3x4 — entrevistas

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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7 min readMar 5, 2021
Imagem da internet.

Hoje iremos conversar com,

Davi Selton, artista em sentido amplo, é fotógrafo e produtor de conteúdos visuais e digitais, através da Nobir Produtora (instagram @ nobirprodutora). Além do audiovisual, suas produções também se estendem à literatura e à música.

Jefferson Turibio, nascido em Guarabira — PB, mas radicado em Natal — RN, Jefferson Turibio é poeta, professor, graduando em Letras — Língua Portuguesa pela UFRN e autor do fanzine independente, MELANOMANIA (2020).

Thiago Medeiros, é ator, poeta e produtor cultural potiguar. É um dos organizadores do Sarau e Selo editorial Insurgências Poéticas. Autor de Quanto Mar Cabe no Sal da Lágrima (recém lançado), além de outros.

Aproveitem!

Para você, o que a arte representa na construção da identidade de um povo?

DAVI: A arte, como parte integrante das culturas, representa a conservação da identidade dos povos através da manifestação do ser. Me refiro à manutenção como uma prática àquela cultura, que é mutável. Penso que a cultura, assim como a arte, modificam-se ao passar das gerações.

JEFFERSON: A arte, para mim, representa o próprio povo. No caso das línguas dos povos de um país como o Brasil, temos uma identidade marcada por apagamento de inúmeras manifestações linguísticas e culturais. Por conta disso, a língua que está ligada diretamente às vertentes da arte, é de suma importância na construção da identidade um povo. No caso da poesia, isso se mostra de forma mais complexa por conta do próprio fazer poético, que é o que difere poesia de música, prosa, e outras formas de fazer arte. O poder da palavra no papel ainda é importante.

Marize Castro diz algo muito bonito na orelha do seu terceiro livro de poemas, o “Poço. Festim. Mosaico.”, e eu acredito que cabe escrever aqui: “esta escritura, aitada por ancestrais, / é a minha única herança. / é tudo o que eu tenho. é tudo o que eu sou.”. E isso para mim é o texto poético exalando identidade de um lugar, dos povos deste. Assim podemos pensar que as línguas de um povo são plurais, e é preciso que haja a garantia de suas existências e, sobretudo, o respeito.

No entanto, a língua em si, como bem intangível, consegue sortir influências de outras línguas, como é o caso do português com as línguas indígenas, as línguas africanas, e vice versa. Uma está para outra, mesmo que o português brasileiro seja muito mais presente nos grandes centros. Vejamos Natal: nós temos a presença brilhante de muitas palavras indígenas que nomeiam alguns de seus bairros e cidades adjacentes. Exemplos: Pajuçara, Potengi, Parnamirim etc.

Como é o seu processo criativo?

DAVI: Talvez não haja um método que explique o meu processo criativo. Cada linguagem há o seu modo, mas o primordial são as vivências. É orgânico. Dificilmente existe um momento o qual “paro para produzir arte”. Não gosto dessa ideia de obrigação em fazer arte. Existe essa cobrança devido a necessidade do dinheiro. Existe o processo criativo em prol do trabalho, que vem como uma obrigação, e o processo criativo em prol da minha livre expressão. Nesse último, é onde se encontra o orgânico. Caminho entre a música, literatura, fotografia e audiovisual. Em todas essas linguagens, quando penso em minha livre expressão, apenas deixo fluir. Na música, por exemplo, muitas coisas surgem no contato com o instrumento, e a depender do dia, a melodia se modifica. Assim como na fotografia. A inspiração vem do acumulado de situações do cotidiano. Posso imprimir um sentido melancólico numa foto que imprime, teoricamente, um sentido oposto, mas como o meu estado sentimental estava sorumbático, descrevo o que senti ao fazer aquela obra. Prefiro que as pessoas fiquem com as impressões delas.

JEFFERSON: Meu processo criativo é muito solitário. Muitas vezes angustiante. Confesso que essa pergunta tem um grau de complexidade que eu não sei se dou conta. Mas, estou sempre escrevendo. Achei que quando lançasse meu fanzine de poemas, iria me resguardar. Muito pelo contrário, continuo a escrever quase que diariamente. Mesmo que seja o que chamo de “ideias de poemas”, que ao longo do tempo pretendo poli-los.

Um fato interessante é que nos últimos anos comecei a escrever muito mais pela manhã. Apesar de ser uma pessoa noturna, meus processos estavam muito ligados ao modo como o mundo se configurava antes da pandemia. Tudo precisou ser redimensionado. Não poderia ter sido diferente com a minha escrita. Mas não negarei o fato de que os dias estão cada vez mais densos para mim, e acabo chegando extremamente cansado à noite.

Com isso, é perceptível a mim mesmo que meus processos estão muito de acordo com o que eu consumo (seja arte, notícias, o simples olhar a rua e o céu), como eu consumo todas essas coisas e o quão disposto estou de fazê-las terem sentido na minha vida cotidiana.

THIAGO: Como se fosse um rio percorrendo: beiras, margens, caminhos. Na literatura ele nunca é linear, estou sempre ouvindo músicas, lendo coisas, passeando pela cidade. Tem muita aba aberta na mente desse ariano. Acho que é isso que dá o movimento do processo criativo. Antes de publicar um livro escrevo em muitos cadernos, blocos, agendas. Não sei explicar como e quando, mas chega o momento de um estalo: agora é o momento de partilhar esse material com o mundo em livro, zine. Quando chega esse momento, envio para pessoas em que confio e vou trabalhando nos poemas até melhorar ou piorar. Gosto de trabalhar com pessoas que conheço e confio, gosto de me aprofundar nessa equipe, gastar e redescobrir nossas potências. Tenho tentado prezar pela qualidade do trabalho que venho buscando nestes 15 anos de dedicação exclusiva ao meu ofício. A equipe se entende e conversa e colocamos as obras na rua, para o público, para outros olhos e mãos, mas ele não acaba com a publicação. O pós dura minimamente umas 10 horas de trabalho por dia de frente ao computador, em reuniões intermináveis, em choro, desespero, re-entendimento. O processo criativo do trabalho com a arte envolve outras questões e aprendizados dentro da cadeia produtiva: assessoria de imprensa, cartazes, textos para publicações, mensagens individuais, prestações de contas, relação com as redes sociais e o mundo virtual, contas a pagar… E por aí vai, não finda nunca.

A arte deve se submeter a algo?

DAVI: Ninguém deve se submeter a nada. A arte deve ser libertadora, uma expressão do ser. A partir do momento que há submissão, imposição, o fazer artístico se torna um Tripalium. Sob pressão não há expressão. Prefiro me referir às pessoas, do que a “arte”, visto que ela é uma parte da cultura de alguém.

JEFFERSON: Deve? Resumidamente, acredito que a arte, como esse fazer humano que nos torna mais humano, tem que refletir o seu tempo. E ela não deve se submeter a tudo. Não é possível agradar a todos com o todo que a arte pode ser. Para nós artistas, sempre fica aquele recado de Nina Simone: “Como você pode ser um artista e não refletir o seu tempo?”.

THIAGO: Acho que muito se busca um encaixotamento das produções e, no meu ponto de vista, a arte e o artista, assim como todo trabalhador autônomo, vai transformando suas experiências, seus caminhos nos encontros com pares, dificuldades, motes de pesquisa. Não sei se a arte nos faz permanecer no mesmo lugar por muito tempo, é um processo de amadurecimento para não adoecermos perante as dificuldades. Enquanto trabalhador pertencente à classe artística, não tento e nem consigo me submeter, partilho com o mundo minhas inquietações como ser humano, cidadão, trabalhador em um país desgovernado. É necessário ter alguma beira para se segurar sem morrer: quando os bons encontros acontecem, quando não me sinto sozinho nesse caos.

Fora do âmbito artístico/literário, quem/o que exerce influência direta (tanto quanto possível) sobre a sua produção/criação?

DAVI: Me inspiro em situações e pessoas do cotidiano. Dificilmente há uma influência direta sobre. Se houver, não foi intencional. Usar alguém como um pretexto para o meu fazer artístico, é imitar a vida alheia. Prefiro a originalidade, mesmo que aos trapos disfarçados da imitação.

JEFFERSON: De modo geral, a minha vida cotidiana real (o contrário de virtual), fora das redes sociais, dos espaços acadêmicos, e instituições com esses vieses. Acredito que minha relação com a natureza influencia muito, bem como aspectos astrológicos, e toda forma possível que me faça encontrar oportunidade de comtemplar o mundo pelo mundo, mesmo que isso seja feito, por hora, apenas pelo meu portão, ou quando vou ao banco, e aos Correios postar fanzines para os leitores de MELANOMANIA.

THIAGO: Minha mãe e sua trajetória de mulher preta, nordestina, lavadeira, manicure, dona de casa, nascida e criada no bairro do Alecrim junto com minhas tias, minhas primas, minha irmã mulher trans preta, crescida na periferia de uma cidade. Tenho cada vez mais buscado estar perto e regar minhas raízes para tentar florescer em meio aos concretos da vida.

Minhas memórias do Alecrim são minhas mais fortes influências, tenho vida e propriedade para mergulhar e falar, porque elas são minhas e, de alguma maneira, de outras pessoas, quando partilho esses cenários na minha arte. Os amores que pintaram, os reais e os inventados, os bons encontros, meu psicólogo e minhas desconstruções. No teatro, a improvisação acontece quando temos alguma bagagem para responder às provocações da cena, ele não acontece do nada, é assim na minha trajetória como humano e trabalhador, revisito esses lugares na memória para não só desconstruir facetas do péssimo ser que fui, mas sobretudo, me dar alguma humanidade na reconstrução do ser humano que estou me tornando. Um pouco péssimo, talvez, melhor que ontem. Não diferente de nenhum outro humano que acolhe suas reformas. Só pra quebrar um pouco o protocolo, partilho aqui uma referência de obra que tem me transformado, um poema de Álvaro de Campos, criado de 1914 a 1935: Poema em Linha Reta.

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