A VINGANÇA DO MONSTRO DA CAIXA DE COMENTÁRIOS

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
6 min readJan 2, 2017

Assim como muita gente ao redor do globo, eu fui pego de surpresa com a vitória de Donald Trump na eleição para a presidência dos EUA. Parecia que nem mesmo os republicanos o aprovavam e então… deu no que deu. Nas semanas subsequentes ao anúncio do resultado do pleito, dediquei-me a ler tudo o que eu encontrava pela frente a respeito da vitória do bilionário. Li artigos, entrevistas, pensatas mais ou menos inflamadas, tuítes e textões, numa tentativa de entender o que havia acontecido. Entre as diversas teorias que afloraram, algumas aludiam à rejeição e à desconfiança em torno de Hillary Clinton. Outras lembraram que muita gente que votou em Trump não declarou suas intenções de voto nas pesquisas prévias. E houve quem lembrasse que a imprensa teve um papel importante na história ao tratar, equivocadamente, o candidato republicano como uma piada.

De todos os textos que li, o mais esclarecedor foi este belo calhamaço publicado pela Harvard Business Review. Basicamente, o texto mostra como Trump captou o ressentimento da classe trabalhadora branca norte-americana em relação aos vigentes debates sobre classe, desigualdade e gênero — e transformou esse ressentimento num discurso que “prometia um mundo livre do politicamente correto e um retorno a uma era anterior, quando homens eram homens e as mulheres sabiam seu lugar” (tradução minha). São pessoas que estão cansadas de ver gente falando em nome dos negros, dos pobres, das mulheres e dos homossexuais, enquanto eles mesmos ficavam abandonados, sem representação. Ações afirmativas, equalização de direitos, feminismo, cotas raciais: OK, tudo isso é muito bom, mas quem vai cuidar de mim, o trabalhador-não-pertencente-à-minoria-e-que-paga-impostos-pra-sustentar-isso-tudo-enquanto-a-economia-está-na-merda? Trump deu atenção e esperança a essa enorme galera, enquanto Hilary mal conseguia se comunicar com ela.

Eu gostei especialmente do texto da HBR por causa dos paralelos potenciais com a sociedade brasileira. Aqui também temos uma enorme massa de gente ressentida com o que se convencionou chamar de correção política. São pessoas que nunca compraram o discurso progressista de equalização de direitos e se sentem ameaçadas não pela gigantesca desigualdade (econômica, social, racial e de gênero) do país, mas sim pelas iniciativas tomadas para reduzi-la. Com a implosão do PT e a bancarrota da política econômica de Dilma Rousseff, essa massa ganhou ainda mais força, impulsionada pelo latente sentimento antiesquerdista que sempre dominou boa parte da nossa população.

Na falta de uma pracinha, um caixote para subir e um megafone na mão, essa rapaziada se reúne nas redes sociais e nas caixas de comentários dos portais de notícias. É aí que denúncias sobre racismo são rotuladas como vitimismo (sic); que feministas são chamadas de vadias; que se nega a existência da violência patriarcal e do machismo brasileiro; que se classifica as lutas dos LGBTs por igualdade como gayzismo (sic); que se prega o fim do Estatuto do Desarmamento como solução para a violência; que pipocam frases como “Se estivesse na igreja rezando, não teria sido estuprada”, “Aaaaín agora pra vocês tudo é homofobia”, “Sou negro e nunca precisei de cota pra nada, vão trabalhar!”, “Direitos humanos para humanos direitos”, “Não estou dizendo que ele está certo, mas a gente também não sabe o que a mulher fez para deixa-lo nesse estado…” É um ambiente tóxico e repleto de bad vibes, igual aos lixões radioativos de onde surgiam os monstros enfrentados pelo Spectreman em Tóquio.

O ano de 2017 começou com um desses monstros saltando do lixão onde foi gestado para atacar no mundo real. Vocês devem ter tido o azar de ler as notícias sobre o cara que matou 12 pessoas da família de sua ex-mulher (incluindo seu próprio filho) e se matou em seguida. Tragédia incontestável mas, infelizmente, comum num país no qual uma busca pelo termo “homem mata esposa” retorna 644 mil hits no Google. Mais um caso (extremo) de violência doméstica, que poderia ter sido evitado etc. Isso era o que eu pensava até a manhã de segunda, 02/01/2017, quando o Estadão publicou trechos de mensagens deixadas pelo assassino explicando (tanto quanto possível) suas motivações. A leitura mostra o momento exato em que o papo furado dos comentaristas de portal se transforma em uma entidade maligna em busca de vingança. São tantos, mas tantos clichês extraídos diretamente dos comentários do G1, que chegaria a ser engraçado. Se não tivesse terminado num banho de sangue.

Há o ódio aos (representantes) dos direitos humanos:

“Não tenho medo de morrer ou ficar preso (…) além do que eu preso, vou ter 3 alimentações completas, banho de sol, salário, não precisarei acordar cedo pra ir trabalhar, vou ter representantes dos direito humanos puxando meu saco.”

“Família de policial morto não recebe tantos benefícios com a família de presos. Cadê os ordinários dos direitos humanos? Estão sendo presos por ajudar bandidos né?

Há o ódio ao feminismo:

“Morto tbm já estou, pq não posso ficar contigo, ver vc crescer, desfrutar a vida contigo por causa de um sistema feminista e umas loucas. (…) vou levar o máximo de pessoas daquela família comigo, pra isso não acontecer mais com outro trabalhador honesto (…)

“(…) tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha!”

Há o ódio contra-tudo-isso-que-está-aí:

“No Brasil, crianças adquirem microcefalia e morrem por corrupção, homens babacas morrem e matam por futebol, policiais e bombeiros morrem dignamente pela profissão, jovens do bem (dois sexos) morrem por celulares, tênis, selfies e por ídolos, jornalistas morrem pelo amor à profissão, muitas pessoas pobres morrem no chão de hospitais para manter políticos na riqueza e poder!”

(…) As leis deste paizeco são para os bandidos e bandidas. A justiça brasileira é igual ao lewandowski, (um marginal que limpou a bunda com a constituição no dia que tirou outra vadia do poder) um lixo!

Há a misoginia:

“Sei que me achava um frouxo em não dar uns tapas na cara dela, más eu não podia te dizer as minhas pretensões em acabar com ela! Tinha que ser no momento certo. Quero pegar o máximo de vadias da família juntas.”

E há a convicção de estar do lado certo:

“Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai!”

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Após a divulgação da carta, vi pessoas nas redes sociais minimizando o simbolismo do ocorrido. “Era só um maluco.” “Caso isolado”. Etc. Gostaria de estar tão tranquilo quanto eles. Esse crime, e as maquinações mentais do homem que o cometeu, são as consequências extremas de um sistema social que, de diversos modos, passa pano nessas atitudes discriminatórias e violentas. Atitudes essas baseadas na crença reacionária de que o politicamente correto, a tolerância em relação à diversidade e a reivindicação de direitos iguais são a grande desgraça da nossa sociedade. Basta ver alguns comentários, sempre eles, sobre o manifesto deixado pelo assassino:

* * *

Nos EUA, a galera-da-caixa-de-comentários decidiu a eleição de 2016. Por aqui, quem conseguir (como Trump conseguiu lá) uni-los leva a eleição de 2018.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)