Rebecca Reis
Team Kenoby
Published in
3 min readOct 7, 2021

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A semelhança entre um pintor com catarata, um escritor japonês minimalista e uma comissária de voo.

Imagine a cena: seu amigo chegou de viagem. Ele passou duas semanas em Buenos Aires e voltou super empolgado querendo te contar que conheceu tudo o que tinha na cidade. Você — muito atento e curioso — o escuta, se encanta com os relatos e guarda aquelas informações. Passam alguns meses, você tem a oportunidade de ir a Buenos Aires também. Aí você se lembra do seu amigo, pede todas as dicas (afinal, ele já conhece tudo), e embarca feliz da vida. E para a nossa não surpresa, dez dias depois, você volta e diz: “conheci Buenos Aires inteira! Fiz tudo o que tinha para fazer por lá!”.

Todos nós já vimos uma cena como essa, ou já a protagonizamos em algum momento da vida. Temos sede de novidades, temos pressa para conhecer coisas novas. Mal absorvemos um conteúdo e já estamos de olho no próximo. É como se fizéssemos, a todo momento, listinhas mentais com lugares que queremos conhecer, coisas que queremos aprender ou fazer, e fôssemos marcando rapidamente o que foi feito para poder seguir para o próximo item. E veja, não há exatamente um problema com essa dinâmica, mas um custo de oportunidade. Quando optamos por fazer de um jeito “a”, automaticamente perdemos a oportunidade de fazer de um jeito “b”.

Lhes apresento um aclamado pintor, que nos trará um novo modo de ver as coisas: Claude Monet. Sim, aquele mesmo do quadro da ponte verde, sobre um lindo lago com plantas e flores aquáticas (e de suas tantas outras obras magníficas). Monet costumava pintar uma mesma paisagem diversas vezes. Cada vez que pintava, encontrava algo novo por ali. Embora tivesse a ideia de capturar as distintas influências da luz naquele cenário, em distintas épocas do ano, percebia algo novo no já velho conhecido. Não aceitava terminar as suas pinturas: “quanto mais eu fico, mais eu busco o impossível e mais impotente eu me sinto”. Ok, ele pegou pesado nessa. A ideia aqui não é trazer o sentimento de impotência a ninguém. Mas imaginem que Monet tivesse marcado em sua listinha mental um “ok” apressadamente na primeira vez que pintou a famosa ponte. Possivelmente hoje ela não seria tão famosa assim.

Fumio Sasaki é um grande escritor e editor-chefe da Wani Books. Atualmente mora em Tóquio, em um apartamento de vinte metros quadrados, mobiliado apenas com uma caixa de madeira, uma escrivaninha e um colchão. Em seu livro “Dê adeus ao excesso”, ele conta não só como deu fim aos próprios excessos, mas também do bem-estar e da alegria que vem experimentando desde então. Me chamou muito atenção um trecho onde ele escreveu “gosto de fazer o mesmo caminho para o trabalho todos os dias — isso me permite apreciar as mudanças das quatro estações”. É notável em sua fala não o cansaço de quem passa pelo mesmo lugar todos os dias, mas a curiosidade e o prazer em buscar a novidade no que é visto todos os dias. Sasaki poderia anotar em sua listinha mental todos os possíveis caminhos para ir ao trabalho, e marcar com um “ok” cada vez que passasse por um novo. Mas preferiu se deliciar com os detalhes e enxergar o que talvez tivesse passado despercebido pela primeira vez.

Por fim, a comissária de voo. Fui aeromoça por muitos anos, e sempre que descobriam minha profissão, me diziam: “nossa, então você já conhece tudo!”. Mas sentia que decepcionava as pessoas quando respondia que “não”, e que a cada vez pernoitava em uma cidade, conhecia mais um pouquinho dela. Parecia haver uma ânsia para que eu já tivesse conhecido tudo. Mas até pela própria profissão, precisei conhecer aos poucos os lugares por onde passava — nunca houve tempo para fazer “tudo”, de dar um “ok” na minha listinha mental logo de primeira. Percebi que ao revisitar os mesmos lugares, o já conhecido, conhecia algo novo.

Mas o ponto alto de toda essa conversa, meus caros, não é sobre deixar nossas listinhas mentais de lado. Isso, nunca! Mas, sim, sobre não dar o “ok”. Deixem o quadradinho ao lado do item em branco. Conheçam, aprendam, visitem. Depois, se permitam revisitar, reaprender. O imediatismo que estamos experimentando não tem nos permitido voltar, mas apenas avançar (e logo). Quando pensamos que já conhecemos algo, perdemos a chance de conhecer mais. Com um olhar mais atento ao que está à nossa volta, com paciência para redescobrir, saboreamos a vida ao invés de engoli-la. E é isso o que um pintor com catarata, um escritor minimalista e uma comissária de voo tem em comum!

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