Carta em Preto e Branco

Nós falamos e falamos e falamos, arrogantemente, sobre o que é ser livre, mas esquecemos que a liberdade ainda é distribuída de acordo com uma paleta de cores

Camila Narduchi
Te Escrevi uma Carta
5 min readAug 18, 2019

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Querida A.,

Originalmente, essa carta não era pra você. Você vai rir, porque é mesmo ridículo, mas eu estava escrevendo um longo pedido de desculpas pela existência do racismo — isso mesmo que você leu, eu falei que era ridículo — para minha única amiga negra, até eu perceber que — exatamente — ela era minha única amiga negra.

Junto com essa realização, veio uma ainda pior: eu estava tendo a audácia de transformar sei lá quantos séculos de escravidão e seus desdobramentos numa penitência minha, fazendo o mea culpa menos solicitado da história de todos os mea culpa, para a única representante negra do meu círculo de convivência, e pra quê? Pra ser, de novo, protagonista? Pra ela me livrar desse açoite imaginário que eu mesma criei? Pra ela me perdoar?

Minhas desculpas não eram, nem de longe, para ela. Eram apenas o produto de uma culpa talvez até católica que carrego em mim, uma coisa egocêntrica, meio estranha, que ia virar um texto bonito pra branco ver e que eu queria mostrar pra ela, orgulhosa de mim mesma, quase que pra falar “olha como eu sou uma pessoa boa”. Credo! Ainda bem que apaguei tudo.

(Como diz minha psicóloga, desculpas são isso mesmo, no fim: uma maneira de se des-culpar, de tirar a culpa de si, do ato, e não necessariamente de um mergulho mais profundo no erro. Nada a ver com nobreza e coisa e tal.)

De toda maneira, percebi que pedir desculpas, nessa situação, era também uma tentativa patética de obter o aval de uma mulher negra pra eu me sentir melhor, quando na verdade eu sou, num dia bom, apenas uma pessoa minimamente decente. Que doideira. Por isso resolvi te escrever.

Primeiro porque você é mulher, e a gente se sintoniza bem nesse lugar de fala. Segundo porque você é branca azeda que nem eu, e espero que você entenda que pra você eu posso falar de igual pra igual também no quesito privilégios, então não vou ser exatamente delicada. Mas o fato é que a gente está sendo irresponsável, amiga. E racista.

Não precisa arregalar os olhos. Eu não estou falando de ser racista no senso mais desprezível da coisa, tipo um Bolsonaro ou outro neonazi qualquer, mas no sentido de nos beneficiarmos dessas estruturas racistas, em tantos níveis, e de não termos práticas que enfrentem essa lógica, dentro do possível na nossa branquitude.

Eu até poderia te explicar esse raciocínio falando de pessoas negras de um modo geral, mas eu vou recortar nas mulheres negras pra ficar mais próximo da nossa vivência, porque eu realmente quero que você entenda aonde eu quero chegar.

A gente está fazendo, com elas, mais ou menos o que homens fazem conosco — mulheres, genericamente — dentro do patriarcado: estamos tomando espaços como se eles fossem nossos por um direito de nascença, sabe? Estamos sufocando mulheres negras na manifestação dos nossos privilégios, agora até mesmo através dessa nossa culpa. E estamos fazendo isso porque conseguimos nos aproximar delas através do feminismo, pelo empoderamento, pela sororidade e todas essas palavras lindas na teoria, mas na prática simplesmente não deixamos nosso privilégio branco de lado.

Estamos sendo o equivalente dos esquerdomachos que tanto abominamos, porque nos declaramos não-racistas (que piada!) mas não temos, efetivamente, práticas antirracistas. Percebe a diferença? Estamos tão contaminadas por discursos liberais que tomamos a frente com nosso excesso de confiança branca, e falamos e falamos e falamos, arrogantemente, sobre o que é ser livre, mas esquecemos que a liberdade ainda é distribuída de acordo com uma paleta de cores — de pele.

Não basta saber-se, entende? Não basta estar ciente, consciente, prudente. Não adianta se desconstruir se não for pra construir algo em cima, se não for pra transformar teoria em prática. Se a observação não for alerta, se a escuta não deixar de ser passiva, não é suficiente. Não podemos achar que é só ler duas citações famosas da Angela Davis ou três poemas da Maya Angelou pra entender o que é a existência dessas mulheres.

Nós não entendemos. E não há intelectualismo ou empatia no mundo que baste, se a gente não souber nem quando calar a boca. Ou falar onde importa.

Porque usamos do silêncio como nos convém. Somos inerentemente racistas, tantas vezes sem nem perceber, porque vivemos coniventes com o racismo — que não se mostra apenas na forma mais caricata de um supremacista branco, raivoso e descarado em seus preconceitos, mas principalmente na forma de um lavar de mãos, ou de um olhar para o outro lado, quando seria necessário atitude e autocrítica. E a gente precisa tentar resolver isso entre nós, porque é entre nós, brancos, que podemos — e ouso dizer, devemos — agir sem invadir espaços.

Por isso essa carta passou a ser pra você. Porque eu acho que a gente pode tentar desenvolver as nossas ferramentas, dentro das nossas possibilidades, pra lidar com o nosso racismo. E vamos falhar, amiga, porque vai ser desconfortável. E vamos precisar nos reavaliar, e tentar por outros caminhos, porque pra nós não vai ser nunca uma questão de identidade, mas de um constante processo. Porque não dá mais pra usar lugar de fala como muleta pra passividade. Não num momento como esse.

A gente não precisa criar simulacros a partir do sofrimento alheio se a gente pode fazer algo dentro do que nos cabe. Google tá aí pra nos ajudar, porque vai exigir leitura. Vai exigir muito mais que ouvidos atentos, vai exigir uma boca treinada — pra quando falar e quando calar.

Vai exigir baixar a bola e levantar os olhos — chega de olhar pro nosso próprio umbigo. Chega de pedir perdão e perguntar pra pessoas negras o que podemos fazer, porque isso só mostra a nossa insistência em colocar nelas a responsabilidade de resolver esse problema. Vamos encontrar os nossos meios.

Eu repito, vai ser desconfortável. E tem que ser. Inclusive pra servir como uma bússola, porque convenhamos… tem algo de muito errado em quem não se sente minimamente nauseado hoje em dia, né?

Conto com você e estou aberta às suas ideias.

Com amor,

C.

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