Olhando por trás da Cortina — Uma conversa com Ronaldo Lemos

Alain Max Banfi
Tech leap
Published in
7 min readJun 14, 2016
Ronaldo Lemos — Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro, Sócio do Pereira Neto Macedo Advogados,

Na biologia a resiliência de uma espécie é descrita como a habilidade de readequar-se às mudanças de seu ecossistema. De fato descobertas antropológicas recentes revelam que há apenas 30 mil anos haviam ao menos quatro espécies de hominídeos (entre os quais o conhecido Neandertal) mas foi justamente a resiliência dos humanos que permitiu sua sobrevivência durante a era glacial, inovando e readaptando suas ferramentas para caça e moradia, desenvolvendo novas formas sofisticadas de comunicação, e organizando questões econômicos e sociais uns com os outros.

Seguindo a natureza exponencial do desenvolvimento tecnológico, estamos ao que tudo indica entrando em uma nova fase de mudanças profundas em nosso ecossistema social, econômico e politico. Mais desafiador ainda, como o tempo de colocação de novos produtos e tecnologias encurta sempre, esta mudança só tendem a acelerar. Assim como na era glacial, a resiliência e adaptabilidade não apenas de indivíduos, mas de organizações e mesmo sociedades provavelmente voltará a ser testada, e o papel de líderes capazes de navegar este novo ambiente será mais importante do que nunca.

Ronaldo Lemos é uma das raras figuras amplamente adaptadas aos desafios deste novo ecossistema. Esta igualmente confortável falando sobre o impacto social, jurídico, cultural e político da tecnologia em seu papel como Diretor do ITS do Rio de Janeiro, quanto de assuntos regulatórios, propriedade intelectual e estratégias de negócios como sócio de seu escritório de advocacia, o Pereira Neto Macedo Advogados. Sua lista de realizações e títulos, ademais, preencheriam um pagina inteira, e incluem entre outros professor da cadeira da UERJ, representante da diretoria do MIT Media Lab para o Brasil e diretor do Creative Commons Brasil, fundador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV e é claro o Marco Civil da Internet, do qual foi um dos grandes idealizadores.

Talvez mais fascinante do que suas credenciais contudo, seja a visão de mundo e clareza com a qual ele navega temas de importância crucial para negócios e política. Em uma sociedade aonde nosso interesses frequentemente se limitam à temas que afetam nosso sucesso pessoal ou organizacional, Ronaldo carrega uma missão de “por holofotes” em assuntos sobre os quais temos em geral muita pouca ciência, mas que — à exemplo de projetos que tramitam em nosso governo — tem implicações assombrosas para nossa sociedade, economia e liberdade de expressão. Não obstante, está à frente de projetos que efetivamente colocam estas iniciativas em ação, como o novo projeto do ITS mencionado abaixo, e auxilia diversas organizações como membro de Conselho Administrativo.

Acreditamos que suas respostas ajudam não apenas na disseminação destes pontos e desta visão, mas no convite à nos familiarizarmos com tecnológicas disruptivas e a tomarmos as rédeas de nossa própria política, para juntos conseguirmos alinhar as mudanças que estão por vir aos nossos melhores interesses como sociedade.

Segue nossa conversa com Ronaldo Lemos:

Alain Banfi: Grande parte de nosso desafio na TechLeap é de identificarmos pontes entre os temas verdadeiramente disruptivos e assuntos familiares aos nossos parceiros de organizações tradicionais. Tendemos sempre a prestar atenção à assuntos com os quais temos familiaridade, mas as maiores ameaças vem muitas vezes de mudanças disruptivas que, pela sua própria natureza inovadora e desconhecida, não ganham atenção dos players estabelecidos. Como organizações podem resolver esta dicotomia?

Ronaldo Lemos: Há vários modelos para isso. O primeiro passo é entender que a tecnologia transforma tudo. Não só os modelos de negócio, mas também o próprio papel do Estado, o funcionamento da democracia e a esfera pública. E isso também tem impacto direto nos negócios. Do ponto de vista de ação, há vários modelos sobre como lidar com a disrupção. Um deles é desenvolver um processo de inovação interna permanente. É o modelo do Alphabet. Outro modelo é sair às compras no mercado. Um exemplo é a Y Combinator, que adquire pequenos percentuais em start-ups inovadoras, trazendo-as para perto de si. É um bom modelo também.

AB: Fazendo uma correlação com a política, há aqui também assuntos que são de extrema importância para nossa sociedade (como os ataques recentes ao Marco Civil e à liberdade de expressão) mas que muitas vezes não ganham a devida atenção, pois suas implicações não são inteiramente entendidas. O que podemos fazer para diminuir esta discrepância entre o que prestamos atenção no dia a dia, o que mais nos afeta de fato?

RL: Há uma agenda negativa no Congresso Nacional que é anti-inovação e anti-startups. Existe hoje um grande número de projetos de lei, alguns deles resultantes da chamada “CPI dos Cibercrimes” que, se aprovados, terão por consequência aumento de custos, burocracias e perda de competitividade local e global para as empresas de internet instaladas no Brasil. Sempre digo que “não se regula a internet em tiras”. Em outras palavras, uma lei de cibercrimes mal-feita produz efeitos colaterais sistêmicos para todo o ecossistema de inovação. É preciso que as empresas que apostam em inovação acompanhem esses debates e se manifestem. Se há um lado positivo no momento em que estamos vivendo é que hoje o país precisa mais dos empreendedores do que os empreendedores precisam do país. Com isso, é preciso canalizar a força política do empreendedorismo inovador brasileiro para transformar o limão dessa agenda negativa anti-inovação em uma limonada construtiva, que apoie os inovadores.

AB: Como exemplo de uma tecnologia ainda em grade parte desconhecida, mas que pode afetar profundamente o mundo dos negócios e o mundo político, gostaria de perguntar sobre o blockchain, primeiro em negócios: Vimos como o surgimentos de plataformas peer-to-peer como o Uber e Airbnb desloca uma fração da economia para fora de organizações tradicionais — que perdem o papel de centralizadoras destes serviços em função da conexão direta entre usuários. Ao que tudo indica, a tecnologia blockchain permite agora a chamada segunda geração de plataformas p2p, em um ecossistema verdadeiramente decentralizado (sem comissionamento, dependência ou regulamentação central alguma) e estamos vendo o surgimento das DAOs (decentralized autonomous organizations) ou mesmo o recente lançamento do The DAO que quebrou o recorde histórico de crowdfunding com cerca de USD 160 milhões. Qual a sua visão sobre o impacto desta descentralização no mundo dos negócios?

RL: Para o Brasil, no curto e médio prazos, ferramentas como a blockchain serão muito positivas. A blockchain pode ter um efeito transformador e aumentar transparência, reduzir burocracia, corrupção e aumentar a competitividade. Dois exemplo. O primeiro deles é que a blockchain vai reinventar o sistema cartorial brasileiro. Os cartórios vão se “desterritorializar”. Será possível que um cartório localizado na região nordeste do Brasil possa receber e emitir registros de títulos e documentos pela internet por meio da blockchain e emitir certificados a respeito deles usando para isso também a blockchain. Os cartórios que se moverem primeiro nesse sentido colherão benefícios enormes. O primeiro cartório que abraçar a blockchain para oferecer serviços para todo o Brasil irá gerar um efeito muito positivo. Estamos perto disso acontecer. Outro é feito é a blockchain e os DAOs para a democracia e para partidos políticos. Usando essas plataformas é possível transformar desde o funcionamento dos partidos, até as doações de pessoas físicas para partidos e candidatos, gerando grande transparência.

AB: Igualmente na política, vemos agora o surgimento de iniciativas verdadeiramente promissoras desenvolvidas com o blockchain como o Voto Legal, que fomenta a transparência política com o incentivo e rastreamento de doações de pessoa física, ou o projeto do próprio ITS para colher assinaturas via blockchain, facilitando em muito a criação de Projetos de Lei. Como você vê o papel do blockchain nesta possível “disrupção política” e o que poderia impedir seu desenvolvimento?

RL: O Brasil está vivendo um déficit de participação. Nosso sistema político mostra-se completamente disfuncional, incapaz de produzir verdadeira representatividade. Há um descolamento do Congresso Nacional da sociedade brasileira. Precisamos de uma reforma política para o século XXI. Não só fazer a reforma política tradicional, superando esse presidencialismo de coalizão que se tornou inviável, como incorporar as ferramentas digitais que hoje são disponíveis para reinventar o sistema democrático de participação. No ITS estamos fazendo exatamente isso. Estamos produzindo um sistema que permitirá a proposição de projetos de lei de iniciativa popular por meio da internet. Esse é um primeiro passo. É possível ir muito além.

AB: Em seu artigo sobre o bitcoin, Mohit Kaushal observa que “Semelhante à Internet, devemos permitir que o Blockchain também cresça de forma desimpedida. Isso vai exigir um tratamento cuidadoso que reconhece a diferença entre a plataforma e os aplicativos que rodam sobre a mesma. O TCP / IP capacita inúmeras aplicações financeiras que são reguladas, mas o TCP / IP não é regulamentada como instrumento financeiro. O Blockchain deve receber consideração semelhante. Enquanto o uso predominante para o Blockchain hoje é o Bitcoin …[não são a mesma coisa]. Se tivéssemos sobre-regulamentado a Internet em seu início, teríamos perdido muitas das inovações que hoje não podemos imaginar viver sem. O mesmo é verdade para o Blockchain.” Você concorda?"

RL: Concordo. É parecido com o que aconteceu com os sistemas de Voz sobre IP na década de 90. Quando surgiram, foram primeiro ignorados como “inviáveis”. Logo depois, várias empresas e iniciativas começaram a oferecer serviços de voz sobre IP. A reação a isso levou a enorme movimento regulatório, com empresas sendo fechadas e a regulação apontando que esses serviços seriam “ilegais”. Logo depois começou a assimilação daquela tecnologia. Os incumbents começaram a integrar Voz sobre IP como parte dos seus serviços regulares. Hoje a tecnologia está em toda parte e faz parte da nossa infraestrutura básica de comunicações. Algo similar vai acontecer com as moedas virtuais e a própria blockchain e os DAOs. Estamos começando a sair da fase da incredulidade. Em breve virá a fase regulatória. E depois dela virá a assimilação, com essas tecnologias se tornando parte da infraestrutura da vida contemporânea. Já vejo sinais disso acontecendo todos os dias nos casos que atendemos no meu escritório de advocacia em São Paulo.

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Alain Max Banfi
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