Apneia — Guido Santos

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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2 min readJan 14, 2022
Arte de Nú Barreto

— O cilindro é pra mergulhar. Me dê um escafandro, e eu fico igual seu boneco.

O vô em nada parecia meu Playmobil escafandrista. Nem conseguia sair da cama, muito menos dar um mergulho. Mesmo assim, me agarrei à comparação, feita entre arquejos, sem desconfiar que uma brincadeira pode encobrir um adeus.

Zarpo daquele quarto asséptico para a manhã em que flagrei minha mãe aos prantos. Desde quando adulto chora? É que o vô estava bem mal, confessou. Num salto, vislumbrei solução: Vamos levar aquele suco horrível pra ele, mamãe; vitamina C sara dodói. Ela entreabriu um sorriso úmido.

O vô, na verdade, já embarcara numa viagem sem volta. O luto é que chegou lá em casa se arrastando, sem internet nem celular. Todo o depois está turvo. Nem sei por que não pude ir ao enterro, talvez fosse muito pequeno. Na falta de despedida, a perda vagou indigesta. E o tempo condensou uma fantasia em crença: se eu tivesse levado o suco, ele estaria vivo.

Respiro. Fundo. Fumaça.

Soçobrar memórias sufocadas emerge no agora o ausente. Viagem, me desloca até certo alívio. Bem ou mal, o vô esteve amparado em seus últimos dias, até com direito a visitas e despedidas. Sintoma do novo normal, morte digna virou pérola.

Seguir fica mais difícil sem um adeus. Os dias vêm mutilados. Talvez perdure o marasmo. Ao menos até ser possível narrar cada história submersa nas estatísticas. Ainda dói tanto a lembrança dos condenados a uma apneia permanente. Suplicando por oxigênio, não receberam cilindro nem escafandro, apenas panaceias tão eficazes quanto o suco. Só que acerola não tem esse intragável sabor de escárnio com inumeráveis vidas.

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Revisão: Itaercio Porpino

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