical no que ela é. (In: COWELL, Adrian e RIOS, Vicente. A década da destruição. EP 1 — The mechanics of the Forest + The Storms of the Amazon, tradução livre)(29).

Portanto, não seria leviano afirmar que esse tipo de fogo destrói a memória de outras formas de habitar e criar mundos, pois substitui o emaranhado de singularidade e historicidades presentes na floresta pela monocultura de soja ou milho, ou pela criação exclusiva de gado. Neste novo arranjo só há lugar para um punhado muito pequeno de espécies e formas de vida.
É a luta da agricultura do grão contra a agrobiodiversidade (cf. SCOTT, 2017), isto é, de dois modos de se plantar com escalas e associações interespecíficas bastante diferentes.

A atmosfera opressiva a que aludi logo quando pus os pés no chão do estado não passa despercebida pelos moradores locais. Carlos Sperança, colunista do Diário da Amazônia, fez uma analogia entre o papel regulador da floresta amazônica nos ciclos hidrológicos, os “rios voadores”, e as queimadas, que ele chamou de “rios de fumaça”:

Há pessoas que não aceitam a existência de rios voadores. Embora seja um
fenômeno material e aferível, pode sugerir a ideia ridícula de boi voando. A fumaça que se ergue da destruição florestal pelo fogo também é material e aferível, mas, ao contrário do boi, ela voa, como sentem os moradores de cidades amazônicas cujo entorno as queimadas aumentaram em agosto mais que em todos os meses anteriores deste ano, de acordo com avaliação do Inpe. O “rio” voador, na verdade, é uma grande camada de vapor, que, a exemplo da fumaça, também sobe para o céu. A diferença é que em seu longo voo espacial o rio voador leva a base de elementos virtuosos que o agronegócio utiliza sem os pesados custos dos fertilizantes importados para produzir alimentos e riquezas. É até ingênuo negá-lo, torcendo o nariz para a definição poética e a certeza científica de sua existência positiva. A diferença dos rios voadores com os “rios” de fumaça que empesteiam as cidades é que fica difícil negá-los: os olhos lacrimejam, as narinas aspiram, os pulmões devolvem o que podem, espalham pelo corpo algumas de suas muitas substâncias e retêm venenos perigosos que podem levar a doenças incômodas, custosas e a longo prazo até letais. Aos que sofrem, só resta desejar que os rios voadores continuem levando vida para esta e as demais regiões e os rios de fumaça poupem as cidades de sua perturbadora asfixia. (In: Diário da Amazônia, Rondônia, Ano XXVIII, Edição n° 8150, Sábado, Domingo e Segunda, 3, 4 e 5 de setembro de 2022. Último acesso em 14 de maio de 2023, grifos meus).

De fato, o corpo rapidamente sente os efeitos de tanta fumaça, ao menos o meu sentiu: nariz extremamente seco e dificuldade em respirar sem limpezas nasais constantes. A longo prazo, as queimadas podem causar queima pulmonar e até mesmo câncer, em razão de substâncias
presentes na fumaça. Além disso, as cinzas podem intoxicar águas e peixes, que podem vir a ser consumidos por humanos.

As queimadas, no entanto, não são um fenômeno recente na história de Rondônia. Maria “dos índios”, uma indigenista que se mudou para o estado na década de 1970, a tal “década da destruição” do documentário de Cowell e Rios, me falou que naqueles anos a situação era ainda pior. Segundo Maria, “não dava para ver um palmo na sua frente de tanta fumaça”. Como se verá na próxima seção, o que motivou tamanha devastação foi um plano de colonização desenvolvido pelo INCRA sob os governos militares.

Há registros desse modelo de ocupação da região norte por yaraey, isto é, com queimadas de grandes proporções, ainda mais antigos. Algumas décadas antes, Lévi-Strauss também registrou seu choque com relação às queimadas de setembro, só que no Cerrado. Ele escreve em “Tristes Trópicos” (1996):

Eis que há semanas o mesmo cerrado austero estende-se diante de meus olhos, tão árido que as plantas vivas pouco se diferenciam das folhas secas que subsistem aqui e ali num acampamento abandonado. Os vestígios enegrecidos das queimadas parecem a conclusão natural dessa marcha unânime rumo à carbonização. (p. 341, grifos meus).

Assim, se até “1960, Rondônia não era tão diferente do que Rondon encontrou em 1910” (Mindlin, 1985, p.18), apesar dos “vestígios enegrecidos das queimadas” que Lèvi-Strauss já relatava, o que faz a década de 1970 singular é a escalada nas proporções que as queimadas ganharam.

O cheiro, essa qualidade etérea que tanto impregnou minha presença em campo — meu cabelo, minhas roupas, minhas memórias — é também tema do livro “The mushroom at the end of the world”, de Anna L. Tsing, já mencionado aqui, que tomo como ponto de partida e inspiração. A etnografia de Tsing acompanha a rede do cogumelo Matsutake, uma iguaria culinária japonesa bastante apreciada, por três continentes, América do Norte, Ásia e Europa. Ao descrever essa rede, Tsing narra a história de algumas guerras, bem como de seus soldados e refugiados, que acabam se reencontrando nas florestas para coletar cogumelo, uma alternativa de vida para os deslocados. Dentre as características do Matsutake, uma das mais marcantes é justamente seu odor. Tsing pergunta, então

Qual é a história de um cheiro? Não uma etnografia do olfato, mas a história do próprio cheiro, penetrando nas narinas de pessoas e animais e até mesmo estampando as raízes das plantas e as membranas das bactérias do solo? O cheiro nos atrai até os fios emaranhados de memória e de possibilidade. (2015, p. 46, tradução livre)(30).

Portanto, qual é a história por trás do cheiro das queimadas? Qual a história desse cheiro que traz doenças, de acordo com os Paiter Suruí (cf. BASSI, 2018, p. 57), e do qual é preciso tirar de si antes de retornar para as aldeias? É sobre isto que me dedico agora.

NOTAS

22 cf. CADERNO DE CAMPO, p. 64, 79.

23 No original: “smell is the presence of another in ourselves”.

24 FOLHA, SUCURSAL DE SÃO PAULO. “Amazônia tem dia com mais queimadas do que ‘dia do fogo’, de 2019”. Publicado por Folha de São Paulo em 24 de agosto de 2022. Acesso em: 14 de maio de 2023. Ver também a reportagem: MACHADO, Leandro. “O que se sabe sobre o ‘Dia do Fogo’, momento-chave das queimadas na Amazônia”. Publicado por BBC News Brasil em 27 agosto 2019. Acesso em: 14 de maio de 2023. E o portal GREENPEACE. “Dia do fogo completa um ano com legado de impunidade”. Publicado por Greenpeace em 2023. Acesso em: 14 de maio de 2023.

25 G1 SP, REDAÇÃO. “Dia vira ‘noite’ em SP com frente fria e fumaça vinda de queimadas na região da Amazônia”. Publicado por G1 SP em 19 de agosto de 2019. Acesso em 14 de maio de 2023.

26 WWF, REDAÇÃO. “Amazônia tem 1,6 mil km² desmatados em agosto, 80% mais que em 2021”. Publicado por WWF-Brasil em 09 de setembro de 2022. Acesso em: 09 de setembro de 2022. Ver também INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. COORDENAÇÃO GERAL DE OBSERVAÇÃO DA TERRA. PROGRAMA DE MONITORAMENTO DA
AMAZÔNIA E DEMAIS BIOMAS. DETER (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real). Desmatamento — Amazônia Legal. Último acesso em: 27 de maio de 2023.

27 Uso “queimada” ou “queimar” nos casos de focos de fogo intencionais e “incêndio” ou “incendiar” quando os focos não são intencionais, portanto, acidentais.

28 CRUZ, Jaíne Quele Cruz; AFONSO, Matheus. “VÍDEOS: criança causa incêndio que consumiu mais de 400mil m² de área de preservação em Cacoal, RO”. Publicado por G1 RO e Rede Amzônica em 27 de agosto de
2022. Acesso em: 05 de setembro de 2022.

29 No original: “If you look you may just think that at first glance this is just a mass of green leaves that are indistinguishable, but, really, these trees are as individuals as you and your friends. In fact, this is an old friend of ours. I’ve been following this tree for over two years now along with the other from the same species looking to its relationship with the other plants and animals, trying to define how it interacts with them and its importance in making what a tropical forest is what it is”.

30 No original: “What is the story of a smell? Not an ethnography of smelling, but the story of the smell itself, wafting into the nostrils of people and animals, and even impressing the roots of plants and membranes of soil bacteria? Smell draws us into the entangled threads of memory and possibility”.

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Tainá Scartezini
Tainá Scartezini — Portfólio

Writer and Journalist. Brazilian and Latin American culture, literature, tips, and more. https://linktr.ee/tscartezini 🇱🇷 🇧🇷 🇮🇹 🇨🇵