Alegoria da solidão — Daniel Ribas

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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3 min readMay 20, 2022
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“Take a trip, you’ll lose yourself / Watch the world breath / Heart is racing, minds pounding / Let me sit down because I’m comin’ up” — Headrillaz (“Good is bad”)

É a mãe que lhe abraça até esmagar sua alma e engoli-la. Dentro de seu útero, você é ligeiramente digerido. Sabe que está vivo, mas quebrado. Aos poucos, seus nutrientes são consumidos e vocês se tornam uno. Este é o momento perigoso. Vestido em seu couro, comete atos impensados. Alguns irreversíveis, outros que só prolongam a dor, numa sádica brincadeira de pique-pega. Pode ser inofensivo em meio à neblina emocional, mas é um bloco que atravessa a rua sujando tudo a seu redor: amizades, reputação, autoestima.

O carnaval é vendido e celebrado como a época da união. Ao sair, pessoas bebem, cantam, pulam, se fantasiam ou mostram suas verdadeiras faces. É lindo. Como todo evento extremo, há um oposto logo na esquina. Aqueles que não gostam do caos festivo, os que se sentem isolados em meio a um turbilhão que toma conta de corações e mentes, não necessariamente doentes da cabeça e do pé.

Ouvi ou li que datas comemorativas costumam ser escolhidas por suicidas por conta disso. O isolamento expande de tal forma que estoura uma bolha. Há muitas formas de se matar. Beber até cair, retornar antigos hábitos autodestrutivos. É inevitável que a reunião de muitos implique na exclusão de certos indivíduos. O que está fazendo aquele cara sentado na calçada, tentando cheirar uma carreira, mas tão intoxicado que cai pra trás e se deixa estar, como se admirasse os pontos brancos no céu escuro? E o maluco que gritou numa mesa com amigos, tal uma fera num rompante? Com sorte, será o sujeito que levará somente um olho roxo.

A solidão, como o pó, vicia. A baixa estima é um RG para os muitos que não se sentem envolvidos na coletividade. Nem todos os gritos são por ajuda ou dor. São atestados de existência. Quando eu morrer, serei visto. Nem que seja por um folião perdido na madrugada, vendo aquele corpo exposto e tira uma selfie. Há maldade nisso? Depende do ponto de vista. Às vezes, alcançamos nossos objetivos. Raras, acredito, são aquelas em que tudo acontece exatamente como esperado. O evento, o agora, é o mais importante, e todo o resto é latinha e lama no chão. Pular samba, pular da janela.

Talvez os momentos de celebração tenham um toque de morte em si. Todos apagam suas existências anteriores para viver uma ocasião única. Alguns retornam para o próximo ano, outros não. A solidão, no fim, resiste. O mundo é um moinho, diz o verso. Esta mãe que nina e enforca. Destaque na avenida todo ano. Você só não a escuta em meio à bateria.

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