No fim da madrugada — William Eloi

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
Published in
6 min readMay 16, 2022
Homem no chapéu, Pablo Picasso

Em frente ao espelho ela se olhou pela última vez. Soltou os cabelos, cheirou. Cheirou por baixo das axilas. Voltou. Rímel, batom. Olhou novamente. Não. Não havia esquecido nada. Passou próximo ao balcão e trouxe a cerveja. Ele, lá na mesa ao canto, já olhava para ela sorrindo. Cigarro entre os dedos. Um coroa, como dizem. Porém, charmoso, era o que ela achava. Renato tinha por volta de cinquenta anos — faria cinquenta e um amanhã! Cabelos grisalhos, voz mansa. A pele não era tão marcada nem tão enrugada. Na verdade, Silvinha queria muito saber o que oferecia aquela pele, quais eram seus mistérios; daquelas unhas amareladas nas pontas, daqueles dedos que cheiravam a nicotina. Silvinha colocou a cerveja na mesa e abriu. Abasteceu os dois copos. O que ela era para Renato além da garota do bar em que ele ia toda sexta-feira à noite e esticava até o fim da madrugada? Pensava.

Preciso trepar, disse ela sem arrodeios, olhando em direção a ele, com a mão no queixo e um cigarro aceso entre o indicador e o médio.

Ele apenas sorriu, depois de um gole de cerveja, e respondeu: Há tantos garotos nesta cidade, você é jovem. Vinte e quatro? Não vejo nenhum impedimento. Por favor, só não tenha mais filhos.

Você falando assim parece o meu pai! E você também tem filhos!

Mas é diferente. E eu tenho idade de ser seu pai, respondeu Renato sorrindo.

Mas não é, sacou?

Tudo bem, não sou. Quando você tiver cinquenta anos, quero ver se vai viver nesse fogo todo.

Para de dizer besteira, Renato! Você falando assim parece até que já morreu! Conheço muito coroa, gente muito mais velha do que você, que ainda tá aí todo animado!

Deu uma pausa. Um trago. Soltou fumaça, então respondeu:

Pois é, talvez porque eu não seja como muito coroa por aí. Do mesmo jeito que nunca fui como muito jovem por aí.

Ah, você tá muito chato hoje!

Já se matriculou?

Não, mas vou fazer! Já falei a você.

Faça, não quero ver você mais limpando o balcão desse bar daqui a um tempo.

E se não for nesse bar, onde que a gente vai se ver?

Ficou suspenso por alguns segundos.

…Não sei, mas eu vou ver você onde eu estiver.

Nossa, que homem romântico!

Me dá licença, preciso ir ao banheiro.

Deixa eu ver, não tem ninguém nesse bar. Já é tarde.

Não, sua louca! Respondeu sorrindo. Traga outra cerveja!

Mais do que na pele, Renato tinha marcas em sua alma. Ele conversava muito sobre sua vida com ela. Aquilo começou aos poucos. Toda sexta-feira. Era o último cliente a sair. Até que uma vez, embriagado, pediu desculpas a ela porque sabia que de alguma forma sua demora ali a impedia de ir pra casa descansar. Perguntou se ela bebia, explicou que não queria nada com ela, só sua companhia naquela mesa, e mesmo desconfiada ela aceitou. Sabia como eram os homens. Ia beber às custas dele. E se ele tentasse algo mais, ela cairia fora. Com o tempo, ela percebeu que era apenas companhia mesmo o que Renato queria, até sair dali embriagado. Aquela educação, aquela gentileza, aquela preocupação, a sensibilidade que via nele — coisas que nunca teve de um homem em sua vida até seus vinte e quatro anos — fizeram com que ela se apegasse a ele. Além do quê, achava-o bonito.

Aquela conversa à toa ia até os primeiros raios da manhã, quando um se apoiava ao outro pra se levantar — Renato mais a ela, porque ela era mais resistente a bebidas — , daí era quando Silvinha aproximava seu nariz ao pescoço dele cheirando a Mauá e ficava excitada. Levava-o até um Uber que ela pedia para ele voltar para casa, para sua família.

Em meio às investidas de Silvinha, Renato certa vez disse: No dia em que tivermos alguma coisa, perco sua amizade. Lembrou de quando disse isso à primeira menina que namorou, quando tinha por volta de dezoito anos. O namoro durou um mês e então acabou. Renato terminou uma amizade e sofreu por uma paixão.

Mas eu sou diferente!

Claro, eu também sou. Todos somos. Mas em certas ações agimos iguais. Eu gosto de você, mas você é minha amiga!

Ah, vá se fuder, Renato! Amiga de cu é rola!

Então Renato ria das tolices de Silvinha. Ela, na mesma hora, também ria das tolices de Renato. Cada um tentava ensinar ao outro de suas visões opostas de mundo, que no fim eram as duas metades, malícia e sensibilidade. Assim é o mundo. Assim Renato e Silvinha aprendiam um com outro, toda sexta-feira, sobre o mundo. Renato chegaria numa casa confortável, para os braços da mulher, das duas filhas, que lhe prepararam um bom café da manhã. Tomaria um banho e dormiria. Ao acordar, depois de algumas horas, se botaria a ler e a escrever. Silvinha desceria de ônibus numa favela, iria até a casa da sogra, levaria a filha mais nova nos braços, coberta com um pano, e quando abrisse a porta encontraria a outra ainda dormindo. Tomaria um banho demorado, um café. Lavaria louça, prepararia o almoço das duas crianças e dormiria. Quando acordasse, lembraria de Renato. Ficaria com os dedos no meio das pernas antes de se levantar. E gemidos leves, abafados, sairiam de sua boca, ainda cheirando a álcool e a cigarros.

Por que suas coisas são assim tão tristes e violentas? Perguntou Silvinha a Renato, ao folhear Hora das Moscas, livro que ele estava escrevendo.

Você já olhou ao redor? Tem certeza de que já deu uma boa olhada ao nosso redor? Respondeu Renato enquanto lançava fumaça no ar, naquela sexta-feira.

Silvinha o encarou pela primeira vez, e com espanto. Não entendeu por que, mas seus olhos se encheram d’água na mesma hora. Lembrou das filhas, cada uma de um pai, que nunca lhes deu atenção. Lembrou da própria condição. Foi a primeira vez que algo assim havia tocado ela.

Os primeiros raios da manhã começaram a entrar no bar. Renato olhava admirado a paisagem. Não teve certeza, mas parecia ter visto os olhos de Renato também se encherem d’água. Ele então balbuciou:

No fim da madrugada, sempre vem a luz…

O quê, perguntou Silvinha.

Peça meu Uber, por favor…

Ela o carregou até a porta — dessa vez foi pior do que as outras, quase tombando. Sentiu o cheiro de Mauá próximo ao pescoço. Não aguentou. Deu um beijo em sua boca, que ele devolveu. Ficaram os dois ali colados por alguns segundos. O Uber esperando. Ela sabia. A partir daquele momento, era qualquer coisa, menos sua amiga. Ele a encarou por alguns segundos, despediu-se bêbado, mas com educação, como sempre fez. E entrou no Uber.

Depois daquela última vez, Silvinha o aguardou na outra sexta. Se arrumou toda. Em vão. Ele não veio. Assim foi na sexta seguinte. E na outra. Ele deve tá encabulado com o que aconteceu… mas… eu… eu o amo! Ele tinha razão. A amizade havia acabado. Ela pegou o celular e ligou pra casa dele — coisa que nunca havia feito. Silvinha sabia que Renato ensinava, além de escrever livros, então se fingiu se passar por professora. Ia dizer a ele que estava estudando e que voltasse a aparecer nas sextas, como sempre fazia. A filha mais velha atendeu. Explicou que Renato havia sido enterrado há semanas. Estava enfrentando um câncer e vivendo os últimos dias de sua vida.

--

--