Adeus — Rafael Pellegrino
teus olhos eram difíceis de encarar naquela hora. tocavam a garganta como o arco muitas vezes faz vibrar o pranto no fundo do violino. assistiam-me no entanto. tua feição perante mim era um pequeno dente-de-leão tremendo contra os lábios de um menino. bem sabias. a minha voz iria dispersar todo o teu sorriso. em breve teu coração iria rugir esfacelado. e no entanto a tua presença era implacável. quase fria. quase alheia. julgava-me. ainda que com a pureza de um rouxinol que canta e não sabemos se com isso busca impedir o ocaso. ou matar de vez o sol. resignado. teus olhos decretavam sombras sobre mim. eu sentia-os sem os ver. nas têmporas. esperava tua sentença. olhava fixamente os teus pés claros sobre o chão que desabava. agradava-me a ideia de que a tua tempestade desaguasse em meus ouvidos. um turbilhão de acusações. todas merecidas até a última gota das minhas intenções cruéis. agarrava-me à esperança de que o peso da tua ira aliviasse enfim o peso da culpa sobre as costas. mas em vão. não houve ira. nem juízo. sequer a tempestade. apenas a noite. e o sereno dos teus olhos. teu semblante desfazendo-se em mil pétalas de orvalho no meu ombro. doía não poder olhar-te a face. ainda assim estavas bela. eu sabia. tua imagem era sentida nos meus braços. o odor de sal que te escorria até a boca me lembrava da beleza do mar que a todos distancia. senti uma correnteza me evadir o peito. algo como uma saudade. doía-me o crime de te manter tão perto como o crime de ter que te afastar. senti alguma coisa em mim romper-se quando enfim te pude olhar nos olhos. naquela hora eu teria suportado eternamente a beleza do teu rosto com ambas as mãos. não estivessem elas ocupadas em apunhalar o peito. cabe até hoje a mim saber: de quem.