A MUDANÇA CLIMÁTICA NÃO TEM IDEOLOGIA.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
7 min readDec 2, 2018

“Toda semântica petista será revogada (…) não se falará em sustentabilidade.” — Rafael Greca, prefeito de Curitiba, em 2016

“O termo aquecimento global ficou muito cara-de-pau, então convencionaram mudar para mudança climática, como se a Terra durante toda a sua existência não estivesse em constante mudança. Mas não se engane, as intenções seguem as mesmas.” — Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PSL)

“(…) A esquerda sequestrou a causa ambiental e a perverteu até chegar ao paroxismo, nos últimos 20 anos, com a ideologia da mudança climática, o climatismo. (…) (que) vem servindo para justificar o aumento do poder regulador dos Estados sobre a economia e o poder das instituições internacionais sobre os Estados nacionais, bem como para sufocar o crescimento econômico nos países capitalistas democráticos e favorecer o crescimento da China.” — Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores do governo Jair Bolsonaro

“O que está em jogo é a soberania nacional, porque são 136 milhões de hectares que perdemos ingerência sobre eles. Eu saio do Acordo de Paris se isso continuar sendo objeto. Se nossa parte for para entregar 136 milhões de hectares da Amazônia, estou fora sim” — Jair Bolsonaro, presidente do Brasil (Não há menção a “perder ingerência” sobre qualquer fração do território nacional no Acordo de Paris.)

“Eu não acredito.” — Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, referindo-se às conclusões do quarto Relatório Nacional do Clima, que projetou perdas de centenas de bilhões de dólares em diversos setores da economia americana até 2100, se não forem tomadas medidas drásticas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas

A maior façanha do diabo foi ter convencido o homem de que ele não existe. A maior façanha (esta, ainda em curso) do pensamento reacionário é atribuir à “motivação ideológica” todo e qualquer movimento que questione o funcionamento do establishment.

Para o reacionário, nenhum conceito progressista — a luta pelos direitos humanos, o feminismo, as campanhas pró-desarmamento, o debate sobre aborto, os movimentos LGBT, o ativismo negro, políticas pró-diversidade, a defesa de minorias em geral, o esforço em prol da redução da desigualdade econômica etc.etc.etc. — deriva da organização legítima de determinadas camadas da população, demandas espontâneas da sociedade e/ou da evolução natural dos costumes e das relações humanas. Tudo seria, na verdade, parte de uma única orquestração da esquerda, visando a disseminação do marxismo cultural (sic?) e, afinal, a implosão da civilização ocidental. Enquanto suas próprias posições (ou seja, o combate intransigente a tudo que cheire a progressismo) seriam “não-ideológicas”, desconectadas de razões políticas e motivadas apenas pela “preservação dos valores corretos” para a sociedade.

Quando essa lógica (sic!) se restringe a trollagens, acusações de vitimismo (siiiiic!) e debates inúteis nas redes sociais, tudo bem. Quer dizer, tudo bem, vírgula; o mal-estar gerado pela polarização política dos últimos anos é real e tem causado dissenso generalizado, rompimento de amizades e lamentáveis bate-bocas familiares. Mas ainda estamos no plano das relações interpessoais. No momento em que pessoas que acreditam na “grande conspiração esquerdista” chegam a cargos no governo, a coisa fica muito mais perigosa. E quando o raciocínio (sic…) é estendido às mudanças climáticas, o próprio futuro da humanidade passa a correr (mais um) risco.

Politizar e/ou ideologizar o debate sobre mudanças climáticas é um desserviço sem tamanho. Um sem-número de pesquisas realizadas nas últimas décadas mostram inequivocamente que, desde a Revolução Industrial, as temperaturas médias no planeta vêm se elevando, as calotas polares e os cumes nevados de montanhas vêm derretendo, o nível do mar em diversas regiões costeiras vêm subindo e que o número de eventos climáticos extremos vêm se multiplicando. Nada disso pode ser negado e/ou atribuído à ideologia. O que pode se discutir, isso sim, é a influência da atividade humana sobre esses fatos — ainda que a quase totalidade da comunidade científica focada no tema concorde que sim, o homem tem culpa no cartório.

Fonte: http://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/8/2/024024/pdf

O conceito do “climatismo”, muito em voga entre as cabeças pensantes (sic) por trás dos movimentos populistas de direita da atualidade, advoga que os alertas da comunidade científica sobre as mudanças climáticas não passam de um estratagema para reduzir a soberania dos estados nacionais, impulsionar o tal do globalismo e favorecer interesses obscuros. As teorias de Donald Trump sobre o tema forneceram o mapa da mina para a retórica climatista, que já foi adotada pelo governo Bolsonaro.

A negação das mudanças climáticas reúne diversas características essenciais do pensamento reaça. Afinal:

  • é essencialmente anti-intelectual; ✔️
  • é essencialmente paranoica; ✔️
  • opõe-se ao ativismo ambiental (reacionários são, por definição, contrários a qualquer tipo de ativismo);✔️
  • dá mais uma oportunidade de botar na esquerda/progressismo a culpa pelos males do mundo; ✔️
  • resiste a mudanças no establishment, ao opor-se a propostas de novos modelos de negócio para a economia corrente (como, por exemplo, um agronegócio mais sustentável ou o estabelecimento de uma indústria menos dependente de combustíveis fósseis).✔️

Uma vez que gente com esse tipo de pensamento chega ao poder — como Trump e Bolsonaro chegaram — fica mais difícil criar uma mobilização coletiva para reforçar o combate às mudanças climáticas. Afinal, eles foram eleitos para combater o progressismo, e se o ativismo ambiental for classificado como “de esquerda”, a batalha está perdida. Que fazer, então?

Há dois caminhos possíveis.

1: Mostrar que reduzir os estragos causados pelo homem na natureza é algo positivo, independentemente das mudanças climáticas.
Ok, pode-se discutir se a ação do homem é determinante para as mudanças climáticas. (Eu não discuto, mas quem quiser é livre para tanto). O que não se discute: poluição é uma merda. Desmatamento é uma merda. Fumaça é uma merda. Despejar lixo nos rios e nos mares é uma merda. Por mais reaça que seja o interlocutor, não é possível negar. Tudo isso é fruto da ação direta do homem, seja por irresponsabilidade, por custo-benefício, seja por ignorância.

O discurso ambientalista precisa focar na redução dos impactos da atividade humana na Terra, e tratar o combate à mudança climática como um bônus. Talquei, não quer acreditar que a atuação do homem influencia o clima? Não acredite. Ainda assim, teremos um mundo muito melhor com indústrias que consumam menos recursos, com uma geração de energia baseada em fontes renováveis, com fábricas que emitam menos fumaça e outras partículas, com o tratamento correto de esgoto, com iniciativas de reciclagem de resíduos, com um agronegócio que desmate menos. Tudo isso tem impacto positivo sobre a saúde das pessoas, gera iniciativas de inovação, abre novas possibilidades de negócios, deixa o mundo mais bonito com céus mais azuis, rios mais limpos e menos lixo nas ruas. E se o clima melhorar depois disso, ora… É uma relação ganha-ganha. Não há nada a perder. Pelo contrário, já que…

2: Uma economia menos agressiva ao meio ambiente gera lucros.
Você sabe o que é ISE? ISE é o Índice de Sustentabilidade Empresarial da nossa Bolsa de Valores (BM&FBovespa). O ISE reúne as ações negociadas em bolsa de empresas reconhecidas por sua boa gestão de sustentabilidade, incluindo iniciativas concretas de redução de impactos ambientais, mitigação das mudanças climáticas e alinhamento aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Pois bem, as ações do ISE vêm obtendo consistentemente, desde 2005, desempenho melhor (rentabilidade acumulada de 185,01%) que o restante das empresas listadas em bolsa (113, 72%).

Eis aí um exemplo local de uma tendência global: o desempenho positivo de empresas que se preocupam com o meio ambiente, incluindo a redução das mudanças climáticas. Praticamente inexistente duas décadas atrás, a economia verde hoje movimenta um total de US$ 4 trilhões no mercado mundial de equity — mais ou menos o mesmo valor movido pela indústria de óleo e gás. Outros indicadores mostram o veloz aumento nos fundos disponíveis para investimento em títulos verdes, o aumento da oferta de emprego em setores como energias renováveis e indústria de reciclagem e a valorização superior de empresas que investem em iniciativas de sustentabilidade.

Em resumo: preservar o meio ambiente de maneira geral rende lucros. E se tem uma coisa que sempre interessa ao reacionário, é o lucro. Por mais que governos e empresas com uma mentalidade reacionária resistam a novas ideias, as evidências do potencial financeiro de iniciativas que mitigam as mudanças climáticas são inegáveis. E como em todo mercado emergente, quem chega primeiro se estabelece. Mostrar aos setores público e privado que políticas e investimentos voltados à sustentabilidade e à proteção do meio ambiente não são um custo (muito menos uma estratégia para “destruir o capitalismo”). São uma oportunidade de ganhar dinheiro. Eis um argumento que supera qualquer polêmica ideológica. Follow the money!

A humanidade precisa da Terra. Mas a Terra não precisa da humanidade. Houve um tempo em que não habitávamos este planeta, e haverá um tempo em que deixaremos de habitá-lo. Cabe a nós fazer o possível — agora — para estendermos nosso prazo de validade por aqui. Nunca é demais lembrar que a mudança climática vai afetar a todos, independentemente das afinidades políticas. Deixar que a proteção ao meio ambiente se transforme em mais munição para a retórica reacionária vai na contramão desse movimento.

--

--

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)