Jesus é brasileiro

Hudson Martins
#impressões
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6 min readFeb 8, 2017

Ou: um breve ensaio sobre os nossos afetos compartilhados pelo futebol

Créditos: Fernando Dantas - GazetaPress

De repente o Brasil ficou unido
contente de existir, trocando a morte
o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste
por um momento puro de grandeza
e afirmação no esporte.
Vencer com honra e graça
com toda beleza e humildade
é ser maduro e merecer a vida,
ato de criação, ato de amor.

Carlos Drummond de Andrade - 20/06/1970

São seis ou oito minutos do primeiro tempo, quando Gabriel Jesus - segunda vez como titular do Manchester City - recebe um passe ao lado da área grande. Atrás dele, como um touro, o bom meia Mark Noble. O gringo, talvez desprevenido, chega otimista demais para o desarme e toma um drible maravilhoso, até mais pela queda do que pelo drible propriamente dito. A jogada segue, sem maiores consequências.

Em algum lugar, minutos depois, uma chamada para o vídeo do drible desconcertante de Jesus. Mas, nos comentários, lê-se apenas gente desconcertada: ‘essa mídia exagerada!’, ‘cês querem estragar o menino igual quase fizeram com o Neymar?’, ‘o Gabriel Jesus dá um peido, vira notícia!’, coisas do tipo. Como se a atenção subitamente direcionada a ele fosse similar à de uma mãe superprotetora, que na ânsia de vigiar todos os passos do filho acaba tornando-o mais fraco.

Mas este caso é diferente.

Gabriel Jesus profissionalizou-se há cerca de dois anos. Na base, fora por muito tempo Gabriel Fernando, e foi assim que fez assustadores 37 gols em 22 jogos no Campeonato Paulista sub-17 de 2014. Logicamente, chamou a atenção. Na transição para o profissional, já havia trocado o Fernando por Jesus, assim como adotara a camisa 33 - referência explícita ao xará mais famoso. Uma estratégia perspicaz, especialmente tendo em conta que estamos no Brasil. Gabriel Krishna passaria batido. Gabriel Jesus é uma vantagem competitiva.

A simpatia gerada pelo nome veio acompanhada de grandes esperanças do palmeirense comum. Afinal, não bastasse a carência de ídolos, o clube flertara novamente com o rebaixamento em 2014. A boa nova foi que Gabriel Jesus adaptou-se bem ao profissional, e firmou-se em uma fase de transição do Palmeiras, que deixaria as vacas magras para se estabelecer em um terreno ainda desconhecido para os torcedores mais jovens. Terminada a segunda temporada como profissional, Jesus já ganhou uma Copa do Brasil, um Campeonato Brasileiro, e a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio, sendo titular e importante em todos os títulos. Some-se a isso a promissora mudança do comando técnico da seleção principal, e colecionamos argumentos para reforçar a tal estrela que já é atribuída ao garoto, e que nos permite pensar que, aos poucos, se materializam alguns privilégios metafísicos aparentemente destinados a ele.

O talento de Gabriel Jesus é nítido. As tomadas de decisão sincronizadas com a bola, os companheiros, os adversários. Os dribles não exatamente circences, mas suficientes para saciar, simultaneamente, torcedores, equipe e imprensa. Dentro da área - aqui, me parece importante um elogio a Tite, que talvez tenha visto mais longe do que vários de nós -, ele não apenas transparece uma frieza e antevisão assustadoras, como também desperta a imaginação do torcedor brasileiro, silenciosamente carente desde que Ronaldo deixou de ser Fenômeno. No campo, vê-se ainda uma inteligência incomum sem a bola: neste ótimo artigo, Renato Rodrigues se debruça sobre o tema. Nos bastidores, fala-se da sua dedicação, da paixão pelo jogo, da aparente boa orientação familiar.

Só que o afeto despertado por este Jesus não vem exatamente da bola. A voz ainda aguda e as expressões de choro da época do Palmeiras contrastam, em campo, com uma maturidade instintiva e uma alegria incontida em jogar futebol. Nas entrevistas, Gabriel Jesus é o extremo oposto da esmagadora maioria dos colegas de profissão: enquanto vários deles parecem adestrados, escolhendo cuidadosamente os termos politicamente corretos ensinados nos media trainings, Jesus parece esquecer-se do filtro, uma simplicidade que beira à inocência, e que tanto o leva a dizer banalidades particulares (“Pelo carinho da torcida, eu gostei da música, mas às vezes dá um sei lá o quê, por causa do nome Jesus…”³), quanto o faz chamar docemente um adversário de cuzão, em uma entrevista ao vivo, após desentendimentos durante o jogo. Em tempos de tamanha fé na razão, Gabriel Jesus parece ser um homem cordial, aquele dominado pelas paixões. Em tempos em que a bola e a simplicidade nem sempre combinam, Gabriel Jesus deixa o campo se dizendo podre. No fim das contas, dá para imaginá-lo compartilhando conosco um churrasco na laje, domingo à tarde, andando com um chinelo remendado enquanto cantarola um pagode gospel. Ao contrário de um dos seus xarás - cujo apelido já denota uma certa soberba -, e de várias outras estrelas da bola, Gabriel Jesus parece um de nós, parece real, e isso faz com que, de alguma forma, nós mesmos nos vejamos nele.

Não é só a estrela do garoto que é sacanagem. O movimento deste cabeceio também.

Não bastasse ser bom, Gabriel Jesus é profissional de uma atividade repleta de significado para o brasileiro. Embora trazido pelos ingleses, e inicialmente estranhado pela aristocracia daqui, o futebol foi sendo moldado, quase que artesanalmente, às peculiaridades e anseios da sociedade brasileira. No futebol, houve terreno fértil para expressão da picardia, da malandragem, da aversão à hierarquia, do experimento de uma dramatização que nos parece tão peculiar. O futebol pode não ter sido feito por brasileiros, mas parece criado para o brasileiro, não apenas porque aqui hibernava uma aquarela cultural riquíssima para o jogo, como porque, através dele, nós nos afirmaríamos como povo. Desde Olavo Bilac, até Nelson Rodrigues, Roberto da Matta e tantos outros, sentimos que o futebol nos fez passar de colonizados a colonizadores - e até hoje não aceitamos perder o posto, basta observar determinadas justificativas para o demoníaco 7 x 1. Foi com a bola nos pés que soubemos nos afirmar sobre os outros, ainda que eles detivessem tudo quanto é tipo de poder: econômico, político, bélico, espiritual. No campo, nada disso vale. Ali, o brasileiro percebeu que poderia não apenas sair vitorioso, como fazê-lo artisticamente, e poderia ser invejado por isso. Assim, firmou-se uma auto-estima ainda desconhecida, que nos fez perceber que, a despeito de projeções cartográficas quaisquer, era possível que o centro do mundo fosse aqui.

E, de então para cá, o brasileiro tem um destino de campeão. Vence tudo. Os nossos cavalos triunfam, lá fora, não porque sejam bons, mas porque são brasileiros. As nossas caixas de fósforos ganham nas exposições. Há coisa mais comovente do que um zebu premiado, com uma medalha pendurada na fitinha? Se os cavalos, os zebus, as caixas de fósforos estão brilhando - porque falharia o homem? - Nelson Rodrigues²

As coisas se encaixam. Porque o Gabriel não apenas é Jesus, como é jogador de futebol, é um sujeito legal, e ainda é brasileiro. E, embora não nos seja comum admitir, nós ainda guardamos, na nossa herança cultural, um desejo profundo de afirmação sobre esses olhares desdenhosos. Ainda que perder nossos craques nos cause um certo transtorno, nós vibramos secretamente quando eles se instalam na Europa e mostram que não serão pé-de-obra descartável. Nós vibramos com o zebu, mas vibramos mais ainda quando um moleque do Jardim Peri entorta o cara do presunto do oeste e, dias depois, tira o sorriso da gringaiada azul, já nos acréscimos. Nós gostamos de ouvir o Pep Guardiola dizendo que um brasileiro é diferente, que, na área, ele tem algo especial. Porque não é apenas o triunfo de Gabriel Jesus, mas é o triunfo dos vira-latas sobre os bull terriers, e talvez ainda não haja um terreno tão fértil para nossas vitórias caninas quanto o futebol.

A essa altura, evidentemente, também ressoam as vozes da prudência. O percurso de Gabriel Jesus não é exatamente inédito e nos lembra, por exemplo, de Alexandre Pato, que surgiu como um furacão e, embora seja muito bom jogador, não se tornou a estrela que se esperava. A cada dia, Gabriel Jesus se aproxima da tênue fronteira que separa os ótimos dos gênios. Até lá, não nos resta outro remédio outro que não a paciência, talvez acompanhada de uma certa admiração.

Por outro lado, talvez o brasileiro tenha uma certa indiferença com o futuro, porque ainda guardamos conosco aquela promessa de que tudo vai ficar bem. E, enquanto isso, parece melhor entregar-se ao agora, ao invés de antecipar o sofrimento de um povo já sofrido. Assim, ao invés de exercitar uma certa hipocondria da bola, parece mais saudável apreciar o sucesso do menino e torcer para que ele se estenda, não necessariamente pelos séculos dos séculos, mas o suficiente para voar longe. Por ele, e por nós mesmos.

Afinal, o Gabriel é Jesus. E ele é brasileiro.

¹poema publicado no Jornal do Brasil, na véspera da Final da Copa do Mundo de 1970;

² da crônica “O Brasil desencadeado”, publicada no Jornal dos Sports em 16/06/1962;

³trecho de entrevista retirada daqui;

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Hudson Martins
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Filosofia e Futebol. Ciências do Esporte, Unicamp.