Lenta caminhada para o abismo — D B Frattini

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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9 min readDec 31, 2022

Drama em um ato escrito por DB Frattini para o ator e diretor Paulo Yutaka. A peça foi encenada em 1987 e reestruturada para o grupo Boi de Mamão no ano de 1995. Composto em doze cenas, a peça será publicada na Tamarina em três partes.

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Mapa holográfico de rota de fuga — Gustavo Amaral

NONA CENA

Breno fica sentado em um dos cantos da cama, um foco de luz ilumina sua figura. A mulher entra em cena e senta na outra extremidade da cama. Um outro foco de luz a ilumina. Nota-se que os dois, cada um em uma das beiradas da cama, esperam por alguém.

MULHER — (Entediada). Como vai? (…). Já nos encontramos por aqui, como é mesmo o seu nome?

BRENO — Breno.

MULHER — Estou esperando minha filha.

BRENO — (Desinteressado). Ah, sim.

MULHER — (…). Ela é um pouquinho problemática, sabe?

BRENO — Não me diga.

MULHER — (…) O senhor também é?

BRENO — O quê?

MULHER — Problemático?

BRENO — Completamente.

MULHER — Esse é o primeiro passo.

BRENO — Como?

MULHER — Reconhecer que é.

BRENO — Não entendo?

MULHER — Os problemas, percebe? (…). O primeiro passo para se resolver um problema é o reconhecimento do problema.

BRENO — Ah, sei.

MULHER — (…). Então, o senhor conseguiu aceitar que tem um problema?

BRENO — Acham que sou maluco.

MULHER — Não me diga? Que chateação, hein?

BRENO — Sou.

MULHER — Assim é melhor. (…). Minha filha tem medo de andar sozinha pensa que vai ser estuprada por todo mundo.

BRENO — Pânico?

MULHER — O médico diz que é psicótica.

BRENO — Ah, P.M.D. Toma lítio?

MULHER — Faz pouco tempo.

BRENO — Os psicóticos maníaco-depressivos têm um comportamento interessantíssimo.

MULHER — Muito.

BRENO — (Mecânico). Venho aqui três vezes por semana. Encontro todo tipo de gente com problemas psiquiátricos. A sala-de-espera é uma escola: não tem quem não goste de contar o próprio caso. (…). Penso que querem manter uma espécie de disputa: meu caso é pior que o se; essas coisas. Insegurança de louco é uma tristeza, não suportam quando alguém consegue ser mais doido do que eles. É até engraçado. Às segundas-feiras isso aqui ferve, acontece um verdadeiro campeonato de demência aqui dentro. (…). Dessa gente que sofre com uma fobiazinha já vi que não gosto. Os psicóticos costumam ser muito simpáticos. Os casos de neurose mais avançada são profundamente entediantes, pura histeria, uma chateação só. Tem gente que senta aí e fica olhando para a parede sem piscar, outros não ficam quietos, tem de tudo, tudo, tudo.

MULHER — (Cabisbaixa) Quanto sofrimento.

BRENO — (Surpreso). Ficou chateada? Mas, não devia. Isso tudo faz parte. A senhora também chega lá, pode acreditar.

MULHER — (Levanta-se). Com licença (…). Tenho que comprar cigarros.

BRENO — Ah, sei. (Encara a mulher). Cuidado com a sua filha. Às vezes, os desvarios podem ser catastróficos. Lítio, minha senhora. Nunca se esqueça do Lítio.

MULHER — (Cordial). Até logo. (Sai de cena).

DÉCIMA CENA

Breno continua na cama. As luzes voltam (um rosado suave geral). O homem vestido com um jaleco xadrez e a mulher trajando um jaleco listrado entram em cena (tanto o xadrez quanto o listrado de seus jalecos têm os tons vermelhos carregados misturados aos violáceos intensos).

MULHER — (sobe e fica posicionada em uma das extremidades da cama). Sei que você me quer.

HOMEM — (sobe e fica na outra extremidade da cama) Como eu sei…

O homem e a mulher, como se fossem uma só pessoa, começam a assediar Breno abertamente (suas movimentações procuram pelo toque, mas nunca se encontram).

MULHER — Então, o que a gente vai fazer?

BRENO — (contorcendo-se sobre o leito). Por favor (…).

HOMEM — Não consigo pensar direito. (…). Não brinca comigo.

BRENO — Isso não pode dar certo.

MULHER — Se você soubesse?

HOMEM — Se entendesse?

MULHER — O quanto te amo!

HOMEM — É tudo o que eu quero!

BRENO — É loucura.

MULHER — Loucura?

HOMEM — Você não sabe o que é isso.

MULHER — Não seja tolo, a louca aqui sou eu.

HOMEM — O louco. O perdido.

MULHER — (abre o jaleco). Meu corpo inteiro está pedindo por você.

HOMEM — (abre o jaleco). Olha! Olha o que você fez comigo.

MULHER — Ninguém pode tratar uma mulher desse jeito.

HOMEM — É covardia! (…). Um homem não pode viver assim.

BRENO — Ai de mim.

O homem e a mulher tiram os jalecos. Violentos, os dois, pulam sobre Breno e começam a despi-lo (os três ficam nus).

HOMEM — Não faça isso comigo.

MULHER — Preciso de você.

BRENO — É o inferno!

HOMEM — Vamos transformar esse inferno em paraíso.

MULHER — Basta você querer.

HOMEM — Pare! Não resista, não adianta.

MULHER — Fugir.

HOMEM — Você lembra? (…). Lembra da primeira vez?

MULHER — Tentei fazer o dever de casa para você. (…). Sua mãe descobriu.

HOMEM — Foi no banheiro do ginásio, você perguntou se meus pelos das pernas doíam.

MULHER — Nossas letras eram muito diferentes.

HOMEM — Eu disse que não.

MULHER — Notou pela letra.

HOMEM — Você falou que os seus doíam.

MULHER — Corri e me escondi atrás do sofá.

HOMEM — Notou que minhas pernas eram mais peludas.

MULHER — Você me encontrou e foi lá.

HOMEM — Foi lá que pela primeira vez você passou as mãos nas minhas coxas.

MULHER — Enfiou a língua dentro da minha boca.

HOMEM — Meu corpo inteiro ficou arrepiado.

MULHER — Nosso primeiro beijo foi de língua.

HOMEM — Você me masturbou no banheiro do ginásio.

MULHER — Tirou minha roupa atrás daquele sofá, me tocou e eu…

HOMEM — Tive meu primeiro orgasmo.

BRENO — (desesperado). A culpa não foi minha.

MULHER — Fiquei viciada.

HOMEM — Grudei em você, te perseguia por todos os cantos.

MULHER — Acho que nunca mais saí detrás daquele sofá. (…). Ainda estou lá.

HOMEM — Grudado em você.

MULHER — Sempre que estou com você preciso ficar nua, percebe? Você me transformou em uma mulher pelada.

HOMEM — Olho para você e começo a suar. Penso no ginásio e fico maluco.

BRENO — Deus! (…). Ah, meu Deus, o que foi que eu fiz?

MULHER — Não importa. Quero que você me toque.

HOMEM — Aproveita o meu suor. Molha a boca em mim.

MULHER — Eu te amo.

HOMEM — Não me deixe.

BRENO — (desvencilhando-se do homem e da mulher). Nunca amei ninguém.

HOMEM — Eu te amo.

MULHER — Por nós dois.

BRENO — Isso não é amor.

HOMEM — Não?

MULHER — Como, não?

DÉCIMA PRIMEIRA CENA

A mulher e o homem se afastam de Breno. As luzes perdem seu tom rosado. Breno, no meio da cama cobre a cabeça com o travesseiro. A mulher e o homem descem do leito e pegam seus jalecos. Ficam posicionados um em cada extremidade da cama.

MULHER — Fale comigo.

BRENO — Não.

HOMEM — A gente precisa conversar.

BRENO — Não.

MULHER — Uma vez você me disse que iria tentar.

BRENO — Não.

HOMEM — Não estou exigindo nada.

MULHER — Só não quero que as coisas fiquem assim.

BRENO — Vai embora.

HOMEM — A gente podia levar uma vida muito boa.

MULHER — Você nunca acreditou em mim.

BRENO — Vai embora.

HOMEM — Eu podia cuidar de você.

MULHER — Faria tudo pela sua felicidade.

BRENO — Vai embora.

O homem e a mulher pegam seus jalecos e saem de cena. Breno, ainda nu e muito abatido senta-se na cama e tenta suavizar a própria nudez colocando o travesseiro sobre o colo.

BRENO — (cansado fala para alguém que está por perto). Não fui eu. (…). Juro por Deus! (…). Estou aqui há tanto tempo, você devia saber que não faço isso. (…). Se acredita, pare de me olhar com essa cara. (…). Não acredita em mim? Acha que estou mentindo? Eu sei. todo mundo por aqui pensa que sou mentiroso. É verdade: não fui eu! Não tenho motivos para mentir, não tenho motivos para mais nada. Estou aqui, não estou? Não posso sair daqui. Não vou a lugar algum. Não fui eu! (Pausa, olha para os lados e berra). Não faço xixi na cama! Quem mijou na minha cama? Quem foi o babaca que mijou aqui? Estão me perseguindo. É? Querem me tirar do sério? O que foi que fiz? Fico quieto no meu canto, não mexo com ninguém. (…). Quem fez essa maldade? (…). Pare de me olhar assim! Não fui eu! Eu não! Não faço isso! Nunca mijei na cama! (…). Não sei quem foi, mas desconfio. Aqui ninguém me engana (…). Não foi um, nem dois, nem três. Estou começando a entender. (…). Fizeram fila? É? Todo mundo mijou na minha cama. Até você! (Mais calmo). Vou ficar quieto, pode deixar. (…). Por favor, não faz mais xixi na minha cama. Não deixa ninguém fazer xixi aqui. (Deita e cobre a cabeça com o travesseiro). Por favor. Não gosto. Não quero mais. Tenha um pouquinho de paciência, tenha dó. Por favor.

DÉCIMA SEGUNDA CENA

As luzes concentram-se sobre o leito. As contorções de Breno estão cada vez mais violentas. O homem e a mulher, ambos trajando jalecos brancos, entram em cena e ficam posicionados atrás da cabeceira da cama.

HOMEM — Tudo sob controle.

MULHER — Falta um pouco de coerência. Não quero ser chata, mas falta coerência.

BRENO — (Convulsionando). Não me fale em alta! Alta, não!

MULHER — São muito irresponsáveis: castigam o próprio corpo; vergastam o próprio espírito. Não, não posso aceitar, é ridículo!

HOMEM — Não esqueceu o número do meu telefone? Esqueceu? Ainda tenho telefone. Viu? Qualquer coisa é só telefonar, a secretária eletrônica está sempre ligada. Sei que não gosta de deixar recados, mas eu retorno, pode deixar seus recados à vontade, eu retorno. (…) Retorno, sim!

MULHER — Vai achar isso divertidíssimo: outro dia, encontrei uma camisinha no metrô; fiquei segurando a camisinha; os passageiros me olharam espantados; as pessoas não têm mais o que fazer. (…) Preservativo dentro de transporte coletivo é coisa básica! Não existe nada mais precioso nesse mundo!

BRENO — (suas convulsões estão lentas). Alta? Não! Não, não fale em alta! (Cansado e com falta de ar). Não posso. Não quero. (…). Não me obrigue! Alta? Não, não, não!…

MULHER — Aprontei o testamento. Está tudo certinho, você não vai precisar se preocupar com nada. Depois que o câncer me matar você entrega os papéis ao advogado e pronto. A vida pode ser tão simples… Pronto. Precisamos procurar por um efeito prático em tudo o que fazemos. Pronto. O câncer é pragmático. Pronto. Tudo muito simples. (…). Te amo tanto que chega a doer.

HOMEM — Estou cansado. Não suporto mais arrastar essa leseira, não quero mais saber da sua morbidez. Estou farto desse esgotamento. (…). Dane-se! Que se foda a minha redundância! Essa gastura está me engolindo: é um tédio só; uma canseira só; uma fadiga sem fim. (Berra). Entre eu e você restou a morte.

BRENO — (no fim de suas forças). Alta? Alta, não…

HOMEM — (impassível). Tão inteligente, tão culto, tão sensível. Deveria saber que essa história de culpa não existe. A culpa reside nas nossas pretensões: achamos que somos responsáveis; queremos a condição de réus; precisamos cultivar os agravos; não suportamos viver sem nossos tropeções. (…). Quanta tolice. Deus, dentro da tumba deve estar soltando boas gargalhadas. Respire. Comece a respirar antes que seja tarde e nunca se esqueça que é tudo ilusão.

MULHER — Passei a tarde toda procurando aquele seu chapeuzinho. Gosto tanto dele. Procurei à toa. Sou tola, sei que você jogou fora o chapeuzinho. Você pensa que meninos crescidos não precisam de chapeuzinhos. E a gravatinha? O que você fez com a gravatinha? Combinava tanto com o chapeuzinho. (…). Você não sabe daquilo que precisa. Gravatinhas e chapeuzinhos são muito importantes (…). Importantíssimos!

HOMEM — Agora você pode ir. Seja forte.

BRENO — (num fiapo de voz) Alta. É a alta…

MULHER — (berrando). Depois daquele dia nunca mais pensei naquilo! Nunca mais pensei em você! Nunca mais, ouviu? Nunca mais! Estou aqui justamente para dizer: não penso mais naquilo. Nunca mais pensei em você. Nunca. Nunca mais!

HOMEM — Que mania é essa que você tem de misturar as coisas? Será que ainda não descobriu a diferença entre paçoca e pé-de-moleque? Experimentar, experimentou! Fez questão de meter a boca em todos os doces. (…). Agora fica aí todo enjoado.

MULHER — (enérgica). Definitivamente não! Não me engano mais! (Olha para cima). Vai cair? Será que vai cair? Vai cair ou não vai? (…). Se cair vou embora. Cansei de segurar

BRENO — (sussurrando) A única. A única coisa que eu pedi não fez. Não fez. Alta, não.

MULHER — (alegre). Hoje acordei pensando…

HOMEM — (interrompe). Quem sabe, um dia desses…

MULHER — (interrompe). Na segunda, na terça, na quarta. Não! Quinta, quinta é melhor…

HOMEM — (interrompe). Vamos! Vamos logo com isso!

MULHER — A mulher não gostava de vírgulas.

HOMEM — A gente sempre acorda pensando em algum.

MULHER — O quê?

HOMEM — Como?

BRENO — Alta. Alta. Alta. (perde os sentidos).

As luzes descem. Em resistência, escuridão.

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