Um rosário de ruas — Íris Cavalcante

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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3 min readJan 30, 2023
Giacomo Costa — Serie Aglomerato, 1997

CONHEÇO ALGUMAS. No Rio, Sobral, Porto e Lisboa. Já ouvi falar de outras. Chego a pensar que toda cidade deve ter uma, com suas histórias, personagens e mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos e luminosos. Hoje estou na rua do Rosário do centro de Fortaleza, sob um sol largo, uma rua breve que percorro de praça a praça. Encontro de Rachel a Getúlio. Entre a Igreja do Rosário dos Pretos e o Palácio da Luz, me distraio com paralelepípedos e gatos sorrateiros que habitam os porões. Um adesivo num poste e alguém garante — Trago seu amor de volta — , e quem disse que eu quero? Bem, mas parece que há quem queira.

Passo por um aglomerado de comércio e serviços, clínicas que cuidam do sorriso, sobrados decadentes, engraxates, pedintes, pessoas que alimentam pombos, bancas de revista fora de circulação. O dono cochila, a existência insiste. Pergunto há quantos anos ele está ali. Um bocado — ele responde, sonolento.

Na rua do Rosário encontra-se quase tudo, menos rosários. Para lá, sou levada em busca de um passado da cidade, que ainda pulsa. Século XXI e me deparo com um santuário de máquinas de escrever no número 125, um lugar meio claustrofóbico, entre poeira e antiguidades. Relíquias que pertenceram a amantes da escrita, ou a comerciantes e empreendedores de uma época. Tecnologia que pôs em movimento a roda da economia.

Me encanto com uma Olivetti vermelha, amor à primeira teclada. Evoco meus ídolos da literatura e ali mesmo conversamos através do toque contundente que imprime palavras, enquanto escuto os relatos de um falante senhor de bigode sobre uma Fortaleza e um Brasil do passado. Um café e a conversa flui. Ele me conta sobre o Curso Andrade Lima que preparava datilógrafos para 800 toques em 5 minutos, garantia de aprovação num concurso de bancário. Não consigo avaliar tamanha destreza.

Estou diante de uma testemunha da história, numa travessia de sete décadas, mas a compreensão dos fatos não é a mesma que a minha. Registro minhas impressões na caderneta da cronista, mais do que cabe numa crônica. A partir dos relatos e das convicções do senhor, ponho-me a vislumbrar passagens sombrias da nossa história, como se estivessem impressas nas pedras da calçada.

Pego a Olivetti vermelha, que já é minha. O uber também é vermelho, como o sangue derramado pelas lutas populares. Ainda sob o efeito da conversa, quero encontrar pessoas e lembrar às novas gerações que 64 não foi revolução e que golpes marcam sempre períodos de grande retrocesso.

Percebo que fatos históricos são acomodados conforme o viés ideológico de quem os assiste. Existem lados e eu sei perfeitamente qual é o meu. Logo mais, encontrarei pessoas que amo, fico feliz por estarem bem, meu jeito particular de cuidá-las. Não tenho rosários, mas quero a paz e a contemplação dessa oração. Desacelero da euforia do passeio e dou uma última olhada para a emblemática rua.

Agora, imersa na inviolável solidão de meu quarto como num mosteiro, me dedico à leitura devocional de Santa Tereza D’Ávila e à reflexão sobre o Santo Rosário. Nunca rezei um. Em Tereza D’Ávila encontro: “Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa.”

No fim do dia tenho apenas uma certeza que não se explica nos fatos recentes, talvez na fé: tudo vai ficar bem.

Revisão: Itaércio Porpino

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