Iorique — Daniel R. Ribas

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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2 min readJun 9, 2021
Pintura de Zdzislaw Beksinski. Fonte.

Há um guerreiro errante que segue um ídolo arruinado. Por anos sem conta busca seus escombros na terra devastada pela fúria de um sol seco e brisas brilhantes. Se esperar colar os pedaços ou absorver o que quer que reste da força do falso mito, nunca se descobriu. O passado, presente e futuro são conceitos cutâneos para andarilhos. Ainda mais um, ou vários, que avistaram a espada distante, acima de tudo e todos, mas sentiram o beijo frio. O toque de que a mitologia torpe pregava. Aquele que seu adorador salivava. As línguas de aço que regem.

O peregrino nota que a cada três passos a terra sobre que passa se liquefaz. Uma substância de visco e odor de emaranhado de algas marcava um tapete de boas-vindas ao contrário. Ele não pisca, sequer funga. É irmão dos porcos, acostumado a triturar restos humanos jogados ao público. Arrota, devora, sem discernimento. Abre as mandíbulas para as sobras de seu mestre, o orador dos ventos podres que alimentava o ânimo de sua milícia. Seu capitão mal-fadado, outrora elevado, agora abandonado. O soldado isolado, porém, não hesita a caminho de seu oasis, fiel ao resgate dos valores tradicionais ermos.

Enquanto se debate no lamaçal, pega uma pedra. Solta, áspera, cortante em um sorriso. Familiar. Com esforço, navega através do lodo e alcança a outra margem. Levanta-se e percebe que retornou ao ponto em que começou a afundar. Está nu, o grude reluz feito ferrugem de armadura em sua pele. Encara o tesouro resgatado. É maior do que parecia quando o tocou no pântano excrescente. Bate uma emocionada continência. O amuleto pontiagudo, outrora sólido, escorrega e começa a se desfazer, sorridente. O homem-boi, que tanto vagou e prosperou até a lava dos dias lamber o solo em lamento, entra em desespero. Grita “És tu, meu comandante?” A lama em seu rosto cai no ídolo e acelera seu desaparecimento. “Estrume”, responde o pedregulho sorridente. De novo, o cão humano late: “És tu, meu comandante?” Os restos empoeirados soltam: “Cu”, e esvai entre seus dedos. As lágrimas do que se via como guerreiro, e errou, se juntam às sobras da estátua que sumira, formando um caldo amarronzado grosso. Nota que sua mão, tal qual a estátua, se converte em partículas lançadas ao vento. Vira fuligem sob o sol, que aguarda novos ídolos de barro em seu palco de traições imemoriais.

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