Entrevista com Luizza Milczanowski, autora de “O diálogo”

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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8 min readFeb 22, 2022

Por Marcela Güther

Foto cedida.

Uma mulher que guardou, por muito tempo, a verdade dentro de si. Com a morte do seu abusador, ela finalmente se sente livre para dizer, para romper o silêncio. A morte é um espaço de reconstrução do quebra-cabeça de sua vida e do resgate de sua voz. Presa nas garras do que entrelaça abuso e afeto, ela se vê diante da dor de amar o algoz. A cura não é simples ou linear. O abuso finca feridas sempre prontas para sangria.

Esse é o mote do primeiro livro da escritora carioca Luizza Milczanowski, “O Diálogo”, publicado pela editora Penalux. Ao longo de 160 páginas, a autora percorre — em um monólogo escrito em terceira pessoa, focado em uma personagem central, que não é nomeada — , o crescimento de um corpo de menina-mulher no mundo, passando por questões centrais como silenciamento, abuso, morte, tempo e memória.

Dividido em cinco capítulos e com prefácio de Aline Bei, “‘O Diálogo’ é feito de dentro, do que é ser um indivíduo no mundo, com suas contradições e complexidades, e dessa relação com o meio social. “Um livro que faz, como a memória, um movimento, indo para trás e para frente”, aponta a autora, que extravasa a narração padrão, entrelaçando a voz condutora da história com a da personagem central, oferecendo ao leitor uma visão ora interna, ora externa da mesma protagonista. A obra transpassa por outros assuntos fortes, como depressão, alcoolismo, violência, suicídio, solidão, existencialismo, pobreza e autoestima.

Luizza escreve poesia e prosa, mais associada a gêneros híbridos ou experimentais. Além de “O Diálogo”, participou das coletâneas do Prêmio Off Flip de Literatura 2021, nos gêneros Poesia, Contos e Crônica; da antologia Entre Janelas, vol. II (2020), da Oribê; e da coletânea Conpoema, do concurso de poesias Professor Roberto Tonellotti. Colaborou, ainda, com diferentes revistas literárias, como a Revista Philos, Intransitiva, Subversa, Inversos, LiteraLivre, Valkirias, Ventania e RelevO. Escreve ensaios, principalmente sobre Vladimir Nabokov, autor cuja obra divulga pela página “Nabokovia”.

Foto cedida.

O que motivou a escrita do seu romance “O Diálogo”?

A necessidade de escrever a história dessa menina/mulher, em todas as suas nuances, de dar voz a essa personagem, que já existia há tantos anos na minha escrita. Eu comecei a perceber a presença dela em diferentes contos, narrativas curtas, e de diferentes maneiras, em diferentes tempos e circunstâncias. Escrevi esse livro para dar voz à minha protagonista (dentro dela, vive cada menina), para que ela pudesse contar a sua história — complexa e contraditória — sem interrupções. Eu queria, mais do que isso, narrar o silêncio, e a dor no silêncio.

Quais os temas centrais do livro? Por que escolher esses temas?

O silenciamento. A memória. O tempo. O corpo. O crescimento de um corpo de menina-mulher no mundo. É um livro que fala sobre muitas questões, como a morte, a depressão, o alcoolismo, a violência, o suicídio, a solidão, o existencialismo, a pobreza, a autoestima, a infância e o crescimento. Esse conjunto de fatores, lembranças e sentimentos que nos tornam aquilo que somos de maneira completa, complexa e contraditória. São temas que me atravessam, que me incomodam, que me perturbam, que me emocionam, que me doem, que me trazem muitos questionamentos. Eu não escolho os temas para uma história, quer dizer, as histórias surgem a partir dos temas. Isso porque o artista (e aqui eu falo dos artistas visuais também) tem um conjunto de temas que se formam e desfazem, obsessões que o atravessam em um longo fio multicor. Marina Svetaeva fala bem disso, dessa cronologia do poeta. É uma construção que perpassa todas as obras e que vai ser marcada de rompimentos e continuidades. O Diálogo parte da minha construção como artista ao longo desses anos. Seria impossível escrevê-lo hoje.

Quais são as suas principais influências literárias?

Eu tenho várias influências ou inspirações literárias, seja de forma consciente ou inconsciente. Um autor, uma ideia, um fragmento de obra podem se entranhar em mim, de alguma forma, e na minha escrita. De forma consciente, acredito que Hilda Hilst seja uma grande influência. Tudo nela transborda e me fascina, inesgotável. Outra autora é Marguerite Duras, fundamental para que eu me encontrasse na escrita que pode ser fragmentada, de dentro, e que, como eu, não se preocupa em separar a escrita da vida. E, para ficar apenas em três, Vladimir Nabokov, um autor dos detalhes, dos jogos de luz e sombra, um pintor de palavras que não tinha medo de brincar com o leitor. Mas eu posso citar alguns outros autores: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, Raduan Nassar, Franz Kafka, Vladimir Maiakovski. Com certeza esqueci de vários.

Que livros influenciaram diretamente “O Diálogo”?

Quando estava escrevendo O Diálogo, não pensei em nenhuma obra em específico que pudesse ou estivesse diretamente relacionada à sua construção. Acredito que as maiores influências, nesse sentido, são de obras de filosofia: o existencialismo Sartreano e o erotismo em Bataille. Muito provavelmente a psicanálise. Mas, olhando em retrospectiva, eu fiz questão de utilizar e brincar com algumas obras e autores, como Hilda Hilst, Marguerite Duras, Serguei Dovlatov, Franz Kafka, Lewis Carroll, Vladimir Nabokov. Eu adoro brincar com referências.

Você escreve desde quando? Como começou a escrever?

Escrevo desde que me alfabetizei, e antes disso já inventava histórias. Escrever sempre fez parte de mim. Primeiro com histórias de criança: mesmo os meus desenhos vinham acompanhados por uma narrativa. A criança é um todo arte, não é, faz parte da nossa construção como sujeitos. Depois, com os diários. Mas, eu me lembro perfeitamente quando comecei a escrever ficção de maneira consciente. Tinha uns dez ou onze anos e precisei escrever um conto na escola. Eu me lembro até mesmo da história, em detalhes, da sensação de escrever e de dar fim. Criar me trouxe uma felicidade tão intensa, completa, e eu pensei: é isso que eu quero fazer.

Você tem uma rotina de escrita?

Depende muito de como andam as demandas, a minha rotina de trabalho. Quando estou com uma rotina mais flexível, gosto de passar parte da manhã lendo e escrevendo, envolta em referências, do meu material de estudo, de palavras e imagens. Ter esse tempo de manhã faz toda a diferença nas minhas possibilidades de criar e na minha escrita. Em uma manhã ideal, eu acordo bem cedo, faço e tomo meu café com tranquilidade e gosto de observar o silêncio, de sentir o silêncio, olhar a janela, olhar o papel. Depois, eu escrevo, seja um projeto definido, seja uma escrita livre. Gosto de escrever para pensar, deixar as palavras tomarem corpo. Isso me ajuda a compreender o que quero, o que preciso, o que sinto. Se estou em um projeto grande, como um livro, escrevo livremente, pensando sobre a história, sobre as personagens e sobre o conteúdo simbólico envolvido, ou dou seguimento ao livro em si. Mas não é uma obrigação. Se não estou com vontade de escrever, leio, desenho — desenhar é uma ótima maneira de escrever. Nem sempre a palavra está pronta para vir e precisa acontecer de outras formas. Mas nem sempre tenho a possibilidade de seguir essa rotina, infelizmente, e as necessidades práticas ou o cansaço podem me engolir. Costumo escrever melhor de manhã ou à noite. Não tenho nenhum ritual específico, mas a escrita costuma acontecer depois de um trabalho interno, de uma inquietação, de um incômodo ou de uma necessidade que nasce no corpo. Às vezes, um sentimento muito bonito de criar; às vezes, uma dor que precisa ser escrita. Tento respeitar os meus momentos de maior e de menor criação, até porque a escrita acontece também no interno, enquanto vivo e observo o mundo. O que me ajuda a escrever é estar em contato com outras formas artísticas, todas, não apenas livros, mas filmes, pinturas, artes visuais no geral. Estar envolta, embebida em arte. Além disso, para mim, é essencial guardar a surpresa de olhar o cotidiano e de estar atenta ao que acontece ao meu redor, aos pequenos detalhes da rotina, das microrrealidades. A escrita se fermenta em todos os lugares e nada é simples ou ordinário demais para a arte. Tem uma frase do Nabokov que eu gosto muito que diz mais ou menos assim: A vida é mais extraordinária do que nós.

Você poderia comentar um pouco sobre como é o seu processo de escrita?

Normalmente a ideia surge em um pequeno fio ou ponto luminoso, e eu vou, a partir daí, traçando, tateando ao redor, surpresa e curiosa. O que aquilo quer me dizer? Quem são essas pessoas? O que é essa história? Para aonde isso vai? O momento de criar é o meu favorito e também o mais difícil. Faço muitas anotações para conhecer aquele terreno novo, para tentar compreender as questões que se colocam naquela história. A partir dessas questões, a pesquisa vai se tornando necessária, mas não costumo ter todas as respostas. Algumas questões só serão respondidas ao longo da construção do texto. Trata-se de um processo quase obsessivo, que me toma inteira.

Como você estimula a criatividade, para ter ideias para suas histórias?

As ideias surgem de diversos lugares, dos sentimentos, da memória, das pessoas, dos espaços, da arte. Para criar, preciso estar rodeada de arte e de vida, o que perpassa uma interioridade muito grande. É, sobretudo, cultivar uma forma de olhar o mundo, de estar atento às pessoas, aos movimentos, às cores, aos cheiros. Manter essa surpresa e esse estranhamento diante do mundo. Sou uma escritora que escreve de perto — gosto de falar da minha realidade, me interessa o processo de lembrar e de imaginar, um pouco dessa escrevivência que a Conceição Evaristo explica tão bem e que levo para mim. Ela diz: “Esta com(fusão) não me constrange”. Sou carioca, por exemplo. Moro no subúrbio. Quando leio determinadas perspectivas da minha cidade, acho estranhíssimo. Que Rio de Janeiro é esse, sabe. Não me interessa escrever sobre essa cidade, já tão explorada na literatura. Quero escrever um outro Rio. Basta olhar para a Central do Brasil ou para os vendedores no trem, ou para essa estranha classe média e suas casas uniformizadas. A escrita vai nascer disso também. De incômodo, de questionamentos.

Quais são os seus projetos futuros? Está escrevendo alguma nova obra?

No momento estou me dedicando a escrever um novo romance. Não sei quanto tempo ele ainda vai demandar de mim, mas não tenho pressa. É uma história que já me engoliu inteira e se fermenta aqui.

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Revisão: Itaércio Porpino

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