1001 DISCOS QUE MUITA GENTE MORREU ANTES DE OUVIR (2): ‘Cedo ou Tarde’, Cassiano

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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9 min readMay 16, 2021
Foto publicada no jornal O Globo, setembro de 1991

Este é o segundo capítulo de uma nova série sobre música aqui no TdV. Nela, serão abordados — misturando crítica e reportagem — discos que deveriam ter sido considerados importantes na história da música popular, mas que, por um motivo ou outro, caíram em relativa obscuridade. Claro que os critérios de seleção serão históricos, teóricos & críticos, além de 100% subjetivos. Deu pra entender? Se não, deixa um comentário aí embaixo que eu tento explicar melhor. Espero que vocês curtam e sugiram títulos para as próximas publicações.

A mitologia em torno de Genival Cassiano dos Santos, ou simplesmente Cassiano (1943–2021), se ergue sobre dois pilares. Um, solidificado no decorrer dos anos, apresenta o artista como uma personalidade idiossincrática, temperamental ao ponto da autossabotagem — o famoso “cara difícil”. Essa teria sido a razão para a abreviação de sua carreira e seu progressivo ostracismo a partir do fim da década de 1970. O segundo pilar é mais recente, esculpido pelos cinzéis da problematização: Cassiano teria sido vítima do racismo, do preconceito com suas origens nordestinas e do escanteamento sistemático de artistas ligados à cultura negra.

Após sua morte, em 7 de maio de 2021, depoimentos de pessoas que o conheceram (com maior ou menor intimidade) e/ou estudaram sua trajetória apontam para um ponto cego entre os dois pilares. Sim, havia a “dificuldade” e sim, houve (há) o racismo, mas alguém pensou na hipótese de Cassiano simplesmente… não estar a fim? Como lembrado nas redes sociais mais de uma vez, o compositor dos megahits “Coleção”, “A Lua e Eu”, “Primavera” e “Eu Amo Você” provavelmente ainda recebia uma boa graninha de royalties, de tempos em tempos. E, de acordo com outros relatos, ele seguia ativo, apesar de recluso, compondo em seu apartamentinho na zona Sul carioca. E se isso — a graninha, as novas músicas, o apê — fosse o suficiente pra ele? E se ele apenas não estivesse a fim de aparecer?

Mas, em 1991, Cassiano estava a fim de aparecer. Foi o ano em que ele saiu da toca para gravar Cedo ou Tarde, seu último LP. Era para ser o grande comeback do homem. Um álbum de parcerias com figurões da MPB e da black music brazuca, a proposta de atualizar o soul BR dos anos 1970 para uma estética mais contemporânea. Tinha uma boa chance de dar certo. Não deu. Por quê? O artista difícil atacou de novo? As forças ocultas voltaram a conspirar? Ou a verdade estaria nalguma zona cinza?

Como convém à série 1001 Discos que Muita Gente Morreu Antes de Ouvir, este é um texto sobre um álbum que deveria ter sido consagrado, mas não foi. Para ler uma análise mais ampla sobre toda a obra de Cassiano, recomendo o parrudo post do Pedro Alexandre Sanches no Farofafá.

Vale a pena retroceder a 1990, ano que antecedeu a gravação de Cedo ou Tarde e que marcou o ressurgimento original de Cassiano. Ele tinha sido “redescoberto” por Sandra de Sá, que regravara suas “Slogan” e “Cinzas” no álbum Sandra! Em entrevista ao Jornal do Brasil naquele ano, na qual levava o título de “rei inconstante do soul brasileiro”, o paraibano já antecipava o comeback, anunciando negociações com a EMI (chamada pela repórter Márcia Cezimbra de “Odeon”).

“Quando a gente estava na pior, o Tim Maia gravou ‘É Primavera’ (sic) e fizemos o maior sucesso. Depois, estávamos de novo numa fase braba, e veio ‘A Lua e Eu’. Acho que agora as coisas vão melhorar mais uma vez.” — Cassiano, em entrevista ao Jornal do Brasil, setembro de 1990

Para o bem ou para o mal, quem guiaria Don Cassi pelos corredores da “Odeon” (na verdade, fecharam com a Sony Music) seria Líber Gadelha (1957–2021). Músico e produtor, LG foi um dos vários “Forrest Gumps” que, por afinidades e/ou por habilidades, mexeram os pauzinhos nos bastidores da MPB por décadas a fio. Primo de Sandra (Drão) e de Andréa (Dedé) Gadelha, respectivas paramores de Gilberto Gil e Caetano Veloso nos anos 60/70/80, Líber embarcou no bonde pós-tropicalista como guitarrista na banda de Jards Macalé. Nos anos 1980, passou para o outro lado do balcão — ou do console de mixagem — firmando uma duradoura parceria com Luiz Melodia, ao mesmo tempo em que cuidava da carreira de sua promissora esposa, Zizi Possi.

Em 1990, Líber concebera o projeto Olhos Negros, destinado a reerguer a carreira de um outro pioneiro negro da música brasileira abandonado pelo mainstream: Johnny Alf. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Emílio Santiago, Leny Andrade, Sandra de Sá, Roberto Menescal e Zizi Possi (claro) se voluntariaram para participar da empreitada. Apesar de elogiado pela crítica, o álbum não chegou a arranhar as paradas. O que não demoveu o produtor de usar o mesmo conceito na tentativa de reapresentar nosso Cassiano ao povão.

O mesmo Cassiano, lembremos, não lançava um LP desde Cuban Soul 18 Kilates (1976). O estouro dos singles “Coleção” e “A Lua e Eu” não impediu que a gravadora CBS engavetasse (até hoje) um álbum 100% concluído, gravado em 1978. Como desgraça pouca é bobagem, em 1980 o artista ainda precisou extrair parte de um dos pulmões (ou, de acordo com relatos conflitantes, o órgão inteiro), combalido pelo excesso de Ministers.

No fim dos anos 80, começou a ensaiar uma volta, acompanhado por uma banda de 13 (!) membros, a Dancing Club. Sem gravadora ou empresário, Cassiano só topava shows com a formação completa. Não conseguia manter uma agenda regular de apresentações desde 1983. O JB em 1990 chamava a atitude de “enfrentar a crise do mercado com radical teimosia”. Cassiano batia o pé: “A Dancing Club só se apresenta com 13 músicos e ponto final. A gente faz arranjos para (…) vocais, metais, percussão (…) três vocalistas, cinco sopros, fora percussão, bateria, teclados e a minha guitarra.”

De acordo com entrevista publicada em O Globo em outubro de 1991, foi o cantor quem selecionou os convidados do álbum de retorno. Nenhuma surpresa na escolha dos discípulos Claudio Zoli, Sandra de Sá e Ed Motta, nem na escalação de Luiz Melodia e Djavan. A única possível concessão marketeira foi a entrada de Marisa Monte, ainda na fase “eclética”. Mas certamente a inclusão de Karla Sabah, ex-Afrodite se Quiser — e então protegida de Líber Gadelha — se deveu à “cota” do produtor.

O repertório traria clássicos relidos e quatro inéditas, escolhidas no farto arquivo que Cassiano acumulara desde a década de 70 (“Tenho uma mala cheia”, disse ele em 1991). Atirando a carapuça para o alto, Gadelha batizou o álbum de Cedo ou Tarde, faixa de Apresentando Nosso Cassiano; a versão nova mostraria o autor em dueto com Marisa Monte. Flagrados no Mega Estúdio (RJ) em julho de 1991, artista e produtor demonstravam previsível empolgação. “Esse disco representa tudo pra mim. É toda uma vida”, afirmou Cassiano à Folha de S.Paulo. Para Gadelha, era a chance para o cantor fazer “uma reciclagem” antes de mostrar sua safra mais recente.

Há um descompasso evidente entre as cinco faixas de Cedo ou Tarde arranjadas por Cassiano e o restante do álbum, com arranjos de Guto Graça Mello e Gadelha. Apesar de soarem datadas hoje em termos de timbres e mixagem, as canções comandadas pelo próprio compositor exibem mais originalidade e energia. Para as demais faixas — com a presença dos convidados — nota-se um direcionamento mais conservador. O approach de Gadelha é claro: deixa metade do disco pro maluco se divertir, do resto cuido eu, sei o que estou fazendo.

Nas regravações arranjadas por ele mesmo, Cassiano evita a nostalgia e busca a reinvenção. Já na abertura, “Eu Amo Você” deixava de ser balada para virar um surpreendente e quebradiço funk. “Coleção” ganhou um clima jazzy e vocais (ainda arrepiantes hoje) de Djavan; o convidado preserva a melodia, enquanto o autor a desconstrói.

Na inédita “Setembro”, a banda Dancing Club se desdobra para acompanhar as quebradas das linhas vocais imprevisíveis. Mais soltas e suingadas, as também novas “Rio Best Seller” e “Intro III (Instrumental)” recuperam o som dos bailes setentistas, envenenadas com um naipe extra de metais. A primeira tem pegada samba-funk e melodia sinuosa; em “Intro III”, Cassiano até dispensa a batuta e empunha a guitarra. A ficha técnica entrega, mas nem precisava: a metaleira é conduzida pelos luminares Marcio Montarroyos, Bidinho, Serginho Trombone e Zé Carlos.

As demais canções, bem… a faixa-título é uma pálida lembrança da gravação original, apesar da afinação e do tempo impecáveis de Marisa Monte (e do desnecessário solo de baixo de Arthur Maia). “Primavera” soa ainda mais esquálida e brochada, desperdiçando o evidente empenho de Sandra de Sá. Synths breguíssimos quase afundam a sempre bela “Salve Essa Flor”, compensados pelo dueto mais assertivo do disco (com Luiz Melodia). “A Lua e Eu” tem resultado mais feliz, muito por conta das guitarras de Claudio Zoli (e de seus vocais, completando as lacunas deixadas pela falta de fôlego de Cassiano).

Das outras duas inéditas, uma mostra Ed Motta 100% à vontade (a dançante “Know How”). A outra, “Bye Bye”, um funk plastificado, é menos convincente: a disparidade entre a empolgação de Cassiano e a da convidada Karla Sabah é desconcertante.

Em uma palavra? Meh. Sim, Cedo ou Tarde poderia ter rendido algum hit, a sonoridade anódina de seus duetos era perfeitamente adequada às FMs e aos programas de auditório. (Ainda que a cansada garganta de Cassiano não se encaixasse mais no padrão vocal radiofônico.) Entretanto, o pouco que há de real interesse no disco está nas faixas em que o artista tem mais liberdade e soa mais descolado dos imperativos comerciais. É difícil discordar do diagnóstico do crítico Camilo Rocha, que resenhou o álbum na revista Bizz em janeiro de 1992: “A produção de Líber Gadelha foi na medida para a yupparada que ‘descobre’ Cassiano. Seus conceitos burocráticos mediocrizaram a música.”

Hoje, claro, sabe-se que Cedo ou Tarde veio, foi e não foi daquela vez que “as coisas melhoraram”. Depois do moderado buchicho na imprensa e na TV, Cassiano voltou pra toca. Não lançaria outro disco. A imprensa lembrou dele em 1998, para repercutir a morte de Tim Maia e para falar da coletânea Velhos Camaradas (com hits dele, de Tim e de Hyldon) — e poucas vezes mais de lá para cá. A cada entrevista, mencionava que nunca parara de compor e que estava preparando um novo álbum. Naquele mesmo 1998, Tárik de Souza (no JB) avisava que uma demo com as inéditas “Celular” e “Pérola” estava sendo mostrada “às gravadoras interessadas”. Nenhuma se interessou. Assim como Cassiano também não demonstrava muito interesse em atender jornalistas e pesquisadores que acenavam com propostas de reportagens e documentários.

Em uma conversa com o Jornal da Tarde em 2001, Genival desembuchou sobre sua insatisfação com Cedo ou Tarde:

Não, esse disco de 91 não foi um disco do Cassiano, foi um disco de produtor. E isso fica assim meio… olha, bota essa música e essa, essa. Mas você é artista, é que nem jogador de futebol: botam uma bola meia murcha, mas você sai jogando. Tinham coisas que não foram a meu contento. O pessoal tinha uma imagem que eu era um cara que não sabia trabalhar. O disco novo não, vai ser bem diferente.

Não foi diferente, foi a mesma história de sempre: o “disco novo”, co-produzido com William Magalhães (Banda Black Rio) e previsto para 2002, não saiu.

A versão de Líber Gadelha para a história? Bom, em reportagem da Bizz em 1998 o produtor afirmava que o cantor era um “gênio”, mas Cedo ou Tarde foi um projeto “trabalhoso”. “(Cassiano) não é muito claro na forma de fazer as coisas”, disse Gadelha.

Ele poderia dar um depoimento sobre seu relacionamento com Cassiano em meio à enxurrada de homenagens prestadas após a morte do cantor. Poderia, se estivesse entre nós — morreu em janeiro de 2021, vitimado pela Covid-19, aos 64 anos. A longa carreira como músico, produtor e empresário (fundou as gravadoras Indie e LGK) virou nota de rodapé: seus obituários o reduziram basicamente à condição de “pai da cantora Luiza Possi”.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)