Doce — Milena Martins Moura
Um poema para o medo.
as paredes da casa são fortes contra as intempéries
enchentes tormentas
verão carioca
granizo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas a casa
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a casa é só uma criança
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um corpo frágil erigido no meio de outros corpos frágeis
fadados à imobilidade dos monumentos
à sucessão de mementos
com olhos pintados
sobre as pálpebras
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aos apegos malfadados dos imortais que nos sobrevivem
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⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a casa é só uma criança
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀com dores da idade
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uma veia estourada na área de serviço
sujidades que não saem com saliva de mãe
corcunda e cãs e faces encovadas
pontadas nas juntas no frio
medo de trovoada e do escuro
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a casa quando abre sua boca
para mostrar enfado
engole o quente dos corpos como quem sorve sopa
e diz que sopa não é janta
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀quer sorvete
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é uma criança com frio e com sono
como toda criança nascida em 56
quando as casas pernambucanas não deixavam o frio entrar
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e mais vazia se torna quanto mais vazia eu me deito
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tem um sopro nos cantos da casa
assoviando lamentos
lembranças demais para olhos tão frágeis
famílias demais que foram suas e estão mortas
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⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀lamentos
um suspiro abandonado de orfandade
maladia crônica aguardando mais uma morte como recidiva
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esse sopro me esfria extremidades
braços pontas dos dedos
cotovelo
nariz
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e as costas da nuca
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀onde se sentem os mortos
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é o sopro de uma criança bufando sonolenta
na frente dos desenhos repetidos
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uma criança tomando café com leite e pedaços de biscoito maizena
como toda criança nascida em 56
quando era para dormir sem esperar mamãe mandar
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a casa já carpiu ivetes e elianas
já carpiu paulos e outros nomes que não lembro
carpiu as mãos que a moldaram casa
e os corpos que a fizeram lar
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há de carpir milenas pedros gatos e pés de beringela
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e nomes futuros
que não arrisco
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sempre de pé
enlutada como somente uma criança
centenária
poderia
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os prédios vindo tomar-lhe horizontes
assomando pérolas na noite
com poder de morte
e dias contados
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lá fora
minha vida à espera
tem a pressa das perdas
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aninho a casa nos braços e canto-lhe uma canção antiga
das que me cantava dona helina
em criança
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embalo-a até que pegue
no sono pesado
de quem não devia ter sofrido
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para que descanse vazia e inteira
enquanto o progresso
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀que empilha corpos como se brincasse de construção
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀com os blocos de madeira das infâncias velhas
não vem
soprá-la em ruína
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para que durma e não sonhe
nem chore ao me ver sair
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”Doce” é um poema sobre ansiedade social, agorafobia e síndrome do pânico, intensificadas pelo isolamento durante a pandemia — males que têm sido cada vez mais comuns entre jovens e adultos ao redor do mundo e tornam o simples ato de deixar a segurança de casa algo assustador.
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