Pandemia — Daniel R. Ribas

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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3 min readMay 20, 2022
Arte de Carlos Pragana

Ano 1

Recolho os restos mortais e jogo no vaso sanitário. Dou a descarga e me sinto limpo pela primeira vez. Quase cinco da manhã. Nunca vi esta vizinhança tão quieta. Esta é a única mudança bem-vinda desde que a quarentena fora instaurada. Sou um cara antissocial, raramente saio de casa. Agora tenho a desculpa esfarrapada perfeita para me esbaldar em meu papel autoimposto de ermitão urbano.

Sinceramente, espero que o mundo acabe. O meteoro prometeu e não cumpriu, como todos. A doença humana há muito está espalhada. Talvez precisasse de uma oportunidade para se apresentar de maneira adequada. A morte é uma senhora de modos polidos. No meu peito, tenho tatuado os quatro cavaleiros do apocalipse. Quando mexo os músculos, os cavalos relincham. Rio como se fosse o último som. Não ouço estrondos, sussurros, trombetas ou qualquer música. Apenas os barulhos agudos e estúpidos dos animais de carga que me cercam. Meu riso se torna tosse com facilidade. Os outros sons também. Exerço minha paciência sentado enquanto tudo termina. E sim, como na canção, eu me sinto bem.

Ano 2

E com o niilismo, me farto. É um banquete infinito. Fui a um bar, beijei uma garota, dei um tapa em sua cara, e rimos. Mando que ela lamba um dos cavalos, e o som se perde na vertigem da descida. Pegamos as máscaras, escarramos nelas e jogamos ao mar. Pega tua oferenda e enfia no cu. Sei que seremos atendidos. Enquanto como ela de quatro, penso nos meus amigos que morreram. Nunca dei tanta carinha triste ou segurando um coração na rede social. Ela diz que vai gozar, e broxo. Levanta-se e vai pegar algo para se perder nas trevas. Sento na areia, sinto-me imortal, logo poético.

Aspiro linhas na areia para que meus vasos sanguíneos rasguem. Quero tua doença, teu amor de novela, um romance mal traçado. Estou entediado de espalhar mentiras. Não tenho provas ou convicções. Só foda-se. Foda-se, cara. Foda-se, foda-se, foda-se… Cadê meu apocalipse? Será que Papai Noel esqueceu que eu existo? Ouço os passarinhos cantarem em meio às ondas. Não vou voltar para casa. Ou serei esquecido, ou serei eleito. Encaro os cavaleiros em meu peito. Estão quietos. E o céu aberto, um baita sol. Vai dar praia. Não estou bem. E estou bem com isso, apesar de minha vitalidade. Quero uma quarentena de mim mesmo. Sou gratuito como o mar de merda que quebra à minha frente. Talvez o mundo acabe quando os tatuís retornarem. Mas não há um sequer à vista. Todos morrem, menos eu. É um mundo injusto, em que os meteoros se desintegram antes de cumprir sua sentença. Menos eu.

Ano 3

Hoje entrou um inseto. Veio pela sala, pousou no canto superior da parede, parecia uma barata. Dei as costas. Após alguns minutos, voltei-me e tinha sumido. Encaro do alto um homem de olhar vazio. Eu bato as asas para longe, muito longe… Desta casca não sentirei saudades. Tenho a confiança de que agora sou o senhor do apocalipse, capaz de sobreviver a todos os dejetos. Ainda assim, tão humano e pequeno, vítima de homens de olhares vazios.

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