O Blockchain e a Digitalização da Cadeia de Confiança

Alain Max Banfi
Tech leap
Published in
9 min readMay 16, 2016
Foto de Bruno Kvot — Flickr — Friendship

Ralph Linton, famoso antropólogo americano, dizia que se um peixe fosse analisar seu ambiente a ultima coisa que perceberia é a água. Há elementos que são tão presentes em nossas vidas e nosso quotidiano que eles passam despercebidos, passam a ser simplesmente “como as coisas são”. Até, isto é, chegar uma nova descoberta tecnocientífica que transforma o que era antes quotidiano em retrógrado, e olhamos para traz sem acreditar como vivíamos de forma tão precária, sem acesso por exemplo a eletricidade, ao motor a combustão, a telecomunicação, a internet e tantas outras invenções.

Muito se fala atualmente sobre o blockchain, mas qual é seu potencial impacto em nossa economia e sociedade?

A resposta rápida é que não sabemos. O blockchain é uma tecnologia de base, como o TCP / IP que permitiu a Internet, e assim como a Internet no início da década de 90 não sabemos exatamente como irá evoluir, apenas que existe um leque enorme de possíveis aplicabilidades. Sua primeira utilização foi para transações de criptomoedas como o bitcoin, mas logo surgiram novas iniciativas como o Ethereum que adicionam agora uma camada de inteligência com funcionalidades programáveis ao ecossistema, e começamos a ver a criação de aplicativos e organizações descentralizadas, gerenciadas por software.

Isso dito, há contudo características do ecossistema (e destas iniciativas criadas até então) que dão claras indicações sobre o verdadeiro potencial disruptivo do blockchain. Acredito que haja dentre estes um ponto que — talvez em meio a todas as conversas técnicas e desafios mercadológicos — não esteja ganhando o devido reconhecimento, mas que representa um pivoteamento sobre um dos principais pilares em cima dos quais construímos nossos negócios e nossa sociedade: A cadeia de confiança. Ao criar um sistema de consenso distribuído, o blockchain esta digitalizando a cadeia de confiança, com consequências inimagináveis para o nosso dia a dia.

O problema em identificar o verdadeiro preço da baixa confiabilidade é que a desconfiança é invisível, intangível, é como a água no oceano dos peixes, estamos tão acostumados com a mesma que nem notamos sua ambiguidade ou paramos para questionar suas implicações.

Em seu livro The Speed of Trust, Stephen M. R. Covey exemplifica diversos efeitos da baixa cadeia de confiança. Uma estimativa por exemplo coloca o custo da burocracia (uma das sete “taxas da baixa confiança” identificadas no livro) como US $ 1,1 trilhão apenas nos EUA. Adiciona então como “A capacidade de estabelecer, ampliar e restaurar a confiança com todos os stakeholders — clientes, parceiros de negócios, investidores e colegas de trabalho — é a competência-chave de liderança da nova economia global.”

Dentre serviços existentes hoje por exemplo, o que leva os bancos a exigirem os altíssimos colaterais compensatórios que dificultam o acesso às linhas de credito ou mesmo, como no caso da população mais pobre, aos próprios serviços bancários? O que encarece o custo dos empréstimos, das taxas interbancárias e serviços financeiros em geral, dos serviços de seguros ou para ir ainda mais longe, o que esta embutidos no encarecimento de todos os produtos e serviços que carregam em seu preço o overhead associado a risco, verificação e certificação? Na realidade qualquer transferência de valor traz ponto críticos que atualmente envolvem diversos intermediários. A troca de imóvel por exemplo envolve serviços de custódia, registro, verificação de antecedentes, taxas de transferência, auditoria financeira, execução do contrato dentre muitos outros, feitos por agentes intermediários criados essencialmente sobre a necessidade de gerar confiança e oferecer verificação. Todos cobram taxas, e representam pontos de risco e atraso com os quais somos obrigados a lidar.

Talvez ainda mais significativo do que custo que carregamos em serviços existentes seja o custo oportunidade do que deixamos de criar por não haver confiança: Por que não aceitávamos por exemplo desconhecidos em nossos carros, ou nossas casas? Por que não contratamos serviços de estranhos, ou porque mesmo não fazemos transações diretas, como empréstimos, investimentos e seguros, com pessoas desconhecidas? Tão importante quanto, quais são as novas possibilidades que se abrem uma vez que estas barreiras de desconfianças são removidas?

A Airbnb e Uber, assim como plataformas de vendas como o eBay na década anterior, demonstram o poder das chamadas plataformas peer-to-peer (p2p), ou de conexão direta ente usuários. Ao utilizar os próprios usuários como sistema de validação e reputação, conseguiram reinserir a confiança entre pessoas para fazer transações diretamente entre si. Esta reinserção, por vez, permite uma capitalização e reutilização extraordinária dos ativos econômicos. Um carro por exemplo é usado em media 5% de seu tempo de vida e, quando usado, costuma a carregar de 20 a 25% de sua capacidade de passageiros. Assim, utilizamos de 1 a 2% de uma ativo econômico em uma indústria que representa um percentual enorme de nossas economias. O Blablacar, aplicativo europeu para organizar caronas, já transporta mais pessoas do que o sistema ferroviário americano inteiro, isso sem gastar um centavo a mais em aço ou cimento para construir trens e ferrovias ou combustível. Este reaproveitamento, ademais, aumenta as opções de consumo (posso ficar em um hotel, mas também em uma residência) e tem sobretudo um viés democrático na medida em que as pessoas de renda menor fazem proporcionalmente mais proveito de seus bens (imóveis, carros, etc) para a criação de renda adicional.

O blockchain permite agora a chamada segunda geração de plataformas p2p, em um ecossistema verdadeiramente decentralizado, sem comissionamento, dependência ou regulamentação central alguma (hoje exercidos pela Uber, Airbnb e semelhantes) e sem depender de inputs manuais para sustentação da cadeia de confiança. Qualquer transação feita em um ecossistema Blockchain cria um registro público que é salvo em um banco de dados distribuído, sem repositório e proprietário único. Algoritmos sofisticados confirmam e validam então estas transações. Isso permite de um lado fazer transações de forma muito mais segura, rápida e barata do que qualquer alternativa que depende de verificação e intermediação de autoridades centrais. Ademais, o rastro e a credibilidade digital dos usuários fica salvo não em um servidor central pertencente a um Uber, Airbnb ou Facebook, mas em um banco de dados distribuído em uma cadeia de blocos (block-chain) público e decentralizado.

Trata-se de uma solução altamente escalável, independente de erro humano e, talvez mais importante, inteiramente preparada para integrar a novas interações diretas ente maquinas com a entrada massiva da IoT e o início dos chamados smart contracts.

Assim, o blockchain representa por um lado uma grande oportunidade para organizações tradicionais e instituições financeiras para aumentarem sua base de clientes e sua eficiência processual. A Ripple, uma solução para transações financeiras distribuídas, explica por exemplo como: “as transferências internacionais hoje são processadas através de uma cadeia de bancos, aonde cada intermediário representando um potencial ponto de atraso, falência e custo. Os bancos menores dependem de grandes bancos correspondentes para fornecer liquidez para os pagamentos… O processo requer que bancos depositem garantias em contas nostro com bancos correspondentes. O sistema de transferência via banco correspondentes faz com que a manutenção de certos tipos de pagamentos internacionais, como pagamentos de baixo valor, não sejam rentáveis para os bancos.” Ela oferece então uma alternativa que, de acordo com a empresa, reduz em até 60% os custos de transações internacionais. Diversos consórcios como a R3 e Hyperledger estão estudando alternativas similares, já com a filiação de muitos dos maiores bancos e empresas do mundo, que começam a estudar o uso da tecnologia.

A maior oportunidade contudo, talvez sequer esteja na redução de custos, mas sim no acesso à novos clientes. A CoinDesk, em seu artigo “How the Blockchain Can Unshackle the World” explica: “Pense nas… mais de 2,5 bilhões de pessoas no mundo que estão sem banco, sem um registro de seu histórico financeiro, fato que restringe severamente sua capacidade de pagar a educação dos seus filhos, ou fortaleçam sua subsistência…Pense na oportunidade econômica que irá para indivíduos e empresas se eles forem capazes de acessar os serviços financeiros, tais como contas de poupança e empréstimos….Imagine se você pudesse verificar a identidade da pessoa, a sua confiança, através de um registro que não pode ser adulterado…Qualquer um seria mais propenso a fazer negócios com eles se pudessem avaliar o verdadeiro risco de emprestar ou transacionar com eles.”

Talvez seja natural visualizarmos primeiro as vantagens oferecidas para transações financeiras, mas sua aplicabilidade potencial vai muito alem. A criação de um ledger público seguro, como permitido pelo blockchain, pode ser usado para registrar por exemplo a criação de qualquer produto, propriedade intelectual ou propriedade artística, bem como de todas suas futuras transações, evitando fraudes e falsificações (de obras, de origem de produtos, antecedência, entre outros) ou mesmo, como o CoinDesk sugere, pode ser usado para salvar dados pessoais como os de saúde: “Cada vez que vamos ao um novo médico, temos que lembrar toda nossa história médica. Imagine se o seu histórico médico, seus medicamentos e cirurgias estivessem salvos e seguros no blockchain. Você seria capaz então de autenticar e enviar os dados que você quisesse transferir para terceiros, seja este um novo médico, uma companhia de seguros, um estudo de pesquisa ou um parente. Você também teria a segurança de saber que os dados não poderia ser sido alterados.

Por outro lado contudo, o blockchain representa uma grande ameaça. De imediato, instituições que atualmente verificam as operações de terceiros (a autoridade central) arriscam ser desintermediadas: auditores, processadores de pagamento, corretoras, serviços jurídicos e outras organizações similares. Ademais, a chancela de confiança fornecida por grandes organizações e marcas representava uma das principais barreiras de proteção contra o surgimento de soluções alternativas. De fato, nossa economia foi em grande parte construída sobre uma estrutura organizacional aonde produtos e serviço eram fornecidos por empresas e comprados por clientes, mas como mencionamos em nosso texto introdutório,a descentralização propulsionada por plataformas peer-to-peer (e radicalmente empoderado pelo blockchain) desloca uma fração enorme da economia para fora de organizações tradicionais, que perdem o papel de centralizadoras destes serviços em função da conexão direta entre usuários”.

Já é conhecido como pouco a pouco a tecnologia vem corrompendo as barreiras de entrada ao mercado e a proteção de grandes organizações. A digitalização, e em breve a impressão 3D, já democratiza e decentraliza o custo de produção e economia de escala, a internet democratiza os canais de marketing e distribuição, mas durante todo este período havia um empecilho para o fornecimento direto de serviços entre usuários: justamente a chancela de confiança trazida por uma grande marca ou autoridade central. É exatamente esta barreira que o blockchain pode agora remover.

Uma coisa é certa, o blockchain, assim como tantas outras inovações tecnológicas anteriores, abre um leque de inúmeras novas possibilidades, e se por um lado esta digitalização da cadeia de confiança é ameaçadora para algumas organizações, por outro traz oportunidades extraordinárias para a sociedade e economia mundial como um todo, dentre as quais nada menos do que a inclusão financeira de possivelmente bilhões de pessoas e aumento radical da base de consumidores, a remoção de barreiras burocráticas e o consequente aquecimento da economia.

Ha contudo desafios para sua implementação, sobretudo desafios institucionais, de regulamentação e resistência pela ameaça às fundações e à própria raison d’être (razão de ser) de diversos negócios e diversas das maiores fontes de lucro do mundo. Mas como observa Mohit Kaushal em seu artigo sobre o Bitcoin, “Semelhante à Internet, devemos permitir que o Blockchain também cresça de forma desimpedida. Isso vai exigir um tratamento cuidadoso que reconhece a diferença entre a plataforma e os aplicativos que rodam sobre a mesma. O TCP / IP capacita inúmeras aplicações financeiras que são reguladas, mas o TCP / IP não é regulamentada como instrumento financeiro. O Blockchain devem receber consideração semelhante. Enquanto o uso predominante para o Blockchain hoje é Bitcoin, que poderá exigir regulamentação, isso irá mudar ao longo do tempo”. De fato, o primeiro trimestre de 2016 foi a primeira vez em que investimento em startups de blockchain ultrapassaram os investimentos em startups de bitcoin.

Mohit continua, “Se tivéssemos sobre-regulamentado a Internet em seu início, teríamos perdido muitas das inovações que hoje não podemos imaginar viver sem. O mesmo é verdade para o Blockchain. Tecnologias disruptivas raramente se encaixam ordenadamente em frameworks regulatórios existentes, mas marcos regulatórios rígidos têm repetidamente sufocado a inovação. É provável que as inovações no Blockchain irão ultrapassar a política, não vamos retardá-lo”. Tampouco deveremos retardar os beneficio que esta trás para a inclusão financeira e aceleração econômica, a democratização de oportunidades, e a reinserção de um elemento que o mundo carece desesperadamente: a confiança uns nos outros.

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Alain Max Banfi
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