Posso criar uma moeda? (continuação 1)

Bernardo Monteiro
MTK advogados
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7 min readMay 24, 2018

Texto originalmente publicado no blog Direito com um Grão de Sal em 23/12/2017

No primeiro texto da série “Posso criar uma moeda?”, vimos que a criação no Brasil de uma moeda paralela, não oficial, pode ser crime, contravenção, ato inválido ou pode merecer aplausos do Banco Central e da Justiça brasileira, como no caso das moedas CDD, da Cidade de Deus no Rio de Janeiro, ou Palma, de Fortaleza, ambas reconhecidas como “moedas sociais” que estimulam a economia das comunidades onde foram criadas.

Vimos também que essas moedas sociais, que circulam em notas de papel sem os recursos de segurança da moeda oficial, podem ser falsificadas com relativa facilidade, o que poderia ser evitado com o uso de criptomoedas, baseadas em tecnologia blockchain, à prova de falsificações.

Terminamos o primeiro texto da série mencionando os comunicados do BACEN, que alertam para a volatilidade dos investimentos em criptomoedas, sem no entanto condená-las, reconhecendo que elas não apresentam hoje um risco sistêmico para a economia; e ainda o projeto de lei 2.303 de 2015, cujo parecer de sua comissão especial, de 14/12/2017, opina favoravelmente à criminalização da emissão, intermediação de troca, armazenamento e troca de moeda virtual ou criptomoeda.

As criptomoedas que mencionei, CDD e Palma, foram criadas por associações sem fins lucrativos que funcionam como bancos comunitários, não regulados pelo Banco Central, mas incentivados pelo governo. Esses bancos sem fins lucrativos ganham dinheiro fazendo empréstimos a juros não muito altos — se comparados com os das instituições financeiras — e recebendo doações.

Neste artigo, deixarei de lado a questão da criação e funcionamento de bancos sem fins lucrativos, não regulados pelo Banco Central, o que me parece um assunto extremamente polêmico e baseado em profunda insegurança jurídica, para me concentrar na “criação de moedas paralelas”, assunto não menos polêmico, que deve ganhar extrema relevância nesse início de século XXI.

No livro “The Internet of Money”, o autor Andreas M. Antonopoulos reúne a transcrição de suas palestras, proferidas entre 2013 e 2016, nas quais expõe suas reflexões sobre as a natureza, os usos e as potencialidades das criptomoedas, e faz alguns exercícios de futurologia. Em ao menos duas dessas palestras, Andreas diz que uma das perguntas mais interessantes que ele costuma ouvir é “quantas moedas existirão?” A resposta, diz ele, é equivalente a “quantos bloggers existirão na internet?” Não serão centenas de moedas, mas milhares, dezenas de milhares.

Empresas estão criando suas moedas para alavancar seus negócios assim como um jovem pode criar uma moeda em homenagem a um cachorro, como a Dogecoin. E que moeda será adotada pela população? A da empresa, ou a do cachorro? Talvez a da empresa, talvez a do cachorro, e possivelmente teremos muitas outras moedas com ou sem lastro, com ou sem projeto, com ou sem nacionalidade… moedas que surgem como memes na internet, que viralizam, e que circulam como meio de troca, como reserva de valor, com total liquidez e segurança anti-falsificações.

É possível que muitos brasileiros criem suas criptomoedas. Algumas já foram criadas em nosso país, como a Tokcoin, a Anti Bureaucracy Coin (ABC), a Niobium, a MarteXcoin, que surgem entre os primeiros resultados em uma pesquisa no Google por “criptomoeda brasileira”.

Para quem ainda não entendeu as vantagens de se criar uma criptomoeda, aqui vão algumas, inspiradas na tese de doutorado de Marusa Vasconcelos Freire:

  • estimular e fortalecer a economia de uma localidade ou comunidade;
  • facilitar trocas entre pessoas desbancarizadas ou em situações em que os bancos e governos criam excesso de burocracia, dificultando ou elevando o tempo e o custo de transações; e
  • transformar a natureza das trocas no circuito econômico comunitário.

O criador da moeda também é beneficiado com a sua criação, pois pode guardar uma pequena quantia dessas moedas para si. Dessa forma, quando a moeda valoriza, o criador passa a ter uma reserva de valor. O inventor do blockchain e do bitcoin, conhecido como Satoshi Nakamoto, reservou para si 700.000 bitcoins, ou seja, exatos 1/30 das 21.000.000 de bitcoins. Considerando que um bitcoin vale hoje mais de USD 10.000,00, após uma valorização meteórica este ano, Satoshi Nakamoto pode ser considerado um homem bem sucedido, com patrimônio equivalente a mais de USD 7 bilhões.

Apesar de poder ser um bom negócio, quando funciona (e fazer funcionar não é nada fácil), a criação de moedas no Brasil, desde que caracterizada como atividade sem fins lucrativos, não se enquadra como atividade financeira a ser regulada pelo Banco Central (parágrafo 17 do parecer PGBC- 149/2010, de 2/6/2010, no processo 1001468383).

Já vimos algumas dicas de como contornar os obstáculos legais à criação de uma moeda. E quanto à Constituição, que diz ser competência exclusiva da União a emissão de moeda? Bom, entendo que devemos interpretar a Constituição de modo a considerar que essa emissão de moeda pela União, sob responsabilidade do Banco Central, refere-se à moeda oficial, moeda em sentido estrito. As moeda paralelas seriam moedas em sentido amplo, como os títulos emitidos por empresas.

Vejamos ainda mais um argumento que conta muitos pontos para a legalização de uma moeda. Se alguém cria e possui uma moeda, pode vender, doar, trocar por outras moedas, pagar por produtos ou serviços, ou emprestar quantias dessa moeda. Essas operações podem ser entendidas, em certos casos, como “experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito”. Se você observou bem, a frase está entre aspas, por um bom motivo: é o texto do inciso IX do artigo 3º da Lei 9.790/99, a Lei das OSCIPs (organizações da sociedade civil de interesse público). Essa lei de certa forma autoriza tal atividade de “experimentação” econômica, não lucrativa, pois diz que a pessoa jurídica sem fins lucrativos que exercer essa atividade, dentre outras listadas no artigo 3º, poderá ganhar a qualificação de OSCIP, o que lhe permite celebrar Termos de Parceria com o Poder Público e receber doações de empresas que descontam esses valores de seu imposto de renda. Portanto, de acordo com a nossa legislação, realizar “experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito” é considerada uma atividade digna de mérito.

Marusa Vasconcelos Freire percebeu isso e, com todas as letras e números, disse em sua tese, folha 29, que sua pesquisa “restringe-se à análise jurídica das moedas sociais como instrumentos de programas de finanças solidárias e de empreendimentos que envolvem experimentação, não lucrativa, de novos modelos socio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio e crédito, legalmente autorizados pela Lei 9.790, de 23 de março de 1990.” O grifo é meu, mas as palavras são da Marusa, procuradora do Banco Central.

Criar e pôr em circulação uma moeda de forma não lucrativa pode ser uma maneira de se proteger de uma avaliação negativa do Banco Central. Para garantir que a atividade não tenha fins lucrativos, a receita da venda da moeda deve ser usada apenas para os fins sociais de uma associação cujas atividades sejam relacionadas à circulação da moeda em uma determinada comunidade.

Uma associação é uma pessoa jurídica que, por definição, não tem fins lucrativos e por isso não pode distribuir lucros, apesar de poder remunerar seus dirigentes com pro labores limitados a 70% do teto do Poder Executivo, e pagar seus empregados e fornecedores a preços de mercado.

O uso de uma associação sem fins lucrativos para venda de uma moeda (initial coin offering ou ICO) é fator de confiabilidade do projeto, pois garante que os recursos serão usados exclusivamente para os fins da associação, mesmo que ela seja encerrada, caso em que seu patrimônio deve ser destinado a outra associação que tenha finalidade semelhante.

Com base no exposto nesses dois primeiros textos da série “Posso criar uma moeda?”, podemos listar já algumas precauções a serem adotadas por quem gostaria de responder “sim” à pergunta do título:

  1. realizar a emissão da moeda por uma associação sem fins lucrativos, com base em finalidades relacionadas aos princípios constitucionais da dignidade, da solidariedade, da liberdade, de uma sociedade fundada no trabalho que tenha como objetivo o bem-estar e a justiça social;
  2. não prometer a troca da moeda por dinheiro, para evitar o enquadramento no art. 292 do Código Penal;
  3. não criar uma moeda que possa se confundir com o Real ou outra moeda oficial, para não caracterizar contravenção do artigo 44 da Lei de Contravenções Penais;
  4. não emprestar a moeda a juros superiores aos juros legais de 1% ao mês para não violar a lei da usura ou caracterizar a agiotagem (só as instituições financeiras têm autorização do Banco Central para a prática de juros acima de 1% ao mês).

Enquanto deputados tentam criminalizar a emissão de criptomoedas, tenho confiança de que a tecnologia blockchain e suas moedas vieram para ficar. Por isso, aposto na emissão de moedas com apoio ou ao menos tolerância por parte do governo brasileiro, agora e no futuro. Portanto, acho que vale a pena o estudo dos riscos jurídicos realacionados a essa atividade.

Nos próximos textos da série, gostaria de abordar outros riscos jurídicos relacionados a atributos possíveis das criptomoedas, ou melhor, de seus tokens, que combinados com contratos inteligentes, podem assumir outras funções além de simples moeda. Até lá.

– Bernardo Monteiro

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Bernardo Monteiro
MTK advogados

Advogado e biólogo por formação. Cozinheiro por paixão.