Talvez amor

Tandra
EuLírico
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5 min readJan 6, 2017

Ouço o barulho das ondas quebrando no mar. A maresia balança seu cabelo, seu perfume me inebria, seus lábios mexem como se tivessem desferindo palavras, mas, eu estava absorta demais em seu campo de força para ouvir qualquer som que não fosse sua inquieta respiração. Nem mesmo o Angélica Zapata em nossas taças me chamava tanta atenção quanto teus olhos. Foi preciso ele me chamar por três vezes para eu voltar a realidade.

Ele era um desconhecido que até uma hora atrás estava sentado nas areias da praia a poucos metros de mim. Junto de si havia uma garrafa de vinho fechada e duas taças limpas. Poderia ter passado despercebido, exceto pelo fato de ser um desconhecido sentando a poucos metros de mim segurando uma garrafa de vinho fechada e duas taças.

Porém, o que mais me chamou atenção foi como ele olhava fixamente para o mar, imóvel, alienado, abstraído, aprisionado em seu cruciante campo de força, o qual agora eu era pretensa candidata a ser uma prisioneira voluntária.

Não sei dizer como ele veio parar ao meu lado, nem como começamos a conversar, tão pouco sei dizer como bebemos metade de seu vinho em tão curto espaço de tempo. Contudo, em uma hora de conversa, sei mais de seu coração que muitos amigos íntimos. O ouvi desabafar de como desistiu no meio do caminho de ir para casa, do que ele chamou de “uma maluca” tentar uma reconciliação, de como o mar de repente lhe pareceu companhia mais fiel e confiável. Escutei suas histórias, suas memórias de tempos bons e suas lembranças recentes que o deixava desconfortável.

O ouvi dizer muitas coisas até o momento que percebi que seus olhos eram castanhos claros, que seus cílios eram falhados e que tinha uma pinta rente ao olho esquerdo. Tentei voltar a ouvi-lo, mas, sua boca tinha um balbuciar engraçado, ele molhava os lábios minuto a minuto. Também tinha barba por fazer. Os poros de sua pele se tornando visíveis também eram uma atração à parte.

Como eu disse, foi preciso ele me chamar por três vezes para eu voltar a prestar atenção no que ele estava falando. Na verdade ele estava apenas tentando me alertar que o vinho em minha taça iria derramar se eu não segurasse mais firme. Me recompus.

Não sei qual foi o desfecho da sua história amorosa, mas, ele quis mudar de assunto e confesso que me senti confortável com isso. O próximo assunto foi como minha playlist que escutávamos dividindo o fone de ouvido era ruim. Não esperar que ele falasse aquilo me fez rir, o que o assustou fazendo com ele fizesse uma careta muito estranha, gargalhei daquilo e ele gargalhou junto, soltando sem querer que minha risada era gostosa.

Servimo-nos de mais uma taça de vinho o que resultou em um debate ferrenho de como teria sido se tivéssemos evoluído de uma coruja e não dos macacos, nossas opiniões divergiam quanto ao resultado. Falamos da miséria na África e não tenho mínima ideia de como terminamos o assunto falando sobre cervejas artesanais.

Admiramos como Vênus ficava bonito alinhado com a lua crescente e por ser um assunto de grande paixão minha me perdi explicando a ele sobre as nuances do planeta e o fato de lá não haver lua. Foi quando percebi que ele havia parado de falar e passou a me olhar com devoção. Sim, Talvez imerso no mesmo campo de força que outrora eu consegui sair. Continuei a falar. Ele continuou a me olhar. Me senti como se um livro fosse, em que ele começava a se interessar pela sinopse.

De repente foi como se ele tivesse decido abrir o livro. Chegou mais perto de mim, o que me fez olhar subitamente para seu rosto. Seus olhos emanavam gravidade própria. Senti o clima ficando estranhamente intenso, denso, quase palpável. Sua respiração foi ficando mais ofegante e convidando a minha a lhe acompanhar.

Minha boca passou ser objeto de oração que ele ensaiava uma reza. Sua mão foi agarrando lentamente a minha e seu corpo ficando mais próximo do meu. Sua boca foi ficando cada vez mais perto e eu me vi incapaz de fugir.

Então senti. Senti seus lábios não tão carnudos quanto os meus. Senti a maciez e leveza de seu beijo. Senti sua teimosa língua. Senti o gosto de vinho sendo compartilhado. Senti seu carinho enquanto mexia em meu cabelo e continuava a me beijar. Senti também a brisa do mar se juntando a nós.

O beijo se prolongou mais que eu pude imaginar, era quente, molhado, lento e rápido. Quando por fim nossos lábios se desgrudaram, nossos olhos começaram a se beijar. Intensamente. O silêncio nos envolveu. Uma energia gostosa emanava. Tão único. Tão mágico. Poderíamos ter ficado ali por horas se o telefone dele não tivesse tocado, lembrando-nos que não éramos atemporais como aquele momento vinha prometendo.

Era ela. Aquela de quem ele havia desistido no meio do caminho. Aquilo nos constrangeu. Ele mais que a mim, pois, senti que ele ficou dividido entre lhe atender ou me dar atenção. O telefone continuou a tocar reforçando nosso constrangimento. Ele me olhou como quem pedisse desculpas e ao mesmo tempo autorização para atender. Autorizei sem desculpar.

Ele levantou se afastando e eu me levantei sem graça recolhendo minhas coisas. Senti algo ruim no coração sem querer, batia forte como se tivesse em uma maratona. Senti uma raiva danada, sei lá porquê.

Ele atendeu o telefone e eu não sabia se ia embora ou se esperava. Tive raiva de mim. Então não aguentei, lhe dei uma última olhada, pedindo licença baixinho achando que ele iria ouvir. Ele me olhou, observando eu me afastar. Virei as costas e fui embora.

Por alguns instantes quis e acreditei que ele pudesse vir atrás de mim. Meus segundos se passaram lentos demais e ainda assim não contribuiu para ele vir em meu encalço a tempo. Segui andando pela orla, ele não veio.

Com olhos marejados, pus meus fones de ouvido, selecionei uma música ideal para o momento, ajustei o volume e desistir de acreditar em um revés.

Estava cogitativa dentro da minha bolha musical quando pensei ter ouvido uma voz chamar meu nome, mas, poderia ser meu ego esperançoso me pregando uma peça. Não dei atenção.

Agora me chamava mais alto, tão alto que poderia ouvi-la gritando fora de mim. E me chamou mais uma vez. E outra vez. E mais outra, por fim, resolvi conferir. Tirei os fones de ouvidos e de imediato reconheci sua voz. Aquela voz rouca e engasgada. De fato, era apenas meu ego.

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Tandra
EuLírico

Nem sempre escrevo tudo aquilo que sinto. Mas, sempre sinto tudo aquilo que escrevo.