Estônia ou Brasil?

Prós e contras na escolha da sede de uma startup baseada em blockchain

Bernardo Monteiro
MTK advogados
7 min readMay 30, 2018

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Em artigo publicado esta semana na Folha, Ronaldo Lemos, diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS), comentou sobre a experiência da e-Residency estoniana, uma identidade digital que dá acesso, por meio da internet, a serviços públicos oferecidos pelo governo da Estônia. Com a e-Residency qualquer pessoa pode abrir uma startup na Estônia sem sair de seu país.

Foto de Wead (Shutterstock portfolio)

A Estônia vem despertando o interesse do mercado de criptomoedas e criptoativos, pois a legislação e os órgãos reguladores do país lhe são favoráveis. Inclusive, o próprio governo mostra interesse em atuar nesse mercado, discutindo lançar sua própria criptomoeda, a estcoin. É uma conjuntura atraente a que a e-Residency facilita o acesso.

Há empresas brasileiras que constituíram sua pessoa jurídica na Estônia, como por exemplo, a Paratii e a Taylor. Vejamos alguns motivos que podem levar empreendedores de startups a deixarem o Brasil.

Em primeiro lugar, no Brasil, há incerteza sobre a regulação aplicável aos diferentes sistemas que empregam blockchain. A operação de startups do setor depende geralmente da utilização de algum criptoativo, seja uma criptomoeda, um token como valor mobiliário, ou um utility token.

No Brasil, se um token funciona como uma criptomoeda, pode despertar reações contrárias do BACEN. Se funciona como valor mobiliário (como uma ação de empresa, por exemplo), estará sujeito à regulação da CVM. Só alguns tipos de utility token parecem gozar de maior liberdade. Segundo a CVM, "quando ocorre a emissão de um “utility token”, a distinção não é tão clara, podendo ou não haver entendimento de que houve emissão de valor mobiliário. A emissão de “utility tokens” ocorre quando o ativo virtual emitido confere ao investidor acesso à plataforma, projeto ou serviço, nos moldes de uma licença de uso ou de créditos para consumir um bem ou serviço".

Os tokens podem ter várias funções ao mesmo tempo, sendo difícil dizer se um determinado token está sujeito a sanções da CVM ou do Banco Central. Tal situação, no mínimo, dificulta o compliance da startup.

Em segundo lugar, além da dificuldade de definição do seu regime jurídico, os criptoativos enfrentam ainda alguma hostilidade do Congresso Nacional e dos órgãos reguladores. É um assunto novo sobre o qual ainda não há consenso.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 2.303 de 2015, para criminalizar as criptomoedas. De acordo com esse projeto, a emissão, a intermediação de troca, o armazenamento, a troca de moeda virtual ou de criptomoeda seriam um novo caso do crime de emissão de título ao portador sem permissão legal, que tem por propósito proteger a confiança e a segurança da moeda nacional. Essa proposta de enquadramento penal é sintomática: o Legislativo parece entender que as criptomoedas ameaçam o sistema monetário nacional.

Não só o Legislativo, mas também o Banco Central parece ter entendimento desfavorável sobre outros aspectos das criptomoedas. Por meio de dois comunicados (Comunicado nº 25.306, de 19/02/2014 e Comunicado nº 31.379, DE 16/11/2017), o BACEN alerta a população para a insegurança e volatilidade das aplicações em criptomoedas.

Esses são alguns exemplos do grau de incerteza do ambiente regulatório brasileiro, o que ajudam a explicar o interesse de empreendedores de startups pela Estônia. Mas antes de decidirmos qual o melhor lugar para sediar uma startup, façamos algumas considerações.

Uma pessoa jurídica na forma de uma startup, usuária da tecnologia blockchain, pode ser criada sob a forma de uma empresa ou de uma associação.

A empresa pode distribuir lucros, mas a startup pode não ter esse objetivo em sua operação ordinária, especialmente quando os fundadores pretendem ganhar dinheiro por meio de reserva para si de uma fração de seus tokens. No entanto, a possibilidade de distribuir lucros pode ser útil em caso de responsabilidade civil dos sócios ou de desconsideração da personalidade jurídica, como veremos mais adiante.

Já a associação não pode distribuir lucros ou qualquer forma de patrimônio, devendo aplicá-lo apenas na realização do objeto social da associação. Essa limitação pode ser interessante para garantir aos investidores que o “dinheiro” (geralmente em criptomoeda como o Ether) arrecadado com a venda de tokens, guardado em uma conta da associação, será utilizado apenas para desenvolvimento do projeto, e não poderá ser distribuído para os sócios. No entanto, tal garantia também pode ser oferecida por meio de contratos inteligentes programados em Solidity, usando a mesma tecnologia de blockchain desenvolvida para a rede Ethereum. Tais contratos inteligentes, em tese, são garantia mais sólida e confiável que as leis que regem as associações sem fins lucrativos.

Dadas as informações acima, passemos à comparação das situações que podem atingir os sócios de projetos com blockchain, em dois casos, um de responsabilidade civil e outro de responsabilidade criminal.

HIPÓTESE 1:

Responsabilidade civil perante os investidores, clientes e usuários.

Se uma startup erra em sua operação, pode comprometer o desenvolvimento de seu projeto e dificultando a entrega dos serviços ou produtos prometidos a seus investidores, clientes ou usuários.

Caso a startup não consiga se recuperar ou reverter o ocorrido, os prejudicados podem exigir indenização contra a empresa. Se a relação entre as partes puder ser enquadrada no campo do Direito do Consumidor (arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor), a responsabilização da empresa no Brasil ocorrerá independentemente de culpa (arts. 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor).

Em caso de fraude, de uso da pessoa jurídica como obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores ou de desvio de finalidade, a justiça brasileira, com base nos artigos 50 do Código Civil ou 28 do Código de Defesa do Consumidor, excepcionalmente poderia determinar a desconsideração da personalidade jurídica para atingir o patrimônio dos sócios diretamente.

Vejamos como seria a situação da startup em cada um dos quatro casos abaixo:

  1. Associação no Brasil: a pessoa jurídica poderia ser responsabilizada pela justiça brasileira por prejudicar investidores, clientes ou usuários. O patrimônio dos dirigentes, se mantido o entendimento do STJ no Recurso Especial nº 1.398.438 — SC, não seria atingido, mesmo que esgotado o patrimônio da associação. Aplicação da desconsideração da pessoa jurídica a associações seria pouco provável, segundo o mesmo acórdão do STJ, que considera a natureza distinta da associação sem fins lucrativos.
  2. Empresa no Brasil: a pessoa jurídica poderia ser responsabilizada pela justiça brasileira por prejudicar investidores, clientes ou usuários. O patrimônio dos sócios não seria atingido, salvo por desconsideração da personalidade jurídica, medida judicial excepcional, aplicável quando se verifica casos de fraude, de uso da pessoa jurídica como obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores ou de desvio de finalidade.
  3. Associação na Estonia: embora pouco provável e sem precedentes, parece não ser impossível que a justiça brasileira declare a desconsideração da personalidade jurídica, interpretando a abertura da empresa na Estônia como tentativa de fraude, e atinja diretamente o patrimônio dos dirigentes no Brasil. A associação não poderia reembolsar os dirigentes obrigados a pagar indenizações, pois o patrimônio da associação só pode ser utilizado para as suas finalidades sociais. Porém, deve ficar claro que, em regra, a Justiça brasileira não aplica a desconsideração da personalidade jurídica a associações nem responsabiliza seus associados de forma subsidiária. Portanto a hipótese de abertura de associação na Estônia parece ser uma opção segura.
  4. Empresa na Estonia: a justiça brasileira poderia declarar a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo diretamente o patrimônio dos sócios no Brasil, interpretando a abertura da empresa na Estônia como tentativa de fraude. A empresa poderia reembolsar os sócios obrigados a pagar indenizações, pois o patrimônio da empresa pode ser distribuído livremente como distribuição de lucros ou como liquidação de cotas de capital social.

HIPÓTESE 2:

Criminalização de criptomoedas no Brasil conforme eventual aprovação do PL 2.303/2015.

No caso de crime de troca de criptomoeda por reais, conforme quer o PL 2.303/2015, haveria responsabilidade penal do diretor brasileiro, que praticasse tal conduta, seja ele de empresa ou de associação, esteja uma ou outra no Brasil ou na Estônia. A aplicação da lei penal brasileira, segundo os artigos 5º e 6º do Código Penal, estende-se a crimes praticados no exterior que produzam resultado no Brasil, no todo ou em parte.

É preciso lembrar, no entanto, que não existe crime sem lei anterior que o defina. Portanto, uma conduta praticada antes da entrada em vigor da lei penal do PL 2.303 de 2015 não poderá ser punida com base no texto dessa lei, mas poderá ser eventualmente enquadrada em crime definido em lei anterior à conduta, se houver.

CONCLUSÃO

A abertura de uma associação sem fins lucrativos na Estônia parece ser uma boas opção entre as hipóteses para constituição de startups abordadas neste artigo, quais sejam:

  1. associação no Brasil — desvantagem: burocracia brasileira;
  2. empresa no Brasil — desvantagens: burocracia brasileira, possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em casos de fraude, de uso da pessoa jurídica como obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores ou de desvio de finalidade;
  3. associação na Estonia — vantagens: serviços estonianos via internet com certificado digital e proteção contra a desconsideração da personalidade jurídica e contra a responsabilidade subsidiária dos dirigentes (art. 1.023 do Código Civil) no Brasil.
  4. empresa na Estonia — desvantagens: possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica pela justiça brasileira, que atingiria o patrimônio dos sócios no Brasil, com base em fraude por evasão regulatória.

É preciso que fique claro que a associação, apesar de poder remunerar seus dirigentes e empregados, certamente não será a pessoa jurídica ideal para atividades que produzam lucro a ser distribuído entre os sócios. Para atividades econômicas que visem o lucro, a sociedade é a forma indicada.

Porém, startups focadas em tecnologia blockchain, especialmente aquelas cujos projetos se assemelham a DApps (sigla do inglês que significa “apps descentralizadas”) não costumam gerar lucro para seus fundadores, que ganham dinheiro apenas com a reserva para si de uma fração dos tokens criados para utilização na própria plataforma.

Quando esses tokens valorizam em decorrência do sucesso do projeto, os fundadores podem trocá-los por outras moedas nas exchanges. Enquanto isso, a DApp, software desenvolvido em código aberto, funciona de forma autônoma, podendo exigir pouco ou nenhum trabalho de manutenção dos fundadores.

Quanto à responsabilidade criminal, todas as 4 hipóteses listadas acima são equivalentes.

Para uma análise mais completa das vantagens de se abrir uma associação sem fins lucrativos na Estônia, resta ainda testar os serviços prestados aos portadores da e-Residency estoniana. Esperamos conduzir esses testes em breve.

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Bernardo Monteiro
MTK advogados

Advogado e biólogo por formação. Cozinheiro por paixão.