Parolar com Íris — uma entrevista com Sabina Colares e David Aguiar

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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12 min readJun 4, 2022

David Aguiar é graduado em Comunicação Social-Jornalismo pela UNIFOR, doutorando e mestre em Cinema e Audiovisual pela UFC e pesquisador nas áreas de Teoria de Imagem, Cinema e História da Arte. Sócio-fundador da produtora Além Mar Filmes, é diretor e roteirista do longa-metragem Currais (2019), vencedor de vários prêmios em festivais e mostras locais, nacionais e internacionais, entre eles o de melhor filme de diretor estreante pela 43º Mostra Internacional de São Paulo. David ainda dirigiu, roteirizou e fotografou os curtas Tempo branco e Engarrafando sonhos para que sejam lembrados, os quais também foram premiados e selecionados em festivais do Brasil e do exterior.

Sabina Colares é especialista em Audiovisual em Meios Eletrônicos pelo Instituto de Cultura e Arte da UFC, especialista em Escrita Literária pela FBUni e graduada em Letras pela UFC. Desenvolve pesquisas nas áreas de roteiro, documentário e cinema contemporâneo, além de lecionar cursos de audiovisual para vários públicos, coordenando o projeto de formação Educando o Olhar em escolas públicas de Fortaleza (CE). Sócia-fundadora da produtora Além Mar Filmes, diretora, produtora-executiva e roteirista do filme Currrais (2019), longa-metragem amplamente selecionado e premiado em festivais nacionais e internacionais. Também roteirizou e dirigiu os curtas Rosa negra, Eva — Quarta de Cinzas, O que tenho de você?, e o média-metragem Mangues e nós, todos selecionados e premiados em festivais e mostras.

(O filme está para alugar nas plataformas digitais: Apple TV, Google Play, Now, Vivo Play, Looke, YouTube Filmes.)

“As histórias não cabem dentro de uma sala”, esse é um recorte de uma fala de Dira, uma das personagens do filme, numa sala no Pirambu, cercado de fotografias, jornais amarelados e uma foto de Che Guevara. Fale um pouco sobre a composição de personagens, roteiro e cenário do filme.

Acho que, primeiramente, temos um grande dever para com a nossa história; é a isso que se propõe Currais, sobretudo na atual conjuntura política e sociocultural brasileira. A personagem de Dira foi se constituindo através de fragmentos de relatos de vida de duas irmãs. Obtivemos acesso à belíssima pesquisa da professora dra. Kênia Rios, do departamento de História da UFC, na qual ela entrevistou e gravou em fitas cassetes tais relatos. Mas, especificamente, este relato estava em condições muito precárias. Adotamos a possibilidade de usar uma personagem ficcional para dar corpo, materializar as memórias das irmãs, tragédias que não foram ocasionadas apenas pela seca, mas por uma classe economicamente dominante que percebeu, na seca de 1932, não uma tragédia, e sim uma “oportunidade de negócios”. Além disso, tínhamos o conhecimento das células que o PCB havia instalado naquela região na década de 40. Isso se deu ao fato de que industriais locais tiveram a maliciosa percepção de uma oportunidade econômica com a mão de obra semiescrava proveniente do campo do Pirambu em 1932 e passaram a instalar suas indústrias ali nas proximidades. Nas décadas seguintes, o Grande Pirambu se tornaria um imenso bairro operário e o PCB começa um trabalho de alfabetização e politização dos moradores daquela região, ao exemplo de Maria Tabosa, personagem real de Currais. Ao mesmo tempo, precisávamos realizar a conexão com Fortaleza: observamos que muitos descendentes de concentrados do Pirambu permaneceram no bairro e que outros tantos descendentes de flagelados da seca de 1932 migraram exatamente para lá, contudo, os atuais descendentes sequer conhecem tal história. Para a estratégia do filme, foi bastante oportuno conectar os fragmentos da história: a história dos movimentos migracionais para Fortaleza, a terrível visão de oportunidade de negócios de nossa burguesia, o surgimento do Pirambu e sua transformação em bairro operário, a luta por direitos de alguns grupos de moradores que tiveram uma educação formal diferenciada e, portanto, empreenderam uma luta social também diferenciada. E por fim, precisávamos tratar do material de arquivo, que sempre nos fustigou pensar que sofreu um sistemático apagamento pelos poderes em questão. Dira foi forjada dessa forma, como elo das diversas faces de um grande projeto político muito antigo e que sempre se renova; a produção do corpo explorável e matável que faz parte de um programa econômico ainda hoje naturalizado, a resistência desse corpo que teima em não se deixar matar e ser explorado e que encontra na memória, nos vestígios da história, uma forma de reescrevê-la. Além do mais, ainda percebemos uma forma de dar visualidade ao material de arquivo, uma forma fílmica que fosse além dos métodos de documentários tradicionais. E esse mesmo parâmetro se seguiu durante a construção dos outros personagens, como no caso de Romeu, que parte para encontrar os vestígios das narrativas de seu avô acerca das concentrações de 1932. Romeu está sempre amparado no depoimento das fitas cassetes de seu avô, um dos materiais de arquivo da pesquisa de Kênia Rios. Acho que, nesse sentido, invertemos um pouco o pensamento do filósofo e linguista tcheco, Vilém Flusser, que tanto gostamos e que dizia ser preciso “irrigar a ciência com poesia”, e acabamos por irrigar a arte com um pouco de ciência, e isso se deve ao tema tão caro com o qual nós trabalhamos, mas, sobretudo, ao momento político que passamos, em que a realidade perdeu o lastro em nome de discursos fascistóides que tentam constituir uma narrativa alucinada e delirante para justificar seus projetos econômicos e de poder extremamente massacrantes.

Você teve dificuldades em resgatar essas memórias, visto que muitas dessas narrativas foram apagadas da nossa história?

Desde o início da pesquisa, o apagamento histórico e as narrativas desencontradas sempre foram um grande obstáculo. A história parecia sempre materializar-se dos fragmentos, dos vestígios. Poderíamos entrevistar os pesquisadores, com seus trabalhos tão importantes para a nossa sociedade, mas eles não eram os sujeitos dessa tragédia. Era necessário encontrar as vítimas e seus descendentes. E o apagamento documental estava sempre ali, se fazendo presente e impondo uma barreira. Foi então que percebemos que o apagamento era um dos principais personagens, o apagamento que faz parte e é método crucial dos grandes crimes das elites econômicas. É assim que se forja o Brasil, apagando suas violências e opressões e as transformando em romantizações ufanistas, como no caso da violência e do genocídio dos povos originários e africanos escravizados, sobre o qual se criou o mito da “natural miscigenação das raças”. Uma imensa mentira para ocultar os cadáveres de nossa história. Quando passamos a trabalhar com o apagamento histórico, naturalmente começamos a compreender o tamanho da violência ali perpetrada e nos abrimos para que tudo em volta pudesse ser vestígio, um vestígio que traz em si uma narrativa muito potente, mesmo que fragmentária. É o exemplo da cena inicial: Romeu está na estrada escutando as narrativas de seu avô, por meio da fita cassete que toca, esta material de arquivo inserido como um dispositivo ficcional. Em seguida Romeu busca num imenso descampado o que poderia ser o campo de concentração de Quixeramobim, mas ali não há nada, apenas entulhos de velhos tijolos e telhas, e é nesse entulho, nas ruínas, que Romeu encontra um vestígio de nossa história: o prego de dormente. Essa estratégia ficcional foi criada a partir de um fato que vivemos. Estávamos à procura do trilho que deveria passar por uma ruína que supostamente era da administração do campo do Patu de 1932. Mas não encontramos o trilho do trem. Ao sair e nos depararmos mais uma vez com o apagamento histórico e com as dúvidas que ele traz, o diretor David Aguiar, andando no meio dos galhos secos do sertão, pisou em algo que arrancou o solado de sua bota! Era um prego de dormente, muito antigo e completamente enferrujado. Estava ali escrita nossa primeira cena.

Qual sua ligação com o sertão e como você chegou ao tema dos campos de concentração nas secas do Ceará? Um deles ficava no Pirambu, aqui em Fortaleza, e os demais no interior do estado.

Bem, eu sou de Fortaleza, o David também. Mas a família paterna de David é do interior, ali próximo de Senador Pompeu. O David tem uma ligação muito forte e íntima com o sertão e suas histórias, e sempre falou muito sobre as histórias que escutava dos mais antigos ao pé das fogueiras no sertão. As histórias das secas, dos morticínios e das violências ali marcaram profundamente o imaginário dele. Em determinado momento em que ele estava fotografando um evento de repentistas, ele passou por Senador Pompeu e escutou justamente de um repentista que ali havia tido um campo de concentração. Ele então passou a perceber as narrativas de alguns cordéis de forma diferente. Mas foi na faculdade de jornalismo que realmente teve um contato mais concreto. Muitos anos depois, ele retornou ao tema e descobrimos um colega que era de Senador Pompeu e que nos falou da caminhada da seca que ocorre anualmente naquele município. É a romaria dos devotos das almas, pessoas que acreditam que os mortos no campo de concentração do Patu tornaram-se “almas santas” e concedem milagres, posto que morreram de fome, sede e trabalho escravo, num requinte de crueldade. Quando fizemos a caminhada e nos deparamos com aproximadamente cinco mil devotos, isso nos mudou profundamente. Era muito significativo que o tabu acerca das concentrações só fosse rompido por um ritual de luto e de uma crença religiosa que não necessitava do aval de nenhuma instituição, como a igreja católica, para existir. Logo em seguida nos deparamos com a pesquisa acadêmica de Kênia Rios e Frederico de Castro Neves, professores de História da UFC.

Pessoas em situação de miséria viviam à farinha, rapadura e ossos. Usavam roupas de estopas e tinham suas cabeças raspadas para identificá-las, caso fugissem. Semelhança com os campos de concentração da segunda guerra e a escravidão, comente sobre isso.

É preciso observar que, apesar de algumas notórias convergências, as divergências entre as chamadas concentrações do Ceará e os campos de concentração nazistas são imensas. É preocupante e chega ser irresponsável o discurso de algumas pessoas que debatem o tema quando não só comparam, mas determinam uma total equivalência entre ambas. Primeiramente, os campos nazistas eram de extermínio, foram construídos quase que unicamente com essa função, e para sua construção não foram necessários dispendiosos discursos de falso teor humanitário, como no caso local. O discurso nazista era o de eliminação do “inimigo”. Um inimigo que, a nível das estruturas sociais, não era exatamente o núcleo dos sujeitos historicamente oprimidos, como no caso direto dos judeus. O poeta de Martinica, militante político e pensador da negritude e do anticolonialismo, Aimé Césaire, questionava se caso a Europa, diante do holocausto judeu, não passava por uma imensa crise de consciência ou por uma pura decadência moral, ética e civilizatória quando se deparou com o holocausto judeu –holocausto de brancos realizado em território europeu, posto que um genocídio mais aterrador foi realizado pelos mesmo europeus na África, América, Caribe etc., sem nenhuma problematização e crise durante séculos. Césaire demonstra que uma série de métodos de massacres e extermínios foram utilizados nestes povos e que a Europa colonialista adquiriu uma expertise em tal assunto. Ele ainda lembra que as grandes guerras começaram por meio de uma disputa econômica dos países imperialistas que lutavam para conquistar colônias no final do século XIX e início do século XX, mas, quando essa guerra imperialista entrou numa disputa cada vez mais acirrada e colapsada, a violência e o horror se expandiram para Europa e, segundo o ensaísta de Martinica, esse foi o grande “horror” para o mundo ocidental que se proclamava civilizado na medida que proporcionava a barbárie fora de seu continente, exterminando povos não brancos. As concentrações no Ceará começaram antes mesmo da Lei Áurea. Registram-se as primeiras concentrações no Ceará em 1877. Os sujeitos históricos daquele momento eram indígenas aculturados e seus descendentes, negros alforriados, brancos miseráveis e mestiços de toda sorte que a classe média cearense desde muito cedo acostumou-se a denominá-los pejorativamente de caboclos do sertão. Era um grupo social que já vivia, em alguma medida, num regime de escravidão. Esse mesmo sujeito histórico será aprisionado novamente em 1915 e depois em 1932, dando continuidade a novos métodos que o Brasil fez farto uso em regimes de escravismo, por meio do poder econômico e político que passamos a chamar de coronelismo. O coronel era o sujeito que nasceu numa tradição escravocrata e que, se adaptando aos “novos tempos”, encontrava meios econômicos, jurídicos e sociais de continuar a manter uma relação de poder similar à escravidão de grupos que historicamente sempre estiveram nesse espectro. Em Currais, o personagem Chico da Barragem narra como seu avô e pai de criação trabalhou durante décadas para os “coronéis” em troca de um pouco de comida, fosse plantando, fosse matando, e como em determinado momento decidiu entrar para o cangaço, para fugir dos coronéis. Os setes campos de concentração foram erguidos em 1932, e o avô de Chico da Barragem foi trabalhar como vigia no campo de Patu, prendendo pessoas da sua mesma classe social. Isso tudo nos aproxima mais dos métodos colonialistas que se refere Césaire do que da história do holocausto judeu. As concentrações tentavam impedir a fuga dessa mão de obra escrava, semiescrava, para outros estados brasileiros e impedir também que essa massa de flagelados invadisse e “sujasse a cidade”, como se falava vulgarmente na época. As concentrações eram lugares que a priori concentrariam uma massa de pessoas que foram atingidas pela seca, daí o nome, mas as classes economicamente dominantes as projetaram como forma de manter seu poder sobre a sua histórica mão de obra escrava. Os concentrados só eram matáveis na medida que eram exploráveis, principalmente quando já não tinham valor. Mas os métodos violentos e a extrema ganância ocasionaram um morticínio muito maior do que o esperado “efeito colateral”, cujo investimento valeria a pena, segundo os representantes dessa burguesia cearense, e o processo saiu do controle. Eram, portanto, novos senhores de escravos que, numa determinada situação, executaram um projeto para extrair o máximo de lucro e que naturalmente contariam com alguns mortos. Como sempre foi muito naturalizada a violência escravocrata brasileira, mas a quantidade de mortos foi tão alta, tão absurda, que chocou o bolso destes senhores e até mesmo a opinião pública da época, antes maciçamente favorável às concentrações e aos novos modelos de exploração. Claro que não podemos perder de vista que uma série de métodos e ideologias da época coincidem com os campos nazistas, como a teoria da eugenia. Mas até mesmo na defesa ideológica da época é perceptível a diferença. Enquanto o nazismo emplacou uma guerra de extermínio, fosse se utilizando da teoria eugenista, da religião, da economia, enfim, as concentrações eram defendidas como medidas humanitárias, ora pelo viés da caridade cristã, ora como uma medida eficaz para se evitar que doenças dos flagelados se alastrassem nos centros urbanos, ou como promessa de progresso e desenvolvimento econômico (já que essa mão de obra seria mantida no estado e trabalharia na construção de obras locais, como açudes e prédios públicos). Era a forma hipócrita que a sociedade cearense encontrou para naturalizar o velho modelo escravocrata ainda tão enraizado em nossa sociedade. Sendo assim, quando vemos discursos que criam uma equivalência direta, observamos com grande preocupação, pois esses discursos acabam indo numa direção que nos distancia do debate de nossas raízes coloniais e escravagistas, e acabam eclipsando nossa história sob a sombra da história europeia.

Mais um recorte da fala de um personagem que me emocionou: “Cada parada era um filho que meu pai dava… foi dando um filho em cada estação”. Você teve alguma dificuldade de acessar as pessoas entrevistadas no documentário, visto tratar-se de um assunto que mexe tanto com o emocional? “De manhã cedo saía contando quantos defuntos tinha a noite.”

Sim. Chegar em alguns personagens foi bem complicado; ou por estarem escondidos nas sombras ou por não quererem participar do filme devido ao tema. Teve uma senhora no Pirambu que era remanescente de concentrados, mas ela se recusou a nos ceder uma entrevista, nem mesmo a conhecemos pessoalmente. Ela disse para a pessoa que nos intermediou que não queria falar sobre o assunto e que este a fazia lembrar de coisas que queria esquecer. Infelizmente não conseguimos esse depoimento tão importante para o filme. Percebemos que alguns dos personagens apresentavam certo incômodo durante o processo de rememoração, mas todos quiseram participar ativamente do filme, percebiam que era importante falar e que precisavam falar. Não queriam mais carregar tais lembranças só com eles. Dona Francisca, que está no filme, fez questão de falar tudo, como também denunciar o horror que presenciou (nos fez apenas o pedido de que ela contasse suas memórias apenas para o neto, e assim o fizemos). Em nossas pesquisas, percebemos o enorme tabu que existia na cidade sobre o tema. Fala-se muito durante o período da caminhada, como se só nessa época fosse permitido, depois volta o silêncio quase que absoluto. Falar sobre essas questões com os remanescentes em outras épocas do ano é sempre delicado. Percebemos que isso está sendo quebrado aos poucos depois do filme e do processo de tombamento dos casarões, pois essa história veio à tona em muitos jornais e televisão, e as pessoas passaram a perguntar mais e a se interessar pelo assunto.

“Tem uma coisa que me apego e que ninguém me tira, sou devoto das almas da Barragem” (fala de um personagem em referência aos mortos na construção da barragem de Quixeramobim). Achei muito importante essa referência aos mortos. Como os personagens das cidades referenciadas receberam o seu filme? Me fale sobre seus novos projetos; o que podemos esperar dessa dupla de cineastas, Sabina Colares e David Aguiar?

Estamos trabalhando em dois novos projetos de filmes documentários e também em parcerias com projetos de amigos. Fazer cinema em nosso país é muito difícil, principalmente com esse governo atual e, como muitos realizadores, estamos esperando os editais e as políticas públicas, paralisadas desde o início do governo Bolsonaro, serem postas em práticas para continuarmos executando nosso trabalho. Esperamos ansiosamente por uma mudança significativa urgente na política do Brasil para que a cultura e o audiovisual possam caminhar em seu curso natural.

Muito obrigada por falar conosco e sucesso sempre, em especial para essa obra já consagrada no cinema nacional.

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