Uma familiaridade incomoda

Tainá Scartezini
Tainá Scartezini — Portfólio
10 min readMay 24, 2024
Foto: Rondônia, Tainá Scartezini, 2022.

Este texto faz parte da minha dissertação de mestrado, Quem some com o carbono?, disponível para download no catálogo de teses da USP e no meu perfil do Academia.edu.

Quando começaram os conflitos pela terra em Rondônia? Me fiz esta pergunta diversas vezes durante a pesquisa. Tentando respondê-la, fui em busca de notícias a respeito de conflitos envolvendo os Paiter Suruí. Para minha surpresa, o primeiro texto publicado em um veículo de mídia no qual eles são mencionados data de agosto de 1976 (3) e versa, justamente, sobre conflitos com “posseiros”(4). Alguns anos antes, em 2 de fevereiro de 1960, o governo Kubitschek começara a construir a BR-364 (ROMERO, 2020, P. 22), então chamada de BR Marechal Cândido Rondon, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciara os projetos de colonização na região, provocando um fluxo migratório sem precedentes (MINDLIN, 1985), que se intensificou com o posterior asfaltamento da rodovia pelo governo militar em 1983.

Os povos indígenas que habitavam o local, Suruís, Cinta-Largas, Zorós,
Uru-eu-wau-waus, entre outros, se viram pressionados por todos os lados e, em 07 de setembro de 1969, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) estabeleceu contato com os Paiter Suruí. No dia seguinte, outro grupo de Paiterey foi até Espigão d’Oeste, cidade colonizada pela empresa privada de colonização Cia Itaporanga S.A. (ROMERO, id., p. 228) para encontrar encontrar os yaraey, no entanto, poucos registros existem sobre este segundo contato. Esse período é relembrado pelos Paiterey como o Tempo das Correrias e do Contato (BASSI, 2018). Ao mesmo tempo em que guerreavam com outros indígenas, seus inimigos históricos, estavam a todo momento correndo para receber os presentes dos sertanistas da FUNAI.

O contato com os yaraey (“não-indígenas”), trouxe doenças desconhecidas para os povos indígenas, que foram quase exterminados por sarampo, gripe e tuberculose. Os mais velhos tentaram alertar os jovens do perigo, mas foi em vão.

“(…) logo encontramos a doença e a morte. Da forma como foi avisado, aconteceu mesmo. Os guerreiros morreram, os velhos quase todos morreram. Só restaram alguns jovens” (idem, ibidem). As doenças eram associadas ao cheiro dos brancos que, segundo eles contam, tinha perfume, gasolina, gás, fumaça, todos muito diferentes do ar puro da floresta. Por isso, quando os velhos e guerreiros iam ao local do Contato, impregnados desses cheiros, na volta eles passavam dias longe da aldeia, tratando seus corpos para não pegarem as doenças e a levarem consigo, contaminando assim a aldeia. (id., p. 57),

O impacto foi tão profundo que os Paiterey recorrentemente afirmam que “com os yaraey vem sempre a sombra da morte” (BASSI, 2018, p. 57).

Como seria, então, contar a história de Rondônia e narrar as mudanças na paisagem local causadas por essa violenta onda migratória a partir da sombra da morte que os yaraey trazem consigo? É isso que procuro fazer aqui: recontar uma das muitas histórias do Brasil a partir de seus conflitos por terra, pensando também a relação entre as espécies nativas, exóticas e invasoras.

Todavia, ao me aventurar nesta pesquisa, não esperava que meu caminho para uma terra distante me levasse de volta para minha terra de origem. Digo isso pois minha mãe também é uma “colona”. Filha de migrantes gaúchos, ela nasceu numa linha no interior de Santa Catarina que fora aberta por um projeto de colonização do INCRA nos anos 1950, muito semelhante às linhas que levam para a terra indígena (T.I.) dos Paiter Suruí pelas quais andei enquanto estive em Rondônia. De certa forma, sou também uma descendente da “sombra da morte”. Por mais que lute por não levá-la comigo, poderei algum dia afirmar que ela não me acompanha considerando tudo que desmataram aqueles que vieram antes de mim?
Certamente, não esperava que a pesquisa fosse tomar o rumo que tomou, que eu fosse me reconhecer nos colonos de lá e que eles se reconhecessem em mim por conta de nossa origem rural e étnica compartilhada. Não esperava encontrar partes da minha própria história numa pesquisa que não dialogava em nada com a autoetnografia, nem que isso fosse me causar
tanto desconforto (unheimliche). Talvez nada disso tivesse acontecido se eu não estivesse escrevendo um romance de temática semelhante, que provavelmente jamais será publicado, mas cuja função quiça tenha sido reenquadrar minha pesquisa. Afinal, o inconsciente leva justamente a elaborar aquilo que quer ser elaborado e eis me aqui.

Muitas coisas em Rondônia me fazem lembrar do sul, desde a disposição das quadras, em retas perfeitamente alinhadas, até os produtos que encontrei no mercado. Geleias, doces alemães, pães e erva-mate, coisas típicas do sul que raramente encontro em São Paulo, abundam lá. Igualmente, os nomes das cidades rondonienses também me remetem ao local que nasci, o oeste de Santa Catarina, uma região, que junto do oeste do Paraná, é muito mais próxima da cultura gaúcha do que do restante do estado. Dos cinquenta e dois municípios que compõem Rondônia, doze levam “oeste” em seu nome. Similarmente, nove dos duzentos e noventa e cinco municípios catarinenses e dezenove dos trezentos e noventa e nove municípios paranaenses também têm “oeste” em seu nome. Machadinho D’Oeste — RO, Espigão D’Oeste — RO, Ouro Preto D’Oeste — RO, Santa Luzia D’Oeste, RO, São Miguel Do Oeste — SC, Herval D’Oeste — SC, Iporã do Oeste — SC, Ouro Verde do Oeste — PR, Diamante D’Oeste — PR, Rancho Alegre D’Oeste — PR, Santa Maria do Oeste — PR e tantos outros. Os novos habitantes de Rondônia não levaram para lá apenas plantas, alimentos e doenças, eles também nomearam as cidades que fundaram conforme a imagem deles, isto é, com as referências deles, como o nome de suas divindades. Afinal, nomear também é um exercício de poder, de efetuar a partilha do real e de marcar a presença. Ademais, referenciando constantemente o oeste, tal toponímia faz lembrar que estamos em um outro Brasil, distante do mar, próximo da fronteira. Nascer nesse Brasil fronteiriço, de Rondônia a Santa Catarina, é crescer migrante uma vez mais, querendo acreditar no mito de uma nova terra prometida.

Algumas diferenças entre as regiões, entretanto, é importante ressaltar. “Ser do sul”, em Rondônia, não indica necessariamente origem de nascimento em um dos três estados do sul: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O pai de R., um amigo rondoniense, apesar de ter nascido no Ceará, como morava no Paraná antes de se mudar para Rondônia, entrou para as estatísticas e para a vida cotidiana como mais um dos paranaenses sem terra que migraram para o norte em busca de melhores condições de vida. Da mesma foram, migrantes oriundos de São Paulo e do Espírito Santo também são compreendidos como “do sul”, quase como se “do sul” estivesse mais para um operador geográfico para tudo aquilo que está abaixo do norte rondoniense do que para o nome de uma região geográfica específica. Assim, como categoria nativa, podem ser “do sul” tanto pessoas que tenham passado por lá antes de chegarem em Rondônia, bem como pessoas que de fato nasceram no sul, ou no sudeste, e seus
descendentes. Se compreendi bem o fenômeno, da mesma forma que os pardos claros adentram o grupo dos brancos em “Preconceito de marca” (NOGUEIRA, 1998), pessoas de outras origens são incorporadas ao grupo “do sul” e compartilham com eles de um privilégio racial que lhes é atribuído, ao ponto de R. relatar perceber ser melhor tratado por ser lido
socialmente como “do sul”.

Outro ponto que gostaria de chamar atenção diz respeito aos usos da categoria “colono”. Esse é o termo pelo qual o INCRA chamava os assentados de seus projetos, independente da região na qual esses projetos fossem realizados. No sul, porém, “colono” é mais do que isso. A expressão se tornou uma identidade, uma autodenominação usada pelas populações campesinas. Também pode ser usado como um termo derrogatório, como
xingamento e, nesse sentido, se assemelha ao “caipira” de outras regiões do Brasil. De modo geral, no sul há uma associação entre campo, pobreza, rudeza e não domínio da língua portuguesa, pois entre esse grupo ainda é possível encontrar falantes de línguas de imigração, como é o caso da minha família, que fala talian, um dialeto italiano semelhante ao dialeto
vêneto. Por outro lado, a cidade, seus habitantes e ofícios são associados com o falar e o portar-se corretos. Para algumas pessoas é, inclusive, vergonhoso dizer-se “colono”. Não tenho certeza se o mesmo acontece em Rondônia. O tempo que fiquei lá não foi suficiente para compreender se o termo também se tornou uma identidade naquele contexto. No entanto,
conversando com O Andarilho, um “colono” catarinense que se mudou para Rondônia no final dos anos 1970, ele ainda se pensa nesses termos e este foi um ponto de interlocução importante entre nós dois.

Ademais, há ressonâncias e dissonâncias entre as figuras do “colono” e do
“colonizador”. Sem dúvida, os “colonos” são um agente da colonização, uma vez que são a linha de frente de um projeto precário de progresso, ou seja, a chegada deles em novas áreas causa a desapropriação de comunidades nativas. Só que precário, pois não lhes foram fornecidas quaisquer garantias de seguridade, emprego, renda, etc, apenas promessas
indeterminadas de um futuro melhor. Contudo, os “colonos” não são os senhores de engenho, donos de grandes propriedades e escravos(5). Os “colonos” são pequenos agricultores familiares. Diferente dos colonizadores, eles próprios trabalham sobre suas terras, e diferente das pessoas escravizadas, eles ficam com os lucros de seu trabalho.

Essa não fora, entretanto, a primeira vez que eu sentira tal familiaridade(6) incomoda. Alguns anos antes, durante uma sessão do documentário Martírio de Vincent Carelli (2016), fui tomada por uma sensação inquietante de reconhecimento com os ruralistas do centro
oeste. Suas casas e ruas lembravam minha cidade natal, seus traços e expressões faciais, meus parentes e conterrâneos. Em outra ocasião, ao visitar a exposição Conflitos: fotografia e violência política no Brasil 1889–1964 no Instituto Moreira Salles em 2018 senti o inverso: um não reconhecimento. Quem eram aquelas pessoas que haviam lutado pela mesma terra que nasci, o Contestado, mas que não se pareciam com ninguém com quem convivi? Para onde foram? O que aconteceu com elas? Teriam todas morrido na guerra? Ou a chegada dos “colonos”, nossa chegada, teria-os expulsado dali?

Qual a razão, então, para esta familiaridade causar tanto inquietamento? Em suma, acredito que essa familiaridade incômoda seja sintoma do descompasso entre a antropóloga que sou e a criança que fui. Dito de outra forma, é difícil reconciliar a discordância política que sinto pelos pioneiros que expandem a fronteira agrícola com minhas memórias afetivas
juntos aos meus “colonos”, também uma espécie invasora a seu modo.

Essa autorreflexão não é em vão, pois sem ela não teria como situar minha posição em campo, uma vez que foram justamente relações de compadrio / para-parentesco que me permitiram realizar o trabalho de campo. Isto, pois fiquei hospedada na casa de meu padrinho de crisma, Eduardo, compadre de minha mãe, em Cacoal-Ro, e sobretudo porque o irmão de
meu padrinho, O Andarilho, é um interlocutor e personagem central destas páginas. Logo, parte de minha entrada em Cacoal foi possibilitada por estas relações familiares, de modo que era preciso discorrer sobre elas também. A outra parte do campo foi possibilitada pelo
intermédio que Betty Mindlin e Maria “dos índios” realizaram entre mim e alguns Paiterey. A questão da minha origem também foi ponto de conexão com Paulo da Ecoporé, que é natural do Paraná e cujo cunhado nasceu na mesma cidade que eu.

Outrossim, a antropologia aprendeu com feministas negras que nenhum cientista é imparcial, que nossas vidas se misturam sim com nossas pesquisas e que a neutralidade não está na imparcialidade, mas no ato de explicitar que o conhecimento que produzimos é um conhecimento situado, ou seja, que ele emerge de relações, corpos e contextos específicos
(COLLINS, 1986, 2019; HARAWAY, 1995, 2009; RIBEIRO, 2017). Assim, se “na pesquisa etnográfica, estar em campo e escrever a partir dele é deparar-se com a evidência do seu próprio corpo e lidar com sua visibilidade material e simbólica, colocando-o em questão” (NASCIMENTO, S., 2019, p. 460), então, era mais do que necessário tomar o devido tempo para colocar em questão meu próprio corpo, minha própria história e meus pertencimentos.

Não obstante, ainda movida pelas feministas negras, indago: quais as implicações éticas desse reconhecimento? Isto é, quais as implicações éticas para a pesquisa de uma jovem antropóloga que começa interessada pelos indígenas Paiter Suruí e termina se reconhecendo nos “colonos” da região, naqueles que trouxeram a sombra da morte até os indígenas? Como
Djamila Ribeiro bem argumenta (2017), eu começaria respondendo que é preciso explicitar nossas posições e nossos privilégios. Assim, estas páginas são o resultado de quem viveu, viu e ouviu o lugar deles, dos “colonos”, mas que também foi embora e aprendeu a ver, ouvir e
viver de outras formas. De certo modo, este trabalho está no limiar entre uma auto e uma alter antropologia, entre um testemunho e uma reflexão, pois embora não seja rondoniense, sou filha de uma “colona”, assim como muitos rondonienses o são. Essa familiaridade incomoda, portanto, revela um véu que existe entre minhas memórias e as narrativas familiares que me foram passadas e passadas aos rondonienses, de um lado, e a historiografia, de outro. O véu, como membrana maleável e permeável que é, permite que estes dois lados se toquem, mesmo que pertençam a domínios diferentes. Logo, interessa-me, sobretudo, acessar os pontos-cegos do ponto de vista dos “colonos”. E aí, talvez, esteja um caminho ético a ser percorrido, para que, enfim, o tempo dos muitos, e não apenas o dos brancos, possa prosperar.

NOTAS
SOBRE A SEÇÃO: 2 Esta seção é um desdobramento de uma reflexão que escrevi em campo (CADERNO DE CAMPO, p. 76–7).

3 ESTADÃO, Sucursal de Brasília. “Funai só demarca área com proteção”. Publicado por: Estadão, em 03 de
agosto de 1976. Acesso em: 20 de agosto de 2021. Ver também INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Acervo de notícias. Último acesso em: 09 de março de 2022.

4 “Posseiros” é como a reportagem chama os “colonos” dos projetos de assentamento dirigido pelo INCRA e os migrantes que adquiriram terras por meio de empresas privadas de colonização, a exemplo da Companhia
Itaporanga dos irmãos Melhorança.

5 A colonização de Rondônia durante a ditadura pode ser subdividida em duas fases, a do desmatamento e a da concentração de terras, como é visto na seção “A visão” do capítulo 1.

6 Não faço alusão aqui a ideia antropológica de estranhar o familiar e familiarizar o estranho. Antes, procuro usar a palavra em um sentido mais básico, primário até, como aquilo que remete à família e que é íntimo. Talvez, mais próxima do unheimlich de Freud.

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Tainá Scartezini
Tainá Scartezini — Portfólio

Writer and Journalist. Brazilian and Latin American culture, literature, tips, and more. https://linktr.ee/tscartezini 🇱🇷 🇧🇷 🇮🇹 🇨🇵