Da atualização dos dados sobre o perfil de gênero em cursos de computação da USP (Parte I)

Tecs: grupo de comput{ação social} da USP
Tecs USP
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9 min readMay 24, 2021

Por Juliana B. Trevine

Contexto e motivações:

Início de 2021 e o Tecs se preparava para oferecer dois cursos de extensão nas férias: Introdução à Programação em Python para Meninas coordenado pelas queridíssimas professoras doutoras Kelly R. Braghetto e Renata Wassermann (IME-USP) e Implicações da computação na sociedade e na democracia coordenado pelo também queridíssimo professor doutor Márcio Moretto (EACH-USP).

O clima era de ansiedade e expectativa já que estaríamos oferecendo o curso para meninas pela primeira vez depois de bastante tempo querendo executar uma iniciativa dessas. O curso de implicações acrescentou um extra nesse sentimento por um feliz acidente: a distribuição de vagas foi pensada para privilegiar pessoas da área de computação sem nenhuma política de gênero, entretanto acabou que tivemos maioria feminina no interesse pelo curso e, por consequência, no preenchimento das vagas.

Já que fiquei responsável por parte da condução da primeira aula — de apresentação — do curso, fui buscar as referências que inspiraram nossa iniciativa. Uma delas é a [famosa] matéria do Jornal da USP “Por que as mulheres ‘desapareceram’ dos cursos de computação?”.

Para o momento, duas coisas não me satisfizeram nessa matéria. A primeira é que, como ela foi publicada em 2018, há três anos (2018–2020) de defasagem na série histórica do perfil feminino, atualização que não achei em local nenhum. Não que esperasse grandes mudanças, mas gostaria de poder mostrar os dados mais recentes. A outra é que queria mais detalhes também. A reportagem é provocante, mas traz dados amarrando sua narrativa focada em cursos de Bacharelado em Ciências da Computação do IME e ICMC já que eles são mais antigos — o que serve adequadamente para o contraste histórico objetivado, mas não completamente para ilustrar os cursos da área que a USP oferece atualmente, coisa que era de interesse visto que queríamos incentivar as meninas a ingressarem neles em um futuro próximo.

Percebi que gostaria dessas informações às vésperas da aula e não as teria em tempo, mas a curiosidade falou mais alto e, naquela semana, abri um pedido de informação no Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) da USP, instrumento que implementa, na Universidade, a lei federal 12.527/2011, apelidada de LAI (Lei de Acesso à Informação).

Meu pedido solicitava uma série histórica (últimos 20 anos) de dados de ingressantes (vagas totais e preenchidas por pessoas autodeclaradas de gênero feminino) de 17 cursos de graduação da USP cujo nome, pouco criteriosamente ao bater o olho no edital da fuvest de 2021, “soava computeiro”: cursos que eu tinha certeza que pertenciam à área de computação e outros que, apesar de não tanta certeza, pedi junto mesmo assim por precaução. Eles eram:

Bacharelado em Biotecnologia — EACH
Bacharelado em Ciência da Computação — IME
Bacharelado em Sistemas de Informação — Matutino, EACH
Bacharelado em Sistemas de Informação — Noturno, EACH
Bacharelado em Sistemas de Informação — São Carlos
Bacharelado em Ciências de Computação — São Carlos
Bacharelado em Ciência da Computação — Ribeirão Preto
Engenharia de Computação — São Carlos
Engenharia Mecatrônica — São Carlos
Engenharia de Computação — POLI
Engenharia Mecatrônica — POLI
Bacharelado em Física Computacional — São Carlos
Bacharelado em Matemática Aplicada e Computacional — IME
Matemática Aplicada e Computação Científica — São Carlos
Bacharelado em Estatística e Ciência de Dados — São Carlos
Bacharelado em Ciência de Dados — São Carlos
Bacharelado em Informática Biomédica — Ribeirão Preto

A experiência com a LAI na USP:

A LAI na USP é regulamentada pela portaria GR 7378 de abril de 2019. Nela, é possível conferir o trâmite e prazos:

  1. O pedido, feito pelo SIC-USP, tem 20 dias para ser atendido, prorrogáveis por mais 10 dias mediante justificativa.
  2. Se não respondido, pode-se entrar com até 3 recursos. Em todos eles, o requerente tem 10 dias de prazo para solicitar e a instância acionada 5 dias para avaliar. São elas: 1ª instância - Ouvidoria da USP; 2ª instância - Superintendência Jurídica; 3ª instância - Reitor (com passagem pela Comissão de Avaliação de Documentos e Acesso, CADA).

Minha experiência foi de:

  • um pedido feito em 21/março
  • respondido, insatisfatoriamente pelo SIC, em 22/março. No mesmo dia foi feita a reconsideração.
  • em 12/abril, passados os 20 dias, fui notificada do uso da prorrogação em 10 dias.
  • em 26/abril, passados os 10 dias prorrogados e mais 4 de atraso (mas ainda dentro dos 10 dias que tem-se para recorrer), entrei com o primeiro recurso, na Ouvidoria da USP.
  • em 27/abril, a Ouvidora reconheceu meu pedido e deu novos 15 dias, agora úteis, para a Pro-Reitoria de Graduação (PRG) responder.
  • em 19/maio, passados os 15 dias úteis, acionei a 2ª instância, a Superintendência Jurídica da USP.
  • em 21/maio, sem ainda a Superintendencia Jurídica ter apreciado o recurso, a PRG me entregou os dados solicitados. No exato aniversário de 2 meses do pedido.

Foi o primeiro pedido de informação à USP que fiz então não tenho muito parâmetro para comparar. Só achei duas coisas dignas de nota:

Pela parte negativa, o JupiterWeb (sistema ao qual as atividades de graduação estão vinculadas) existe desde 1999 e meu pedido solicitava dados desde 2000. Assim, eu tinha certeza que essa informação já existia de forma digital, não exigindo trabalho extra por parte da(o) servidora(-) que fosse atender, apenas exportar os dados do sistema e filtrar o que pedi, não havendo, portanto, necessidade de me fazer submeter o pedido e mais dois recursos para atendê-lo, levando 60 dias.

Pela parte positiva, o SIC e a Ouvidora não foram esdrúxulos encaminhando. Eu não fiz um pedido verboso, não listei as leis e portarias que me amparam e não direcionei o pedido à PRG no texto, mesmo sabendo que isso é o indicado. A(o) servidora(-) que me atendeu encaminhou o pedido para o órgão certo por mim e a Ouvidora que me defendeu juridicamente destacando artigos, decretos, a LAI e a LGPD para fundamentar que a PRG deveria me entregar o que pedia. Acredito que esses procedimentos estejam no escopo de seu trabalho, mas gosto de revindicar essa “não-judicialização” da parte do cidadão-requerente com a LAI: não é necessário um advogado e eu não precisei impor nenhum nível de letramento jurídico para ter minha solicitação encaminhada, defendida e atendida, por justamente, quem já sabe que temos o direito de pedir. Precisei simplesmente acessar o site e pedir, simples.

Por último, recebi exatamente o conteúdo que pedi com exceção do formato do arquivo: me entregaram um xlsx e não um csv, detalhe que explicitei no pedido. Isso coloca a USP num patamar 2 das 5 estrelas dos dados abertos.

O registro completo do pedido está ao fim do texto.

Com os dados em mãos

Agora precisei cutucar o monstrinho de saber quais cursos da lista são de computação de fato. Fui pesquisar e a USP considera de uma forma, a Sociedade Brasileira de Computação (SBC) de outra, eu achava que alguns também entrariam. Joguei para baixo do tapete a crise existencial de ser da área e ter dificuldade de discernir o que é da minha própria área — o que, convenhamos, deve ser uma polêmica dentre os acadêmicos também — e optei por ficar com os cursos que a SBC considera ser de computação: Ciências da Computação (BCC), Engenharia de Computação (BEC) e Sistemas de Informação (BSI).

Uma pequena nota metodológica: o curso de Engenharia de Computação em São Carlos foi oferecido pela EESC sozinha de 2003 à 2008 e, a partir de 2009, junto ao ICMC. Optei por juntá-las.

Apesar dos dados relativos serem mais interessantes para análise, os dados absolutos pontuaram o alto crescimento do oferecimento de vagas em computação na USP. Antes de 2002, só haviam 3 cursos: BCC no IME e no ICMC e BEC na Poli. Entre 2003 e 2005, novos cursos surgiram: BEC na EESC/ICMC e BSI no ICMC e na EACH (em 2 turnos).

No gráfico abaixo, é possível perceber o aumento das vagas ofertadas pela USP, reflexo da criação dos novos cursos, e conferir que a ocupação dessas novas vagas se deu enormemente por homens.

Em três anos (2002 a 2005), as vagas cresceram 3,5 vezes enquanto a quantidade de ingressantes mulheres aumentou só 21 unidades. Isso aprofundou a diferença: indo de 14% (2002) para 8% (2005) de presença feminina tendo em vista todas as vagas de computação ofertadas. Apenas nos últimos anos, 2019 e 2020, que atingimos o patamar que estávamos em 2002 (15 e 14% respectivamente).

Desde 2000, ingressaram um total de 7567 homens nestes cursos, enquanto as ingressantes não haviam completado 1000 em 2020 (estava em 975).

Aliás, o “melhor ano” da presença feminina foi 2019, com 77 mulheres ingressantes. Foi duro ver que, mesmo nesse ano, uma única turma do ICMC tinha, sozinha, mais homens do que mulheres de todas as turmas da área de computação somadas. obs.: poderia apontar SI na EACH Noturno também, mas, neste caso, é a composição de duas turmas formando 96 homens (~48 cada). Conferi no JupiterWeb e BCC no ICMC conforma uma única turma (integral) mesmo.

Agora, quanto aos dados relativos (da presença feminina nos cursos tendo em vista a quantidade de vagas do próprio curso), a maior parte deles não passa de 20%. Os destaques são:

  • Os cursos BEC na Poli (2000 e 2009) e BSI no ICMC (2001) que tiveram turmas completamente formadas por homens.
  • O curso de BSI Matutino na EACH que constantemente figura como o curso que mais recebe mulheres, atingindo o auge de recepção feminina em 2008 (30%). A única vez, desta série recente, que as mulheres passaram de 1/4 da turma (mesmo que por pouco).
  • E o ano de 2008 em si. Foi o único ano em que a curva de todos os cursos cresceu, apesar de que no ano seguinte, 2009, as curvas todas caíram também (com exceção de BEC na EESC/ICMC que se manteve). Será que aconteceu algo, no anos anteriores, que refletiu no ingresso delas?

Os detalhes por curso:

gráfico referente ao curso do BCC/IME atualizado (18h) por conta de um erro na porcentagem em 2020.

Para quem quiser, segue o arquivo que a PRG me entregou: dados.

Parte II?

Há muitas fases que as mulheres precisam passar para serem graduadas em computação. Podemos notar algumas delas como:

Vencer o desincentivo e se interessar pela área, querendo prestar o vestibular. Estes dados a FUVEST disponibiliza — em formato fechado (PDF) e ela é privada, portanto não submetida à LAI. Assim, é possível, aos poucos percorrer o acervo dela e colher esses dados.

Outra fase é ser aprovada no curso. Esses dados foram discutidos aqui e disponibilizados acima.

A última é resistir por, pelo menos, 4 ou 5 anos de graduação e se formar. Logo depois de ser atendida, submeti um novo pedido ao SIC referente aos mesmos cursos, mas agora pedindo dados sobre formandas(os) por ano. Resta esperar o novo trâmite agora.

Outras questões interessantes que podem ser enfrentadas em futuros textos também são:

  • a base de dados completa do perfil de gênero de ingressantes na USP. Não só dos últimos 20 anos e nem só da área de computação;
  • pedir dados equivalentes aos pedidos à USP para UNICAMP, UNESP, algumas grandes Federais e verificar o quadro geral do Brasil nessa questão. Será que a USP está melhor, pior ou na média?;
  • questionar a USP sobre sua política de transparência ativa. Utilizei uma ferramenta de transparência passiva que é provocar a USP a entregar informações via LAI; transparência ativa é o que parte da própria USP em sempre divulgar em seu site de transparência sem precisar ser cobrada. Quando que a USP abriu, alguma ou pela última vez, uma consulta à comunidade sobre o que é de interesse comum para nortear o que e como deve publicar “por padrão” em seu site? Independentemente de ser de computação, precisaríamos mesmo provocar a USP a informar o perfil de gênero dos ingressantes todo ano? Não deveria ela mesma já publicar isso passadas as interações de matrícula?

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