Doce — Milena Martins Moura

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
Published in
3 min readJul 16, 2021

Um poema para o medo.

Fonte.

as paredes da casa são fortes contra as intempéries

enchentes tormentas

verão carioca

granizo

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas a casa

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a casa é só uma criança

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

um corpo frágil erigido no meio de outros corpos frágeis

fadados à imobilidade dos monumentos

à sucessão de mementos

com olhos pintados

sobre as pálpebras

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

aos apegos malfadados dos imortais que nos sobrevivem

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a casa é só uma criança

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀com dores da idade

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

uma veia estourada na área de serviço

sujidades que não saem com saliva de mãe

corcunda e cãs e faces encovadas

pontadas nas juntas no frio

medo de trovoada e do escuro

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

a casa quando abre sua boca

para mostrar enfado

engole o quente dos corpos como quem sorve sopa

e diz que sopa não é janta

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀quer sorvete

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

é uma criança com frio e com sono

como toda criança nascida em 56

quando as casas pernambucanas não deixavam o frio entrar

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

e mais vazia se torna quanto mais vazia eu me deito

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

tem um sopro nos cantos da casa

assoviando lamentos

lembranças demais para olhos tão frágeis

famílias demais que foram suas e estão mortas

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀lamentos

um suspiro abandonado de orfandade

maladia crônica aguardando mais uma morte como recidiva

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

esse sopro me esfria extremidades

braços pontas dos dedos

cotovelo

nariz

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e as costas da nuca

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀onde se sentem os mortos

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

é o sopro de uma criança bufando sonolenta

na frente dos desenhos repetidos

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

uma criança tomando café com leite e pedaços de biscoito maizena

como toda criança nascida em 56

quando era para dormir sem esperar mamãe mandar

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

a casa já carpiu ivetes e elianas

já carpiu paulos e outros nomes que não lembro

carpiu as mãos que a moldaram casa

e os corpos que a fizeram lar

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

há de carpir milenas pedros gatos e pés de beringela

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

e nomes futuros

que não arrisco

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

sempre de pé

enlutada como somente uma criança

centenária

poderia

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

os prédios vindo tomar-lhe horizontes

assomando pérolas na noite

com poder de morte

e dias contados

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

lá fora

minha vida à espera

tem a pressa das perdas

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

aninho a casa nos braços e canto-lhe uma canção antiga

das que me cantava dona helina

em criança

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

embalo-a até que pegue

no sono pesado

de quem não devia ter sofrido

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

para que descanse vazia e inteira

enquanto o progresso

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀que empilha corpos como se brincasse de construção

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀com os blocos de madeira das infâncias velhas

não vem

soprá-la em ruína

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

para que durma e não sonhe

nem chore ao me ver sair

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

”Doce” é um poema sobre ansiedade social, agorafobia e síndrome do pânico, intensificadas pelo isolamento durante a pandemia — males que têm sido cada vez mais comuns entre jovens e adultos ao redor do mundo e tornam o simples ato de deixar a segurança de casa algo assustador.

Se você gostou do texto, clica nas palminhas(claps): vão até 50!

--

--