O milagreiro — Catharina Azevedo

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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15 min readFeb 10, 2023
“Don’t Let The Sun Catch You Crying ”, Chrysi Gavrilaki.

Eles viram o mar pela primeira vez quando chegaram a Güiria. Não se parecia em nada com o que esperavam: a piscina sedutora cor de topázio que espelhava o céu. Em vez disso, o mar era revolto, marrom e cinzento. Era verdade que também espelhava o céu avolumando-se negro acima de suas cabeças, mas parecia que mesmo como espelho era pior, mais violento. Tragava tudo pra dentro de si como um ímã de morte.

Percebeu que Maria não tirava os olhos do horizonte. Notou que não se sentia bem e procurou suas mãos, em um esforço para lhe trazer algum conforto. Sentiu-as geladas, entorpecidas. Suava frio. Ele olhou com preocupação para o cenho que lutava contra o medo; por pouco não cedeu ele mesmo ao desespero. Reconstruiu a loucura do que tinham feito e do que estavam prestes a fazer. Ela, com aquela barriga pesada, imensa. Quais as chances de dar errado? Muitas. Infinitas. Mas aquele era o tipo de situação a qual não se podia pensar nos riscos — pensar já era morrer. Atravessar o mar era um risco de morte; ficar, um risco ainda maior, mas pensar em tudo o que podia dar errado, antecipar todas as dificuldades, era morte certa. Olhando por esse ângulo, era um milagre que ainda estivessem ali.

A ideia o agradou. Sim, pensaria no milagre. No milagre de eles terem vencido tantas léguas, ou do bebê ter resistido, mesmo eles comendo tão pouco. Parecia se desenvolver bem na barriga da mãe. Barriga imensa, bebê grande — melhor pensar assim. No próprio milagre de terem o que comer. Pois não tinham? Ela e o bebê, principalmente — ele por vezes sentia fome, mas não importava. Era o pai, dever dele.

Olhou o rosto moreno de Maria e sentiu ternura. Eram pobres a ponto de mal terem o que vestir, entretanto o rosto dela não se compreendia. Fosse apenas beleza, mas tratava-se de algo mais profundo, quase inumano. Maria era envolta em um véu de graça que, em vez de aproximar, assustava. Como se seu espírito andasse a três passos do corpo — ela se movia e ele não se dava conta. Dormiam em qualquer canto, qualquer barraco ou pardieiro, mas ele quase não percebia. O próprio abrigo nunca era uma certeza, tampouco a segurança, entretanto prosseguiam como se em devaneio. Como se aquele fosse um sonho ruim o qual fosse logo acabar. A beleza que Maria oferecia a Pepe não era uma fonte de admiração, apenas; antes disso, era uma espécie de alimento. Ele procurava naquela mulher uma beleza que o abrigasse da fealdade do mundo, e era o abrigo que ela lhe dispunha que o fortalecia.

— Não se preocupe — Pepe a confortou brandamente. — O barco só sai quando o tempo estiver firme. O capitão disse que a previsão é que daqui a dois dias melhore.

Maria o fitou com uma expressão de simultânea confiança e censura. Voltou-se para um coqueiro que estava sendo quase arrancado pelo vento. Seus pensamentos eram indecifráveis.

Pode-se dizer que Pepe acreditava que era ele quem guiava a viagem — arquitetava o roteiro que tomariam, onde parariam para descansar e por quanto tempo. Mas às vezes a certeza que ele carregava era completamente oposta; era Maria quem via os caminhos e punha-se a eles silenciosamente, assim como um rio flui para o mar sem questionar por que fazê-lo. A doçura de transe com o que o realizava, sempre em silêncio, fazia com que ele alimentasse deter ideia original, no afã de protegê-la das intempéries e perigos. Mesmo depois de muito tempo, Pepe prosseguiu com a sensação de que tudo o que fizera havia sido previamente sabido por Maria. Era justo o fato dela saber a intenção antes do ato que a fazia anuir aos seus movimentos como se fossem um só.

Ela se remexeu, apoiando a mão nas costas. Estava cansada e a barriga pesava. Ele a guiou com cuidado até um meio-fio na calçada. Sentaram-se devagar; Maria primeiro, Pepe depois.

— Então… Brasil, hein? — disse para o bebê, em um tom suave e animado. Alisou a barriga carinhosamente. — Quer dizer que você vai ser brasileiro?

O rosto de Pepe se iluminou. Tomou as mãos da esposa entre as suas.

— Mamá vai ter um ataque quando souber. Já pensou se nasce gostando de futebol? — Abriu um sorriso e a sacudiu delicadamente com o próprio corpo. — Você acha que o lugar influencia? Hã, Mari?

Maria sorriu brandamente.

— Se influenciasse, certamente teríamos sido algo muito diferente ao nascer.

Calaram-se. Atrás deles, todo um país se estendia. À sua frente, o mar revolto prometia menos do que afugentava, entretanto nem Pepe nem Maria falaram em nenhuma das circunstâncias. Também não falaram dos rostos que haviam visto pela estrada até a distância do país ser vencida, nem dos que pereceram por fome ou pelo governo — àquela altura já não se sabia o que estava matando mais. Venciam pequenas coisas; primeiro, o medo, então a fome, então o cansaço. Quando um entre esses não era remediado, restava a certeza de terem se sobreposto aos outros dois. Ficava também a certeza de que aquela terra era sua casa e que era bonita. Quanto a voltar, não se sabia.

Outros ao seu redor também estavam fugindo. Muitos deles já tinham sido avistados por Maria e Pepe na estrada — com alguns, haviam mesmo compartilhado abrigo e alimento. Uma vez transposta a distância, no entanto, havia sobrado naqueles rostos apenas a fadiga e o medo. Fadiga pelas condições extremas as quais haviam sobrevivido (e apenas ali, em frente ao mar violento, podiam se dar conta disso pela primeira vez); medo porque compreendiam que a jornada não estava sequer remotamente próxima ao seu final, e o que se estendia rumo ao desconhecido não era garantia de nada. Olhavam então ao redor com aquele ar perdido, desolado, de quem não se reconhece junto ao ambiente. Para sempre párias.

Pepe e Maria possuíam rostos exatamente iguais aos dos outros. Pareciam-se também entre si. Suas feições eram tão complementares que, não fosse o cuidado que Pepe dispendia à esposa que avançava cada vez mais pesadamente por causa da gravidez, podiam facilmente passar por irmãos. Eram ambos morenos, com a face castigada pelo sol; se os contornos do rosto Maria eram mais arredondados e mais suaves, sugerindo qualquer coisa de bondade em sua expressão, isso se dava apenas por ser mulher, com formas que são próprias às mulheres. O de Pepe era comprido, oleoso de fuligem e emoldurado por cabelos muito pretos que também se viam claros aqui e ali devido à poeira. Por baixo de um fino bigode, os lábios conservavam-se quase sempre ressequidos, ocultos também por um cavanhaque que lhe conferia alguns anos a mais do que realmente possuía. De resto, era muito magro e muito rijo, com os ossos das costelas e das clavículas proeminentes. As mãos destacavam-se, calosas pela quantidade de trabalho com o qual haviam se habituado desde cedo. Era assim desde criança, e a arduidade da viagem acentuara ainda mais essas características.

Apesar de todas essas qualidades que tinha em comum com outros refugiados, Pepe, como a esposa, diferenciava-se por um certo assombro que se instilava em seu olhar. Ele possuía algo que era, ao mesmo tempo, remotamente majestoso, mesmo perigoso; como o olhar dos beduínos que atravessam o deserto. Era uma expressão que não se escondia mesmo em face ao medo — e era muito justificável, mesmo desejável, que todos os refugiados possuíssem um olhar acuado, pois muitas eram as razões para se sentirem assim. Entretanto Pepe apresentava uma altivez que, longe da astúcia, provinha da honra; de uma honra régia, muito distante da humildade subserviente que se esperaria de uma pessoa enfrentando sua situação. É de se compreender, portanto, que mesmo entre os refugiados, Pepe e Maria possuíssem um aspecto estranho, um tanto assustador.

Quanto a ela, já se disse anteriormente: era uma figura que inspirava respeito e candura, como em geral se sente diante de uma mãe da qual se gosta muito. Os longos cabelos eram negros e compridos, caindo sobre o rosto arredondado. Não era gorda, mas alimentava-se melhor do que o marido, sobretudo por causa da gravidez. Como quase todos, possuía olhos negros e feições indígenas; contudo também os olhos eram um pouco mais arredondados. Era bonita.

Na verdade, havia corrido na vila de onde Pepe e Maria haviam fugido o rumor de que o filho que Maria esperava não era do marido. Não se sabe se a história era verdadeira; muitas pessoas inventavam coisas a respeito dos dois, pois a presença de Pepe e Maria inspirava não só respeito, como também rancor. Acreditou-se primeiro que isto não passava de uma maledicência qualquer; entretanto, como nenhum dos lados parecia querer se defender com veemência, a fumaça se alastrou rapidamente. Importunaram muito Pepe com o propósito de saber se aqueles rumores eram verdade — e pareciam cada vez mais sê-lo, porque, pensando bem, quem havia visto alguma demonstração pública de afeto entre ambos, como um beijo? A vila sequer se lembrava como eles haviam se conhecido. Era como se estivessem juntos de súbito e por toda a vida, ao mesmo tempo.

Pepe escutava os comentários calado. Era um homem de certo modo soturno, ou assim parecia; por causa disso, esperavam que ele tomasse alguma atitude que lhe limpasse a honra, talvez abandonar a mulher grávida, ou mesmo matá-la. Para a decepção geral, ele só escutava e prosseguia com seu ofício. Trabalhava em uma carpintaria de um velho que o admitira ainda quase criança. Estava cego e reumático demais para se dedicar aos móveis, e já era Pepe a alma do lugar. Reparava e construía móveis com maestria. Estava tudo combinado para, assim que o dono morresse — ou mesmo antes, já não tinha utilidade quase nenhuma mesmo — a carpintaria ficasse para Pepe, que possuía algumas ideias de como ampliá-la e melhorá-la, fazendo com que seu nome ficasse conhecido mesmo a léguas dali. Teria sido assim, não fosse a fome. A pobreza chegava à vila, como tinha chegado ao resto do país, e logo as dissidências quanto ao governo se inflamavam. Esses atritos sempre haviam existido; para falar com franqueza, nem Pepe nem Maria tomavam partido delas. Mas, se antes os dissidentes eram todos aqueles que se colocavam contra o governo, agora era qualquer um que tivesse fome.

Posto, portanto, que Pepe jamais tenha se defendido daquelas que possivelmente eram calúnias, não é de se surpreender que importunassem Maria com ainda mais insistência do que ao marido. Como era sempre de igual distanciamento e brandura, alguns se deleitavam com a ideia de que, no fundo, Maria não passasse de uma vagabunda de marca maior — já viam em seu sorriso a dissimulação, em seu ar de recato, a cobra pronta para dar o bote. Agora compreendiam a facilidade com que ela se contornava a Pepe com tanta ausência de atrito; ora, não era ele quem iria prosperar com a carpintaria? Em resumo, muitos começaram a achar Maria uma sonsa, uma mulher muito esperta.

É necessário contar esses pormenores para que se compreenda que tanto Pepe quanto Maria compartilhavam um, a natureza interior do outro, embora à primeira vista aparentassem ser completamente opostos. Assim que resguardado pela presença da esposa, longe das vistas alheias, a expressão de beduíno de Pepe se dissolvia em doçura; enquanto, em seu interior, Maria demonstrava ter força o suficiente para matar qualquer um que ameaçasse tanto seu marido quanto o filho que esperava. E sem dúvida seria capaz de fazê-lo, não como um ato de crueldade, mas à maneira que a própria natureza assim designa — não seria nem um pouco diferente de assistir uma zebu protegendo seu filhote de um guepardo, ou às leoas avançando no pescoço de outro animal selvagem para defender sua cria. As pessoas logo se deram conta daquele aspecto então desconhecido de Maria e, aos poucos, começaram a deixá-los em paz.

No que concerne à própria Maria, uma vez parou em frente ao marido, como que para dizer algo importante — nunca se soube se uma admissão de culpa ou uma garantia de que jamais o havia traído e os rumores eram, portanto, falsos. Foi, entretanto, interrompida por Pepe, que pôs em sua barriga as mãos repletas de calos e lascas de madeira. Ficou assim por um tempo, então voltou a trabalhar no berço que estava construindo. Não trocaram uma palavra, não fizeram sequer um questionamento. Ela voltou a fazer o jantar. Comeram juntos em um silêncio pacífico, depois apagaram as velas, cuidaram da louça e foram dormir. Nunca mais o assunto veio à tona novamente.

Maria ajeitou a cabeça no ombro ossudo de Pepe. Fechou os olhos. Ele afagou suavemente seus cabelos negros e tentou protegê-la das rajadas frias de vento da melhor maneira que pôde. Sussurrou algo tolo para ajudá-la a adormecer:

— Então você acha que é menino?

Ela fez que sim com a cabeça.

— E se for menina?

— Vai ser uma menina bonita. Mas acho que é menino, não sei por quê.qu.

Reclinou mais o corpo e adormeceu. Pepe olhou apreensivo ao redor. Já não tinham dinheiro, o pouco que havia sobrado ele entregara ao capitão do barco clandestino para fazer a travessia. O que sabia fazer de melhor era a carpintaria, mas, naquelas circunstâncias, era um ofício que não valia a pena — levava muito tempo, requeria muita atenção e a prioridade, para Pepe, era sair do país. Também não ficariam em Trindade e Tobago; uma vez transposto o limite do país, Pepe estava disposto a trabalhar em alguma embarcação que seguisse ao Brasil. Pepe estava implacavelmente decidido que o destino de ambos era o Brasil. Era o país mais desenvolvido da América do Sul, também o maior; arranjaria algo para os dois ali. Trabalharia, ganharia algum dinheiro, mandaria parte para a família que ficava e prosperaria com o resto. Criaria o bebê. E depois…

Depois. Olhou as mochilas surradas — possuíam tão poucos pertences, mas como se tornava pesada a bagagem! Recostou o corpo, fechou os olhos. Mas sem adormecer.

A travessia de barco foi tensa. O capitão saiu dois dias depois, como havia prometido, mas o tempo ainda não estava firme; o mar havia se aplacado, mas ainda estava cinzento, de forma que temiam pegar outra tempestade pela frente. Pepe insistiu para que esperassem pelo menos mais um dia, mas o homem não queria saber. Apontou para o seu peito magro com truculência.

— Eu disse dois dias. — Uma saliência, possivelmente de um revólver, protuberava entre sua camisa e sua calça. — O que vocês acham que é isso aqui, hã? Caridade? São mesmo uns imundos, eu devia deixar vocês limpando própria a merda com as mãos.

Pepe também havia se alterado. Estrilou, apontando para a mulher grávida:

— E o que faço se minha mulher e filho morrerem?

Seguiu-se um bate-boca acirrado. Os outros refugiados começaram, pouco a pouco, a se pôr contra o casal — faziam muito escândalo, pondo a própria viagem em risco. Ninguém naquela circunstância gostaria de chamar a atenção. Em certo momento, o capitão ameaçou deixar Pepe e Maria em terra. Ficaria com o dinheiro, é claro. Era um rato. Pepe teve mesmo a certeza que o homem estava fazendo de tudo para que eles ficassem: dois a menos, lucro a mais. Mesmo se exigisse o dinheiro de volta, o que era impensável (o capitão jamais devolveria, e a quem eles poderiam recorrer?), não acharia outra embarcação que os atravessassem; se achassem, seria exatamente igual àquela, ou pior. Engoliu o orgulho da melhor maneira que pôde e murmurou desculpas. A gravidez da mulher o deixava tenso, explicou.

O capitão o empurrou em direção ao barco.

— Ande, ande, vocês só sabem reclamar. E se procurar problemas aqui dentro… — Pôs a mão na saliência da roupa.

Lá dentro, as pessoas se amontoavam numa massa disforme pela escuridão. O barco devia estar levando cinco vezes mais passageiros do que sua capacidade permitia, se não mais. Pepe murmurou uma prece a nenhum deus específico e olhou para a frente. Não conseguia ver o mar. Melhor assim; se o visse, talvez mergulhasse em puro terror. Sentiu apenas o piso balançar e cuidou para que Maria não vomitasse em cima de uma das crianças que estavam em seus pés. Não comeram nem beberam.

A travessia durou alguns dias, mas pareceu ser uma eternidade. Assim que desembarcaram em Trindade e Tobago, viram o mar — o mar que esperavam, azul-turquesa, tão distante do que se apresentara inóspito no outro litoral. Alcançaram a terra quase com vergonha; mais do que felizes, estavam aturdidos por terem sobrevivido, tamanha era a chance de acontecer o contrário. Dormiram com os outros refugiados em um abrigo improvisado. Dias mais tarde, Pepe se apresentou em um navio que ia partir para o Brasil — contornariam a costa das Guianas e do Suriname, desembarcando no Pará. O capitão do navio se apiedara da condição deles; a viagem foi tranquila, dessa vez.

Sentiram alívio pela primeira vez em muito tempo ao desembarcarem no Brasil. Olharam emocionados para a vasta terra apinhada de cores e de gente que se prolongava sob seus pés. Pepe procurou um lugar para comer e dormir; não tinham mais dinheiro, mas confiavam que em algum lugar alguém haveria de compreender a situação. Explicaria que vinham para trabalhar, pagariam logo o favor. Aqui e ali, conseguiam se fazer entender por meio de uma mistura das línguas que se assemelhavam. Um outro tipo de surdez inviabilizava a comunicação, entretanto; uma surdez que também se alastrava a ponto de virar cegueira, fazendo com que muitos passassem reto assim que se davam conta da presença de Pepe e Maria. Afagaram-se — eram estranhos, logo a tensão dos que eram da terra se arrefeceria, ou ao menos assim esperavam. Por extraordinário que pudesse parecer, não sentiam medo. Há muito que se acostumavam ao sentimento e haviam aprendido a dobrá-lo, pô-lo em algum lugar entre as roupas e tirá-lo dali apenas quando não havia mais ninguém olhando. Naquele momento, porém, outras necessidades eram mais práticas e precisavam ser remediadas o quanto antes.

À noite, a bolsa de Maria estourou. Olhou para Pepe surpresa; não esperavam que a criança nascesse naquele mês. A capital parecia ficar mais e mais comprida, como se esticasse por si. A quem pedir ajuda? Pepe podia levar Maria a um hospital, mas não sabia se os atenderiam; se assim fosse, pediriam os documentos e assim saberiam que haviam entrado clandestinamente no país. Não sabiam nada das leis, mas temiam que a criança seria separada deles antes da deportação — e essa perspectiva os angustiava.

A alguns metros dali, havia uma construção de três andares em cujo letreiro neon lia-se Hotel Belém 24h. Guiado meio pela intuição, meio pelo desespero, Pepe caminhou até o hotel e adentrou o pequeno saguão. Estava vazio e quente ali dentro. A única pessoa que se via era uma mulher gorda checando uma informação no computador. Era a recepcionista e também a dona do hotel.

— Misericórdia! — Ergueu as vistas para o casal sôfrego a sua frente.

Rapidamente, em um portunhol embolado, Pepe disse que a esposa estava prestes a dar à luz. Precisavam de ajuda o mais rápido possível. Eunice — era esse o nome da mulher — começou a teclar números com urgência em um celular, quando foi interrompida por uma camareira que descia as escadas e havia compreendido a situação quase instantaneamente.

— Dona Eunice, não vai dar tempo. A moça vai perder o bebê.

Pepe insistiu por ajuda. Havia compreendido as últimas palavras e agora tinha a expressão aterrorizada. Ao seu lado, Maria passava de gemidos baixos a gritos de dor.

A dona do hotel olhou de relance para os ganchos das chaves, todos desocupados. Estavam lotados, o hotel era pequeníssimo. Pensava em diversas coisas, em especial no medo de que aquela moça perdesse o filho em seu estabelecimento. Sem dúvida, eram ilegais. Ela evitou pensar mal; mas o que aquela gente queria, aparecendo na porta dela com uma criança nascendo? Se bem soubessem todos os problemas da terra que acabavam de adentrar, teriam ficado onde estavam.

Prevaleceu então uma espécie de ternura ao olhar o casal; a ternura que costuma nascer embebida em uma espécie de má vontade daqueles que dispõem pouco a oferecer. Fez sinal para Ivone:

— Bata no 104 e peça a hóspede pra descer urgente.

Talvez a inteligência da vida tenha resolvido agir naquele momento, poupando tanto a vida da criança quanto a da mãe. Ou fosse o que muitos chamam de predeterminação, ou destino. Mas, dentre os hóspedes do hotel, havia uma mulher chamada Anunciação. Era velha, mas na juventude havia sido enfermeira; possuía cabelos grisalhos e crespos contrastados a uma pele negra e cheia de marcas. Eunice lembrou-se dela apenas ao se deparar com a angústia no rosto de Pepe. A velha desceu as escadas apressada por Ivone, mas sua voz era calma quando ordenou que levassem Maria ao seu próprio quarto, enchessem uma banheira com água quente, trouxessem toalhas e esterilizassem uma tesoura. Começaram a se pôr a caminho; mas, como Maria não podia subir as escadas e não o hotel não dispunha de elevador, Eunice se virou para Ivone:

— Desocupe o depósito o mais rápido que puder, vamos levar eles pra lá.

— Mas Dona Eunice, o lugar é insalubre.

— Limpe — Eunice falou. Enquanto isso, Anunciação tomava as mãos de Maria. Perguntou-lhe o nome. Quando ela respondeu, pediu que respirasse pelo nariz e expirasse pela boca.

O quarto minúsculo foi limpado e desocupado às pressas. Ivone estendeu os lençóis brancos em cima de um catre estreito. A criança nasceu, não sem alguma dor por parte da mãe. Era um menino muito moreno, de cabelos negros como os dos pais. Chorou como todas as crianças choram ao nascer, então aninhou-se ao seio da mãe.

Maria aquietou-se apenas quando sentiu o filho junto de si. Também como muitos homens que testemunham esse milagre, Pepe tendia mais ao assombro que ao embevecimento. Assistiu à própria família, agora aumentada: a mulher, de cabelos encharcados de suor que lhe presenteava com uma expressão tímida; o menino, agora sereno. Tomou as mãos de Maria carinhosamente e se virou para Anunciação, que estava repleta de sangue e suor. Repetiu o agradecimento diversas vezes.

A velha agradecia apenas com as mãos. Ivone chorava como se diante de um último capítulo de novela; já Eunice, em uma luta para não ceder ela mesma às lágrimas, fez que ia resmungar:

— E pensar que nem perguntei o nome do senhor.

— Pepe — disse o outro. Acrescentou em espanhol, para conferir a si mesmo um tom mais formal: José, mas sempre o chamaram de Pepe. Pronunciava rossé.

Voltou-se para o filho recém-nascido e sorriu brandamente.

Revisão: Caroline Lima

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