Acreditar em kit gay, vá lá. Mas 40 anos de contribuição…

As plataformas de redes sociais podem atiçar multidões virtuais e virar o jogo nas eleições. Só que as táticas de campanha não serão suficientes para tratar da reforma da previdência

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
7 min readMar 7, 2019

--

Nuvem com as palavras mais tuitadas por Jair Bolsonaro. Fonte: https://osf.io/a9wqy/download

“As pessoas tendem a desenvolver uma preferência por ideias com as quais estão familiarizadas, um fenômeno da ciência social conhecido como o efeito da mera exposição ou o princípio da familiaridade. As ideias, nesse contexto, funcionam como vírus infecciosos (…) Plataformas online operam num ambiente no qual há uma disputa pela atenção (do público) (…) Ultraje e raiva são meios eficientes de maximizar a atenção dos espectadores — as pessoas compartilham e interagem com postagens sensacionalistas com tal intensidade, que já existe uma indústria de spammers agindo nas redes sociais, baseada em junk news (…) Há pouco incentivo para que plataformas como o Facebook passem a desencorajar os usuários a abandonarem grupos fechados onde se compartilha material inflamatório” — Erin Schumacker, Why Conspiracy Theories Work so Well on Facebook

O governo Bolsonaro, eleito graças às redes sociais, tem um problema de comunicação.

A reforma da previdência é necessária. Os motivos são econômicos, sociais, históricos, demográficos. O negócio não pode ficar do jeito que está. Podemos questionar se a proposta apresentada pelo atual governo é a ideal; se os cálculos apocalípticos que apontam o déficit do sistema são legítimos; se não é possível, antes de fazer a reforma, cobrar o meio trilhão de reais devido por empresas caloteiras ao governo. Podemos discutir isso tudo, mas temos que agir também. Alguma reforma precisa sair, urgentemente.

Mas ninguém disse que seria fácil. A Proposta de Emenda à Constituição nº 287, AKA reforma da previdência, vai cobrar um preço altíssimo… justamente de uma galera que não tem como pagar. As camadas mais pobres da população, que já enfrentam dificuldades para comprovar seu tempo de contribuição nas regras vigentes, precisarão trabalhar ainda mais tempo antes de se aposentar. Milhões de idosos em situação de penúria terão seu benefício de prestação continuada (BPC) reduzido. São péssimas notícias a serem comunicadas ao povão.

Pelo menos uma coisa os três têm em comum.

O capitão reformado que por ora ocupa o Palácio do Planalto se gabou, diversas vezes, de ter levado a eleição presidencial sem recorrer à TV ou a custosos estratagemas de marketing. Seu uso intensivo das plataformas de redes sociais e de conteúdo disseminado via Whatsapp conseguiu converter em votos uma volumosa e ruidosa militância virtual. A exemplo de seu role model (modelo-de-rôla, como traduziria Millôr) estadunidense, Bolsonaro usa o Twitter com frequência para postar pronunciamentos oficiais e oficiosos, anúncios de projetos e obras, comentários sobre política nacional e externa, trolladas aleatórias, indiretas nem sempre indiretas e, por que não, vídeos explícitos de práticas públicas de insalubres parafilias. Quase sempre, as postagens do presidente são destinadas a inflamar os ânimos de seu séquito, colaborando para manter o governo em um permanente clima de campanha, outra lição aprendida com Trump. Uma bem documentada rede de sites e fanpages se encarrega de reverberar os vitupérios presidenciais. Há também a ativíssima presença de Carlos “Pitbull” Bolsonaro, cujo críptico estilo de composição de tweets já foi alvo de uma análise muito interessante.

Enfim. Se você é brasileiro e acessa a internet, certamente sabe tudo o que há para se saber sobre a rede de comunicação bolsonarista na web. Rodrigo Maia, brasileiro e conectado à internet, também sabe. Deve ter sido por isso que ele sugeriu que o governo deveria usar a “estrutura política” que garantiu a vitória na eleição para informar ao povo sobre a reforma da previdência.

Quando o Rodrigo Maia te diz que você precisa se comunicar melhor, você obedece.

Aí está o problema de comunicação do governo Bolsonaro.

A “estrutura política de grande influência” pode até servir para levar um presidente ao governo. Quando se trata se comunicar ideias, explicar mudanças de paradigma, esmiuçar complexidades, hmmmm… nem tanto. A mobilização digital que agita os bolsoneiros só consegue atuar dentro da limitada lógica da retórica reacionária. Aponte um inimigo, um mal, uma ameaça; apele aos mais basais instintos de sua audiência (paranoia, sobrevivência); apresente suas ideias como a única panaceia contra a desgraça que se avizinha. Mas o sucesso desse tipo de conteúdo depende de dois fatores. O primeiro é a predisposição do receptor de acreditar em algum tipo de realidade paralela (conforme descrito nesse excelente artigão sobre a situação política na Polônia). O segundo é a capacidade do conteúdo de corroborar e reforçar as ideias preconcebidas do receptor (é o tal do viés de confirmação tão citado em estudos sobre redes sociais).

Como notado por Erin Schumacker no trecho citado na abertura deste post, materiais que instigam a raiva e a indignação viralizam facilmente. Entretanto, esse tipo de material “informativo” só serve para mobilizar a atenção popular e direcionar sua agressividade ao alvo da indignação. A mamadeira fálica, o kit gay, o Haddad pedófilo, a Lei Rouanet que desvia bilhões (!) da saúde pública, a extrema imprensa, o envolvimento de Jean Willis no episódio da facada — todos cases de sucesso.

Com a reforma da previdência não dá pra usar esse approach. Bolsonaro não pode dizer que o PT inventou a crise do sistema, que a doutrinação marxista é culpada pelo déficit, ou que os militantes LGBT estão quebrando a previdência e por isso é preciso reforma-la. Quer dizer, ele até pode dizer isso, mas há limites para a eficácia do ódio como fator de convencimento. Mais: a previdência é uma realidade na vida de todos nós. Não é um espantalho — uma mamadeira de piroca, um kit gay ou um “vamos-virar-a-Venezuela”. É um problema real, que precisa ser abordado com ações reais. Tweets ~polêmicos~, trolladas, indiretas, cortinas de fumaça em geral, nada disso vai dar jeito no rombo. Não cabe na “guerra cultural” que parece ser a prioridade número 1 da comunicação governamental.

Evidência 1.

Explicar a reforma e convencer o povo de sua importância é um trabalho de apresentação conceitual, de exposição de alternativas positivas em contraposição à uma realidade que precisa ser alterada. As redes sociais não servem pra isso. Pelo menos, não do jeito que a “estrutura política de grande influência” as empregam.

Devemos reconhecer que nosso tuiteiro-em-chefe conhece bem os gostos de sua freguesia.

Já o campo progressista, derrotado (também) por causa das redes sociais, tem uma oportunidade de comunicação.

Por todas as características descritas acima, a comunicação viral via redes sociais não costuma ser propícia a disseminação de ideias positivas e/ou conceitos complexos… como a defesa dos direitos humanos, a diversidade, o bem-estar social ou as políticas afirmativas. Infelizmente, um tweet divulgando uma iniciativa social inovadora ou pregando união e tolerância nunca terá a mesma tração nas redes que um outro com mensagens de ódio e desunião. Diversos estudos já procuraram explicar por que postagens negativas e conteúdos que estimulam o extremismo costumam receber mais engajamentos e comentários que outras mensagens mais pra cima e construtivas. Retornando ao texto de Erin Schumacker, é fácil perceber por que plataformas como Facebook, Twitter e Whatsapp não têm muito interesse em tomar medidas ativas contra esse fenômeno. Afinal, as métricas de engajamento não enxergam interações positivas ou negativas. Mark Zuckerberg não quer saber se você gasta seu tempo na rede dele assistindo a vídeos de gatinhos ou xingando desconhecidos; ele quer que você gaste mais e mais tempo logado. Se os xingamentos mantêm as pessoas mais tempo logadas, bem…

Enquanto não se descobre um meio de usar essas redes para algo mais efetivo que a trollagem, os progressistas podem se aproveitar da situação. E a reforma da previdência apresenta uma oportunidade valiosa. Se o zapzap só presta para divulgar conteúdos negativos, por que não investir em uma blitzkrieg viral focada nos vários problemas da proposta? Problemas reais, como o sacrifício extra exigido dos trabalhadores, o tratamento diferenciado dado aos militares, o perrengue que os idosos dependentes do BPC vão passar. E, à moda da “estrutura política de grande influência”, com mensagens criadas para inflamar o público, apontando os “culpados” — grandes devedores, rentistas, privilegiados em geral — e mostrando como o projeto de poder bolsonarista, no qual a reforma é um ponto central, está alinhado a essa galera.

As redes sociais só entendem o ruído, o bate-boca, a indignação. Vamos botar o povo pra se indignar.

Mas usando o bom senso, né.

--

--

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)