Banquete dos séculos — Milena Martins Moura

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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2 min readApr 23, 2021
Dacosta, figura, 1951. Fonte: Web.

1.

guarde meus olhos nos seus bolsos

com esmero

como coisa frágil e agitada

como um cão à janela

comendo o v e n t o

para ser feliz direito

guarde os meus olhos num escuro

que por bem seja fundo e calmo

e próximo do peito

e as bulhas ocas possam embalar

um sono que não teme

senão

o que se mostra

[é preciso haver luz para ver]

2.

os meus sentidos guarde todos em silêncio

talvez entre

os seus dentes

talvez entre

os seus dedos

mas não permita que eu desfaça

entre

os seus dentes

entre

os seus dedos

apenas segure firme essa tormenta enquanto existe

e se mostra nas paredes

em vermelho-sangue

vivo

de mim

desse mistério todo meu

que me redime

que me define e me faz pária em descontrole

não fuja agora

enquanto eu quebro

na frente dos seus olhos talvez férteis

guarde os meus sentidos em braços firmes

e aperte bem tudo que é meu

até que eu sufoque

as onDas

os barcos afogados

os peixes todos mortos de sede

nesse quarto escuro onde vim dar

de cara

nos tacos

para sobreviver

3.

era preciso apenas cantar

como um pássaro preso

mas pássaros têm o mistério da partida revelado

todos os dias

entre as asas

e as minhas asas foram servidas no jantar

4.

eu vim aqui de corpo inteiro

saltar

no

fundo

do

perigo

e de lá

assistir

a sua fuga alucinada

num medo insano

de não saber

como falar todas essas frases sem os meus olhos como guia

5.

guarde o meu amor num lugar menos óbvio

talvez

na fresta da porta

talvez

no forro do teto

no fundo dos livros que nunca são lidos

nos papéis em branco para nunca

guarde o meu amor porque é estranho

aos mais sensíveis

que querem da vida uma novela das seis

inacurada

de época

com falas difíceis de gravar

[o meu amor não tem vestido longo nem sacerdotes]

ele tem as minhas mãos nos seus cabelos

depois de três milênios de iniciação

e um corpo todo

arremessado no fogo

de carne em carne

talvez ele não seja o maior amor do mundo

porque todo amor é apenas um

e tudo o mais

é o segredo das paredes

mas o ofereço todo cru e novo

para o prato principal

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