Lenta caminhada para o abismo — DB Frattini

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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11 min readMay 23, 2022

Drama em um ato escrito por DB Frattini para o ator e diretor Paulo Yutaka. A peça foi encenada em 1987 e reestruturada para o grupo Boi de Mamão no ano de 1995. Composto em doze cenas, a peça será publicada na Tamarina em três partes.

CENAS 5–8: AQUI
CENAS 9–12: AQUI

Paulo Yutaka, 1986.

PERSONAGENS:

Breno: um rapaz cansado que aparenta mais idade do que tem na realidade; inicialmente veste um pijama surrado;

Homem: uma criatura forte na faixa entre os trinta e os quarenta anos; usa roupas neutras e jalecos de várias cores;

Mulher: uma criatura simples, também na faixa entre os trinta e os quarenta anos; roupas neutras e jalecos de várias cores.

CENÁRIO:

O ambiente deve ser o mais prático possível: no espaço deve constar uma cama de solteiro de ferro com rodinhas (parecida com um móvel hospitalar) coberta por lençóis brancos; um pequeno armário de cabeceira com gavetas (também parecido com um móvel hospitalar); sobre pequeno armário de cabeceira uma garrafa plástica de água mineral de um litro e meio; e perto da cabeceira da cama um mancebo de ferro (parecido com os suportes para soro usados em hospitais); tudo muito limpo e sem personalidade; o pequeno dispositivo cênico não deve mostrar para os espectadores uma definição rígida do contexto da ação.

PRIMEIRA CENA:

As luzes sobem em resistência. Breno entra em cena e lança um olhar melancólico para a cama. Escuta-se o som surpreendente e alto do bater e do trancar de uma grande e pesada porta de metal. Breno, abatido, senta sobre a cama e olha para pequeno armário de cabeceira. Puxa uma das gavetas do armário e pega um envelope.

BRENO — Não fez a única coisa que pedi (…). Fale de tudo, qualquer assunto: trabalho; família; tome conta da vida dos outros; qualquer coisa. Tudo, tudo, tudo (cansado). Mas, por favor, não me fale de alta.

Sem que Breno perceba, um homem entra em cena e fica posicionado atrás da cabeceira da cama. Breno não escuta o que ele fala.

HOMEM — (Impassível) Já não podemos ajudá-lo. Chegou o momento de sair e encontrar um novo caminho.

BRENO — (Abalado) Alta. Alta. Alta!

HOMEM Não estamos mais no escuro, não é verdade? (Debruça-se na cabeceira) Agora sabemos. O problema é encontrar uma saída e as saídas estão todas aí dentro de você. Pare de se torturar. Seu medo pode ser a sua salvação.

BRENO Não entendo. Não entendo nada. É o diabo!… A única coisa que eu queria era descansar (…). Parar! Parar e não pensar em mais nada.

Breno também não percebe quando uma mulher entra em cena e se posiciona ao lado do homem; a mulher não é vista nem ouvida por ele.

MULHER — (Impassível) Você está sozinho. Não tem ninguém. Nem o porteiro te conhece. Você não fala com ninguém. Nunca procura por alguém. Todo mundo precisa.

BRENO — (Com raiva) Alta! Alta! É um absurdo!

MULHER — (Afetuosa) Quando pequeno, foi uma criança comum. Gostava de brincar com as outras crianças, não tinha problemas. Era normal, completamente normal. Ninguém o incomodava. Podia correr e brincar. Sua mãe foi ótima e seus irmãos o adoravam. O pai foi muito bom com ele. Uma criança normal. Normal.

BRENOÉ o fim. O fim (…). A alta! Alta!

MULHER — Cresceu e virou um jovem fechado. Coisa também completamente aceitável. Normal (…). Entrou para a faculdade pública e fez uma porção de amigos, tudo muito regular, extremamente normal. (Pergunta com violência) Deus, o que será que aconteceu?!?

BRENO — (Trêmulo) Mandou um cartão. (Tira o cartão do envelope) Um cartão muito bonito e escrito com letra firme. Encheu o cartão com palavras firmes e nenhuma delicadeza. (Lê o cartão) De agora em diante não perderemos tempo com amabilidades, a questão está definida. (Ri) Tudo definido. (Berra) Tudo em alta! Alta!

HOMEM Você se sentirá meio abandonado, assim meio sem rumo. Momentaneamente desorientado. Isso não deve afetá-lo.

BRENO — (Lendo o cartão) Espero que você compreenda as minhas razões. Boa sorte.

MULHER — (Grita) O que será que aconteceu?!?

BRENO — (Rolando sobre a cama) Compreendo (…). Compreendo tudo. Não preciso mais esperar, agora eu sei (…). A alta! A alta foi a constatação! Estou de alta, não preciso mais me preocupar, não preciso voltar, não preciso de mais nada. Posso ir e ir! Sair e resistir. É o fim de um período, é a alta! (Coloca o travesseiro entre as pernas) Foi bom. Foi muito bom. Não poderia ser melhor! Foi maravilhoso! Tantos truques, tantas manobras. Adorava tudo aquilo. E agora? Agora acabou. É a alta! Alta (Com aflição atira-se sobre o pequeno armário de cabeceira e desesperado começa a procurar alguma coisa).

HOMEM — (Grave) Quanta perda de tempo. Essa paixão, esse desvario. Tudo uma grande besteira. Se você pudesse compreender… Se pudesse parar e pensar com simplicidade… Chega dessa história de culpa.

MULHER — (Terna) Era o menino mais bonito da rua. Lindo, lindo. (Grita) Lindíssimo!

BRENO — (Consegue estourar a única gaveta trancada do pequeno armário e despeja sobre a cama várias caixas e vários vidros de comprimidos, com aflição começa a livrar os comprimidos e as cápsulas das embalagens) Quem sou eu para exigir rapidez? Não, não, não precisa ser rápido. Vou engolir um pouco de cada coisa. Não. Um pouco não. Vou tomar isso tudo e vai ser bem devagar. Devagarinho (faz um pequeno monte com os comprimidos sobre o lençol). Tem de tudo aí, hein? Qualquer negócio para dar um fim em qualquer coisa (começa a ingerir os comprimidos).

HOMEM — (Entusiasmado) Você está ótimo! É um homem plenamente recuperado. Pode voltar e levar uma vida confortável.

MULHERQuanta chateação. Podia ser mais fácil. Existe sempre uma mudança repentina. Quem é que vai entender o que se passa na cabeça dessa gente? (Categórica) A dona de casa era uma mulher sem vírgulas. Direta e direita. (Grita) Direitíssima!

BRENO — (Continua ingerindo os comprimidos) Amanhã bem cedinho poderei sair. Amanhã saberei. (…) Alta?!? (Triste) A única coisa combinada: nunca, nunca me fale em Alta. (Grita) Alta! (Toma o resto dos comprimidos). Alta. Alta, alta.

As luzes descem em resistência. Apenas a figura de Breno, recortado por um foco de luz, fica visível. O homem e a mulher saem de cena.

SEGUNDA CENA:

As luzes voltam a subir, sempre em resistência. O homem vestido com um jaleco ocre entra em cena. Está muito agitado. Breno pula da cama e tira debaixo do colchão um jaleco ocre. Veste o jaleco com rapidez e começa a andar atrás do homem.

BRENOO senhor precisa entender.

HOMEM — (Impaciente) É ridículo! Não tenho que entender bosta nenhuma.

BRENONão vamos voltar ao trabalho desse jeito.

HOMEM Ah! Ia esquecendo que você é a voz podre dos técnicos do laboratório (…). Não entendo nada! Não preciso entender nada! E, por favor, pare de me perseguir (…). É sempre a mesma ladainha, isso não muda, todo dia uma reclamação. É nojento, credo!

BRENOE o diálogo? Onde está o diálogo tão solicitado nos seus discursos?

HOMEM Enchi do ‘mimimi’. Não aguento mais. Chega de diálogo. Vocês não sabem conversar (…). Mula quando manca precisa ser abatida. Se você e seus companheiros miseráveis não voltarem ao trabalho imediatamente é rua! Rua, entende?!?

BRENOAssim não é possível.

HOMEM — (Ameaçador) O quê?!?

BRENOÉ (…). É isso mesmo. Primeiro temos que nos entender. Depois voltamos ao trabalho.

HOMEM(Furioso) Sei de tudo isso! Sempre a mesma punheta: dez por cento; vinte por cento; cem por cento; mil por cento! Será que não cansam das porcentagens?!?

BRENOPrecisamos de reajustes.

HOMEM — (Cínico) Como o senhor é metido, hein, seu Breno? Quem é você para falar em reajuste? Você está doente, é? (…). O que está acontecendo com vocês? Estão todos loucos?!? (…). Não sou eu que manda aqui. Fora desse departamento não apito nada, percebe? (…). E o resto? Como é que fica o resto?!?

BRENOTambém represento apenas esse departamento.

HOMEM — (Dando gargalhadas) E dê graças a Deus por isso! (Pega o braço de Breno e muda de tom) Seu Breno, o senhor é quem tem que entender uma coisinha: se essa história vazar, vamos todos nos foder. Eu, o senhor e o resto dos funcionários malcriados estaremos perdidos. Percebe? Não vai custar nada para os donos do lugar, a gente vale muito pouco, o prejuízo será mínimo. Mínimo, entende? (Solta o braço de Breno e começa a berrar) É a crise! Estamos enfiados dentro de uma crise infernal! Essa história não vai acabar nunca! A gente já se acostumou. Comece a enxergar, homem! Tem uma fila de gente lá fora, uma multidão pronta para embarcar nesse desgosto! (…). Pelo amor de Deus, homem, não seja imbecil! A gente já se acostumou, a gente não sabe viver sem isso, a gente precisa do ordinário! Precisa! Ninguém aqui sabe respirar, a gente precisa do sufoco!

BRENO — (Firme, para surpresa do homem) Sei que tudo isso que o senhor falou é verdade: estamos acostumados. O problema é que já decidimos. São os vinte por cento de reajuste mais os trinta por cento da reposição, e não vamos esquecer dos extras.

HOMEMEstão decididos?

BRENO Sou apenas o porta-voz.

HOMEM E a flexibilidade?

BRENOJá falei que não sou eu. É o departamento inteiro.

HOMEM — (Interrompe) Mas foi só o senhor aparecer para a fedentina começar.

BRENO — Não mereço tanto crédito.

HOMEM — (Irônico) E o que esses boçais pretendem fazer com tanto aumento?

BRENO — A vida está cada vez mais difícil.

HOMEM — (Rindo) Vão comprar um cavaquinho? Vão formar uma nova banda para cantar a miséria? São todos uns artistas!

BRENO — Pense o que quiser.

HOMEM — E o senhor, o que vai fazer com tanto reajuste? O senhor não tem filhos, não tem mulher, não tem ninguém que dependa do senhor. (…) A maioria de vocês é assim: todos sozinhos no mundo. Já faz tempo que a diretoria anda pressionando, a diretoria quer a contratação de pessoal mais responsável. Essa molecada tem mais é que desfilar em escola de samba! São todos uns miseráveis! (Sai de cena).

Breno, cabisbaixo, anda até o leito. As luzes descem (em resistência), apenas um foco recorta o leito, que fica bastante visível. Breno, com movimentos lentos, entra embaixo da cama.

BRENO — (Embaixo da cama) Alta?!? A única coisa que não devia acontecer… A única coisa que não podia… Alta, alta, alta…

TERCEIRA CENA:

As luzes voltam a subir (sempre em resistência). O homem (usando um jaleco branco) entra em cena carregando a mulher. Breno sai debaixo da cama enquanto o homem, com delicadeza, coloca a mulher deitada sobre o leito.

BRENO — (Aflito para o homem) E então?

HOMEM — (Triste) Sinto muito.

BRENO — Não há esperança?

HOMEM — É uma questão de tempo.

BRENO — Tempo?

HOMEM — Pouco tempo (…). Sinto muito (…). (Sai de cena).

BRENO — Será melhor assim, não será? (Senta na cama e pega uma das mãos da mulher). O que vou fazer sem você? Você é tudo que eu tenho (…).

MULHER — (Sussurra) Seja forte.

BRENO — Por favor, não fale assim (…). Você não pode morrer. O que vai ser de mim?

MULHER — Filho, é a vida.

BRENO — Não! Não pode ser! Essa é a única coisa que não pode acontecer (…). Você está bem melhor, está falando, vai melhorar (…). Pelo amor de Deus, mãe (…).

MULHER — Ah, meu bem, comece a aceitar (…). Esse câncer (…). (Tosse). Separa aquele vestido: aquele de seda azul; aquele que você me deu de presente; vou com ele (…). Não esquece dos sapatos, aqueles forrados (…).

BRENO — Ah, mãe (…).

MULHER — (Tosse) Os papéis do cemitério estão em ordem. Fique sossegado, eu conferi (…). Tem um dinheirinho na poupança, não mexi nas economias. Pega esse dinheirinho e paga o meu enterro (…). Você lembra, Breno?

BRENO — Do quê?

MULHER — Quero um caixão bonito. (Tosse) A gente foi ver, meu filho. Lembra da urna do faraó?

BRENO — Ah, meu Deus, não fala isso, mãe.

MULHER — A urna do faraó, Breno?

BRENO — Eu lembro.

MULHER — Coloca meu corpo dentro da urna do faraó. Enterra a sua mãe num caixão bonito.

BRENO — Não pense nisso.

MULHER — (Segura o braço do filho) Breno, a urna do faraó!?!

BRENO — (Desesperado) Está bem. Faço tudo que você quiser! Ai, meu Deus (…).

MULHER — Breno, quero que você procure o seu pai.

BRENO — De jeito nenhum! Peça qualquer coisa, menos isso.

MULHER — Estou morrendo, filho. Você não pode deixar de cumprir os últimos desejos da sua mãe moribunda. Olha, depois se arrepende? Fui ruim: mimei demais, esqueci do meu marido por sua causa; não deixei o homem ser pai; fiz tanta merda, tanta merda. (Grita) Uma cagada atrás da outra! Como fui burra, infeliz, uma cretina!

BRENO — Não me peça isso, mãe (…). Você sabe que não consigo.

MULHER — (Tosse) Tudo bem, filho, faça o que a sua consciência mandar. Morro com a preocupação. Morro mais triste (tosse). Quero tanto que você seja feliz.

BRENO — Mãe, não fala assim, você não vai morrer.

MULHER — Vou! (Dobra o corpo por causa das dores) Dói! Dói muito!

BRENO — (Abraça a mulher) Eu sei.

MULHER — É horrível! Dói, dói demais!

BRENO — Ah, mãe, dói em mim também.

MULHER — Ainda não morri por causa da morfina, sabe? A morfina é santa! Breno, manda o homem me aplicar mais morfina! Morfina, filho! Preciso de morfina!

BRENO — Não posso, mãe. Já tomou demais, seu coração pode parar. Aguente firme.

MULHER — (Contrariada) Não quer ver o próprio pai e nega morfina para a mãe! (…). Me dá morfina, filho. (Grita) Morfina! Morfina!

BRENO — Ah, meu Deus!

MULHER — (Depois de um ataque de tosse) Perdoa. Não queria falar assim (…). Dói, dói tanto (…).

BRENO — Descanse.

MULHER — Não quero morrer. Ah, meu amor, não queria deixar você sozinho nesse mundo (…). Você devia ter se casado, devia ter filhos. Onde estão os seus filhos? Ainda dá tempo! (…). Todos esses anos vivendo comigo e com esse câncer, você perdeu seus melhores anos cuidando da sua mãe (…). Ah, minha Nossa Senhora, quanto desperdício! O câncer é meu! Como fui egoísta: até o câncer dividi com você! (…). Perdoa, perdoa, filho. (Perde os sentidos).

BRENO — (Agarra-se ao corpo da mulher) Minha mãe querida.

QUARTA CENA:

Depois de alguns instantes, Breno solta a mulher, desce da cama e se ajoelha no chão. O homem entra em cena e segura um dos pulsos da mulher.

HOMEM — Ela se foi.

BRENO — (Levanta-se) Morreu?

HOMEM — O senhor vai ter que tomar algumas providências.

BRENO — (Abalado) O quê?

HOMEM — O senhor não sabe?

BRENO — Já está tudo acertado: entreguei o vestido de seda azul à enfermeira; ontem, telefonei para a funerária. Reservei a urna, aquela urna? A urna do faraó.

HOMEM — O senhor quer que eu lhe prepare um tranquilizante?

BRENO — Essa urna tem uns leões, uns leões entalhados em madeira, os leões ficam incrustados na tampa. (…) O senhor sabia que a gente pode escolher o metal das alças?

HOMEM — Vou arranjar-lhe algum Diazepam.

BRENO — Não, não será necessário.

HOMEM — A morte de um ente querido é sempre um choque. O senhor não acha melhor suavizar esse trauma?

BRENO — Será?

HOMEM — Um comprimidinho à toa. Pode acreditar: o senhor precisa.

BRENO — (Aponta o corpo da mulher) Foi minha mãe quem morreu (…). Minha mãe morreu! O senhor pode trazer quantos comprimidos quiser. Eu tomo qualquer coisa! É verdade, estou precisando! O senhor deve saber: preciso ficar sedado, é isso mesmo! A funerária já está avisada. Agora é só o hospital liberar o corpo. Tenho que apresentar o atestado de óbito, o senhor sabia disso? É o senhor quem vai dar o atestado de óbito? Sabe, aquele papel com a causa da morte da minha mãe? É o senhor ou não é?

HOMEM — Vou providenciar as duas coisas: o atestado e o seu tranquilizante. Pode aguardar aqui mesmo. (Sai de cena).

BRENO — (Abraça o corpo da mulher) Como é que pode (…). É tão triste. É a pior coisa que existe! Como é que vai ser agora? (…) Parou de doer? Mãe, você nunca mais vai sentir aquela dor. Acabou, acabou.

[continua…]

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