Carta para Minha Amiga Hétero

Eu vou ser direta: você já se perguntou por que mulheres heterossexuais enxergam lésbicas como “menos” mulheres?

Camila Narduchi
Te Escrevi uma Carta
6 min readJul 27, 2019

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Amiga,

Te escrevo essa carta porque você é uma mulher hétero e nesse momento eu preciso desabafar sobre uma questão muito particular entre nossos dois mundos. Então aguenta comigo no textão.

Tenho pensado sobre uma experiência extremamente cansativa na minha vivência lésbica. A verdade é que até nos meus círculos de convivência essa experiência é um assunto pouco desenvolvido, mesmo não sendo exatamente novo. Então vou ser direta: você já se perguntou por que mulheres heterossexuais enxergam lésbicas como “menos” mulheres? Ou, melhor ainda, por que vocês diminuem e até invalidam nossas expressões do ser mulher?

Não quero que você veja isso como um ataque pessoal. Até porque aquele dia estávamos conversando, e sei que você também sabe, sobre os papéis culturais e hierárquicos aos quais somos todas submetidas.

Lembra como você mesma disse que “o ápice dos papéis de gênero” era o casamento hétero? Lembra que te contei quantas vezes já ouvi que “tudo bem gostar de mulher, contanto que não queira se parecer com um homem” ou que “ela não é mulher, é lésbica”? E como lamentamos o fato desses papéis serem um excelente instrumento para subjugar mulheres, e para preparar meninas até que elas se estabeleçam numa vida com – e muitas vezes em função de – homens… Pois é.

Eu sei e você sabe que, dentro do patriarcado, todas somos treinadas desde cedo para nos conformarmos e nos adequarmos às expectativas masculinas do que é ser e parecer mulher.

Entendo que você também sofra com isso. Até porque, pra você, essa construção de toda uma vida em volta de homens também envolve a esfera sexual. Mas já parou pra pensar quantas vezes colocamos justamente essa atração sexual-afetiva por homens como parte integrante da condição de ser mulher?

Não é difícil perceber como esse desejo pela atenção masculina é definidor no enquadramento dentro do “universo feminino”. E é interessante, inclusive, como até mesmo muitos homens gays descrevem a si próprios numa identificação com esse universo, uma vez que eles se identificam, na verdade, com o desejo — tido como feminino — pela atenção masculina. Desejar homens e falar de homens é visto como um comportamento feminino — ou feminilizado, ao menos.

E é aqui que começa minha angústia: até a noção da “menina-macho” na infância é vista como uma fase. Eu odeio essa expressão, menina ou mulher-macho, mas você sabe do que estou falando.

Todo mundo teve essa coleguinha. Aquela das roupas mais largas, às vezes meio descabelada, que era “moleca” na atitude e “desleixada” na sua expressão de gênero. Aquela que se vestia e se comportava “como menino”. Aquela que as mães não acham madura o suficiente (ainda!) para performar uma aparência feminina estereotipada, com o propósito de atrair a atenção masculina. Veja bem como esse comportamento é tido como algo que meninas e jovens mulheres superam, algo transitório. A gente só é madura, feliz e menos infantil quando “se arruma” para atrair o olhar masculino.

Você sabe que hoje eu me aceito. Mesmo estando em contínua (des)construção, eu me entendo como lésbica, e apesar de ter tentado negar ou dar outros nomes a isso em vários momentos da vida, lá no fundo eu sempre soube que alguma coisa era diferente pra mim. Eu era aquela coleguinha.

Na maior parte do tempo, usar maquiagem e aquelas roupas restritivas (e nada práticas) da seção feminina nunca me interessou. Desde muito pequena, eu rejeitava (inclusive com birras épicas, diz minha mãe) a imposição de roupas e atividades “de princesa”.

Depois de uma certa idade, percebi que isso era algo que meninas e mulheres faziam para obter a aprovação masculina, e a real é que eu nunca me importei muito com a aprovação masculina. Pelo menos não da maneira que minhas amigas pareciam se importar.

Eu queria ter a atenção e o afeto de mulheres, não de homens. Ficar me apertando em roupas desconfortáveis, ou desperdiçar meu tempo com longos procedimentos estéticos, me parecia — e ainda me parece — extremamente sem sentido. Sabe quando não tem nenhum tipo de recompensa? É que, realmente, a atenção masculina nunca foi recompensante para mim.

O único prêmio de consolação, quando eu finalmente cedia a essas normas, era a pequena pausa nas cobranças e observações da família, dos porquês de eu NÃO usar maquiagem e um vestidinho ou não pentear direito o cabelo. Isso era motivo de desgosto para os meus pais. Parecia que a minha facilidade com línguas estrangeiras, o quanto eu me destacava nos esportes, ou o quanto eu avançava no aprendizado do violão e gostava de ler, não me davam tantos créditos quanto os dias em que eu me interessava por essas tais coisas de menina.

Nos dias em que eu me enfeitava e me apresentava “como uma menina”, os elogios eram tantos, e tão reforçados. De todos os lados. Como eu estava cada dia mais linda! Como eu já era uma mulher!... E meu comportamento fora desses momentos era ligado invariavelmente a uma questão de rebeldia, de uma falta de maturidade emocional ou de algo que ainda não tinha se desenvolvido o bastante em mim, para querer essas coisas naturalmente.

Como se querer essas coisas fosse o curso regular da vida, ou o único resultado possível de uma expressão suficiente do que é ser mulher.

Bom, como você sabe, essa vontade nunca apareceu. E, por isso, lido com uma espécie de desconfiança geral, um limbo na sociedade, e frequentemente com um tipo de condescendência explícita, no sentido de que minhas conquistas parecem sempre apagadas pelo fato de que, no alto dos meus 30 anos de idade, minha existência não seja voltada em nenhum sentido para agradar homens.

Minha existência como mulher adulta é sutilmente invalidada em inúmeras circunstâncias porque eu, deliberadamente, não almejo, não procuro e não priorizo a atenção masculina em nenhum aspecto da minha vida.

Voltando um pouco, mulheres heterossexuais vêem meninas mais “masculinizadas”, essas que não se encaixam dentro dos estereótipos de feminilidade, como sendo performances passageiras de certas crianças no processo de amadurecimento (“é só uma fase!”) e, por também entenderem a atração por homens como parte integrante da condição de ser mulher, elas acreditam que todas essas meninas vão, eventualmente, desejar homens e finalmente amadurecer. Elas repassam a crença de que a condição feminina é definida por relações com homens, e que ela precisa ser validada por homens.

Então você entende que, mulheres lésbicas — para quem esse desejo por homens não aparece, ou apareceu apenas compulsoriamente em algum momento da vida — não são vistas e nem levadas a sério como mulheres plenas, maduras e realizadas.

Claramente, se nós nunca fomos iniciadas nessa condição de mulher através do rito de passagem que é desejar homens, estamos congeladas no tempo, pequenas para sempre, presas nessa infantilização de que é sempre uma fase, algo provisório. De que existe algo a se desenvolver e a se resolver dentro de nós.

Era isso que eu queria te dizer, afinal. Será que você consegue enxergar isso à sua volta? Será que você tenta, ativamente, reformular esses padrões no seu entorno? Será que você também está cansada?

Porque eu estou. É cansativo, porque se temos algo em comum, mulheres hétero e homossexuais, é a noção de que somos excluídas dos círculos masculinos de poder mesmo quando provamos nossa criatividade, nossas ideias e ambições. Mesmo quando fazemos deles, os homens, prioridade.

Então por que perpetuar tudo isso, enquanto poderíamos todas contribuir para que nossas vidas e nossos corpos fossem autenticamente nossos? É triste como nós também usamos umas às outras para alargar nossas próprias distâncias e criminalizar nossas existências, únicas e independentes.

Finalmente, eu não preciso de respostas, na verdade. E talvez eu já nem esteja fazendo sentido pra você. Eu queria apenas que você soubesse de tudo isso, como hoje eu sei. Porque você ainda vai olhar pra muitas mulheres e meninas com essas lentes que nos forçam a usar, e você vai poder escolher definir através desse filtro ou não.

Você tem, nas suas mãos, a escolha de validar as experiências múltiplas do que é ser mulher e a livre expressão de si, principalmente de jovens meninas, para que elas não passem uma vida tentando se encontrar, muitas vezes sem sucesso, dentro de padrões injustos e heteronormativos.

Para que o valor e a felicidade delas não estejam atrelados ou sejam proporcionais a quem desejam, e pra que elas se sintam mulheres, grandes, inteiras, do jeitinho que são.

Com amor,

C.

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