Violenta — Milena Martins Moura

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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10 min readJun 18, 2021
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Calma! Respira! É só meia morte. O sol queimou hoje em cima das coisas. As portas estão todas abertas e o vento passa arrastando os sussurros. Não foi o fim inteiro. Foi só meio fim.

Violeta, que na escola chamavam violenta, está sempre muito calma, andando do quarto para a sala e de lá para o banheiro e então cozinha e de novo quarto, no pedaço de mundo que lhe sobrou. Muito calma. Os olhos meio baixos, sem esforço. Lábios já habituados ao falar pelas pontas dos dedos. Os olhos verdes e a falta de sorriso ocultados pela câmera desligada.

Nos ímpetos de otimismo, faz planos para daqui a tempo demais. Então se abraça na cama até cansar do processo de ser criatura orgânica não decomposta renovando os níveis de CO2 da atmosfera. E soca a cabeça com os nós dos dedos como quem desce a mão na cara de um desafeto.

Um dia eu soube pegar o ônibus com um casaco na cintura e um livro embaixo do braço a bolsa balangandando pendurada num ombro e pra saltar apenas levantar andar até a porta puxar a cordinha sem planejar como os passos a força dos braços o medo nos ossos os olhos os olhos tudo sob controle eu levantava do banco do ônibus e estava viva e sabia disso e os meus dentes não fechavam na carne dos meus braços e

Violenta acha que foi feliz, mas não tem mais palavras. Apenas sente, no fundo de trás do de dentro da cabeça, que houve um dia em que não estranhou de se maravilhar com o vento na nuca, porque era comum haver vento na nuca. Mas não sabe palavrear como o mais simples dos prazeres virou novidade aos 35 anos, tão depois daquela fase da infância em que tudo é fascínio, que é seguida pelo resto da vida, em que tudo é banal. Nos raros momentos de força, tudo é tão raro que dói como as pancadas que dá com a cabeça nas paredes escuras do quarto à noite pra dormir melhor, e de se doer recai na sala sem cadeiras em que se transforma a sua vida quando tudo que ela quer é se sentar.

Boa noite, gostaria de saber como está o andamento do meu pedido [que já está atrasado há quarenta minutos e acho que vai chegar frio sabe eu não tenho muito dinheiro pra gastar com delivery esse pedido é a única coisa boa da minha semana e se ele vier ruim vai ser mais um pedaço da minha morte então se por favor vocês puderem ter piedade de um pobre caco de gente que não tem se arrastado muito bem com esses roxos na pele e dor na cabeça se puderem mandar quentinho e ainda crocante eu ia agradecer até o fim de todos os tempos porque eu não tenho mais muito motivo sabe nenhum motivo e esse lanche seria um bom motivo], por favor.

Violenta está agora repetindo um filme. Não está vendo o filme. Está apenas deixando o filme correr e fingindo que está vendo o filme, enquanto se deixa ficar toda dormente sobre a cama, sem muita força pra tortura autoinfligida. Faz isso algumas vezes, quando termina algum trabalho do home office e sente que agora pode tudo correr dançar compor uma sinfonia adotar mais um gato ler a obra completa de Dostoiévski aprender ornitologia cavar até o japão tomar um banho longo depilar o sovaco esquerdo que tanto tempo em casa lhe ensinou ser o único com cabelo deixar a manteiga fora da geladeira pra passar no pão quando for comer o pão sem rasgar o pão na hora de passar manteiga no pão cortar as palavras repetidas desse texto tão cansativo quanto ela própria está de si mesma mas escolhe repetir into the wild sem prestar atenção cantarolando às vezes ao som da voz bonita do vedder e de mais a mais basicamente cagando pra história que ela conhece como a palma da mão com duas pintas marronzinhas uma em cima e uma embaixo da linha da vida. Mas não está nem aí pro filme não porque não quer não estar nem aí pro filme. Sua cabeça está cheia de pensamentos com palavras repetidas se sucedendo sem vírgulas nem pontuação e ela não consegue se lembrar o que comeu no almoço esquece fácil que se perguntou o que comeu no almoço planeja o jantar lembra da treta com a vizinha em 1996 arruma uma resposta pra ganhar a discussão com uma prima aos cinco anos imagina uma cena de briga física no supermercado com argumentos previsíveis e situações forçadas fica com raiva esquece a raiva porque não sabe o que quer dizer seu anel de humor ter ficado vermelho aos doze anos esqueceu de fazer a simpatia de ano novo deve ser a lua em gêmeos não péra não acredita em astrologia ou será que

dorme

acorda

o filme acabou

troca o filme

dorme

Violenta com frequência se senta à janela no fim da tarde para sentir lembrança. Cada parte da vida tem um peso próprio entre os dedos.

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No fim de tarde de 1996, passava uma novela com um homem velho que gostava de canecas. Ela lembra a saída da escola e tem um cheio no caminho de casa que não está mais nas narinas, mas comicha o couro cabeludo e extrapola nos poros dos braços. Naquela época, os postes eram brancos, o shopping era novo e ficava todo acesinho. Madureira tinha uma cor toda inteira nas calçadas arrombadas cheias de pedregulhos que ela chutava pra se distrair do choro engolido. E o sofá verde-escuro rasgado era um abraço cortante como a barba por fazer no beijo do homem que lhe haviam prometido para o futuro, quando parisse sua completude e fosse grata pelos gritos da mãe. Na telefunken 1984 que já estava ali quando ela nasceu, Violenta tentava ver os beijos da novela na tela esverdeada cheia de fantasmas que viriam assombrá-la do outro lado do túnel 30 anos depois.

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[Quer se dizer que está tudo bem como se estivesse, antigamente funcionava. Quando o avô morreu, repetia antes de dormir que pelo menos os pais estavam vivos. Era jovem, não via os pais com os olhos da finitude. Achava bonitinho rir dos seus cabelos brancos, como se velhice fosse piada em vez de contagem regressiva. E era também bastante tola, como era comum antigamente, quando mentir pra si mesmo dava mais certo. Naquela época se dizia que apenas os jovens não se sabiam finitos. Mas veio o tempo do medo inteiro, aquele derramado nas frestas, e conhecemos que somos mais mortais do que sustenta nossa lucidez. Por tudo isso, crava as unhas na carne mole de dentro da coxa como uma arcada faminta se fechando em volta da morte que a alimenta]

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Em 2004, voltava para casa da escola ao som de evanescence e tinha abandonado a igreja antes de crismar. Tudo isso, e calças jeans mais caras por virem rasgadas de fábrica, e uma rebeldia grunge 14 anos atrasada e muito abaixo do equador a faziam se sentir o que não era. Anoitecia com os amigos na escola de paredes amarelas. Tinha mosquitos voando em cima das cabeças no solstício, quando escurecia cedo e as luzes acendiam cedo e a cantina fechava, as salas esvaziavam, os riscos iam embora e a escola parava de dar medo. Naquela sala do segundo andar tinha um curso de desenho que ela usava como pretexto pra ficar até mais tarde fora de casa. Conheceu ali um homem que segurava suas mãos num sorriso e logo viraria cicatriz. As luzes brancas nas paredes amarelas pareciam luzes amarelas e assim as guardou nos álbuns de fotos das estantes da memória, sempre incrivelmente verdadeira em suas falhas. Ir pra casa pela linha do metrô vendo o mundo ser apenas calmo era quase como ser grato por ter nascido apesar de ter nascido ser ruim. Os faróis dos carros passando têm hoje um quase gosto de sal na língua, ou pode ser que esteja chorando, ou pode ser o sangue nos dentes.

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[Lacrimeja passando os olhos no currículo. Ignora deliberadamente o tempo, as notícias, a crise, o isolamento e todas as outras particularidades de um estado de coisas atípico que não estava nos compêndios de sociologia. Nem se debruçava feito lança pontiaguda no caminho daquele primo distante vinte e cinco anos mais velho que arrumou um bom emprego enquanto ela pedia um real de bala na escola e um real de bala ainda dava pra comprar bastante bala. Lembra só dos erros que não teriam sido erros em outra vida. Põe os olhos entre as palmas das mãos e repete quase em voz alta qualquer coisa cruel contra si mesma como punição por ter nascido na chamada geração y, que pergunta por que demais. Depois seca os olhos e usa as mãos para o propósito mais nobre de socar o espelho as paredes a cara o crânio a falta de praia e um acúmulo de conhecimentos antes talvez úteis mas que agora servem apenas para fazê-la entender o estado de coisas atípico e não conseguir se consolar dizendo que está tudo bem, o que seu primo distante com um bom emprego acha que é oportunismo de esquerda]

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Aqueles andares altos assustadoramente altos, de cima dos quais não aguentava olhar, estavam lá quando voltava da praia na infância, na brasília amarela que tinha nome de música do avô que tinha nome de anjo. Estavam lá quando comemorou que talvez pudesse vir a quem sabe um dia ter um futuro melhor que o dos pais, o que não sabia ainda ser excelente para cases de sucesso, que só contam as exceções. Quando completou 20 anos com festa surpresa de gente que virou dor. E 22 num bar amarelo da lapa. E 24 sobre o caixão de Daniel. Aqueles andares altos estão lá com seu fantasma jovem habitando, vestido de rock, braços finos. Uma menina pequena com sonhos dentro que apodreceram sem ser usados como a roupa que uma pessoa banal guarda para ocasiões especiais numa gaveta de traças. De noite, aquelas salas todas iluminadas ainda estão iluminadas na sua lembrança, na avenida São Francisco Xavier, com ipês roxos no estacionamento, cadeiras azuis e vermelhas na concha acústica e ninguém para sentar nelas. Estão vazios como a sua casa vazia, como os bolsos de adolescência, quando entrou ali com uma vida a cumprir. Um canudo roxo sem nada dentro simbolizando o futuro.

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[Faz chocolate quente pra imitar a noite de 99 vendo terra nostra na tevê antes de dormir. A mãe tinha os cabelos curtos e pretos e usava baby doll. Estava jovem. Bebe o chocolate tentando sorver junto a esperança de haver uma vida lá fora aguardando o continue, mesmo que hoje odeie novela e a mãe esteja velha e isso seja triste. Bebe o chocolate com o desespero de quem acorda sem memória nos filmes de suspense e precisa destruir o quarto inteiro numa interpretação questionável pra demonstrar frustração a um público que entenderia apenas com um suspiro bem dado.]

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Numa livraria de botafogo, comprou livros do harry potter antes de ir ver um filme sobre van gogh. Seus amigos não entendiam muito bem quantas idades mentais habitam sua cabeça.

Nesse dia choveu e os guarda-chuvas eram pequenos. Molhou as costas com o frio de sentir-se viva e se esquentou no vinho. A noite estava linda, as luzes da noite, o metrô na saens peña, a lanchonete de pasteizinhos a quilo escrito errado no cartaz.

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[Come uma coxa de frango como se fosse um domingo de outono em Oswaldo Cruz, numa padaria com pastilhas azul-claras nas paredes, um plástico verde cobrindo a mesa de ferro, que o garçom limpa com um perfex fedido. O sol amarelo-velho batendo de lado nos pés, na linha de trem com muros pichados, no sino da igreja, a igreja vazia com os santos sangrando dentro. Uma coxa de frango nos anos 90, o pai novo brincando com um cachorro, a avó coberta de ódios e a mãe de cabelos curtos escuros mandando veemente pegar com as mãos, morder a carne e chupar o osso, como se previsse o futuro. Come a coxa de frango de olhos fechados como se lembrasse os batuques na quadra da Portela embalando o sono da infância. Morde aquela carne como quem recebe a hóstia, que é salgada feito lágrima. Depois morde a sua própria, lacerada de estar só]

Cabelos na minha lembrança, ao sol, num barco em mar azul-esverdeado, brilhando. Fazia um calor pela metade, assim só no limite do não frio. Eu encarava o mundo de frente até que ele baixasse os olhos. Eu tinha uma carne forte, dedos firmes em riste no nariz do tempo, um futuro melhor que o então agora fracassado ignorante do futuro real, o agora agora, pior que todas as visões de todos os videntes especializados em criar pânico para vender cristais.

Eu tinha alguns anos de vida sob o sol, talvez três, talvez vinte e três. E lembro que existia alguém em mim, uma presença, hoje sentada no silêncio com cheiro de rosa e vela das lembranças corrompidas.

A minha cabeça não doía de socá-la. Nos meus braços não havia mordidas.

Violenta escova os dentes todos os dias no mesmo horário, porque tem hábitos rígidos e dentes a escovar. Quando tenta limpar os molares, quase sorri.

O sol está queimando em cima das plantas e elas estão morrendo de sede. Tem uma poeira ancestral no canto das janelas. A máquina ficou por bater agora que nada mais a impede de viver em pelo como bicho enjaulado. Faz dois meses que não troca as fronhas.

As portas estão fechadas, as janelas estão fechadas. Os gatos estão dormindo no cobertor jogado no sofá com que se cobre na preguiça de arrastar-se até a cama e adormece para um pesadelo mais brando.

Não foi o fim inteiro. Foi só meio fim.

Está ainda inteira. Será sempre meio fim enquanto tiver seus membros como peso e mãos com nós dos dedos resistentes e raivosos.

Violenta está inteira como um frango assado em pedaços na marmita que o pai comprava em Owaldo Cruz para o almoço de domingo após a missa.

Os batentes todos pintados com o sangue das imolas, sinalizando que não entre inutilmente ao anjo cego que vai passando e ceifando.

É só meia morte.

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