Autobiography: MORRISSEY CONTRA O MUNDO (& VICE-VERSA)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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8 min readFeb 24, 2017

Postado originalmente em outubro de 2013.

“Unfortunately, what I am waiting for is myself, as others hahahaha on streets where squabbles threaten and desire is dread”. — Morrissey

Morrissey e a irmã Jackie, em 1965. Ele é o da direita

Qual é a maior obra de Steven Patrick Morrissey? Em sua carreira, iniciada oficialmente em 1978, qual seria o trabalho mais importante, cuja construçã0 teria merecido mais esforço? Não é nenhum dos discos gravados com os Smiths, nem mesmo The Queen Is Dead, recentemente eleito pela redação do NME como o melhor álbum da história do rock. Tampouco trata-se de algum de seus álbuns solo, sua militância pelo vegetarianismo ou suas obscuras incursões pela literatura. Não: a obra na qual Morrissey mais empregou (e ainda emprega) sua dedicação é a edificação de seu próprio mito — quem ele é, o que ele faz e o que o levou a ser assim. Daí, chega-se à óbvia conclusão de que sua Autobiography, lançada na Inglaterra no mês passado, seria a culminação natural da própria razão de ser do cantor. Decerto que Morrissey gostaria que seu livro fosse encarado dessa forma. Eu, como fã suspeitíssimo que sou, peço humilde licença para discordar.Autobiography, que até agora não teve seu lançamento no Brasil anunciado, é fascinante na medida em que permite aos admiradores penetrarem (ops) nas memórias do cantor. Mas seu conteúdo (irregular, do ponto de vista informativo) perde força num emaranhado de lamúrias, na reconstituição (ou omissão, simplesmente) seletiva de fatos cruciais de sua história e no exaustivo esmiuçar de suas crípticas obsessões.

Não por acaso, o trecho de maior interesse vai mais ou menos até a página 140 (das 480) do livro: a infância, adolescência e o começo da vida adulta, imediatamente antes da formação dos Smiths. Morrissey, claro, escreve bem, apesar de ser escravo de um estilo melodramático e de ter um pendor exagerado por aliterações. A Manchester na qual ele cresceu, entre 1958 e 1983, é descrita como um lugar lúgubre, onde a violência (física e psicológica) era inevitável. O clima festivo dos swinging Sixties não chega à cidade industrial, que parece estar ainda encapsulada nos tempos da Segunda Guerra Mundial. Nas ruas, a brincadeira favorita do pequeno Steven e seus amigos é invadir as (muitas) casas abandonadas da vizinhança. Na escola, castigos físicos e arbitrariedades estão sempre na ordem do dia (“This is the Manchester school system of the 1960s, where sadness is habit-forming, and where shame is cattle-prodded into kids who are in pursuit of bliss amid the unrelenting disapproval.”), experiências traumáticas que inspiraram o clássico smithiano “The Headmaster Ritual”.

O ambiente familiar, dominado por mulheres (a mãe, a avó, a irmã, as tias), é caloroso, mas falta ao mundo de Morrissey o glamour (aliás, ele usa a palavra inúmeras vezes ao longo do livro). A carência é suprida pela TV: páginas e mais páginas de descrições alentadas sobre seus programas favoritos. Sabiam que o pequeno Stephen era fã do Batman, aquele do Adam West? E que, ainda pré-púbere, se identificava com o ambíguo Dr.Smith de Perdidos no Espaço [“I cannot miss Lost in Space, where the secrets of masculinity are meted out in the pingpong clash between Dr Smith and Major West (…) The masculine man hates the feminine man because soft is the enemy of hard (…) effeminate men are very witty, whereas macho men are duller than death.“] Na vida real, ele vive cercado de garotas, que eventualmente o desejam, mas não são correspondidas; já os poucos amigos do sexo masculino são relembrados em detalhes. (“It was he who told me the reason why girls fluttered around me at St Wilfrid’s, and what it was that they wanted. He told me this because I didn’t know, and even when I knew, I was less interested than when I didn’t know.“).

Mama Morrissey, em 1975: fiu-fiu!

Noutro trecho capital, ele desdenha a hipótese de chegar às vias de fato com o sexo oposto: “(…) What had girls to offer ? Nothing but a mangled jungle of tangled hair presented as the jackpot payoff. Honeypots sprawled like open graves, their owners doing nothing at all other than letting you. The call of duty is all yours — to turn on and get off ; to hit the spot and know the ropes ; to please and be pleased ; as the owners of such Bermuda Triangles do . . . nothing.”

A modorra só é quebrada pela música pop, primeiro na forma de singles e LPs vorazmente consumidos — Righteous Brothers, Buffy Sainte-Marie, Marianne Faithfull, Timi Yuro. David Bowie, cantando Starman na TV, muda a vida de Morrissey, assim como cada um dos primeiros shows a que ele assistiria no começo da década de 1970: T.Rex, Mott the Hopple, Roxy Music, Lou Reed. Todos esses ficariam de escanteio com a descoberta dos New York Dolls, cujos som selvagem e aparência ultrajante deixam uma marca indelével na psiquê do futuro cantor dos Smiths. Curiosamente, a descrição que Morrissey faz da música dos Dolls — “On an infinitesimal scale, Dolls songs are about life happening against us — never with or for us — and as agents of their own troubles they relate everything to themselves.” — poderia muito bem ser aplicada à sua própria maneira de ver o mundo. O punk rock chega a Manchester e Morrissey não demora a se insinuar nos bastidores das turnês que visitam a cidade, conhecendo bandas como os Sex Pistols e seu amado Johnny Thunders. Ele já enfiara na cabeça que se tornaria um cantor, mas enquanto o sonho não realiza, uma sucessão de empreguinhos medíocres (hospital, loja de discos, um escritório da Receita Federal) garante alguns trocados.

Afinal, acompanhado por Billy Duffy (futuro The Cult) na guitarra, Morrissey canta pela primeira vez. (“Against the command of everyone I had ever known, I sing ! My mouth meets the microphone and the tremolo quaver eats the room with acceptable pitch and . . . I am removed from the lifelong definition of others, and their opinions matter no more. I am singing the truth by myself, which might also be the truth of others . . . and give me a whole life . . . let the voice speak up for once and for all . . .”) Segundo o cantor conta no livro, a noite de estreia dos Nosebleeds foi muito aplaudida. Mas as bandas formadas pelos amigos (como A Certain Ratio, no qual tocava seu camarada Simon Topping) iam decolando, e o velho Mozz ficava pra escanteio, deprimido… até que, claro, surge em seu caminho um certo Johnny Marr.

Quando os Smiths surgem no livro, a narrativa toma outro rumo. Apesar do fenomenal sucesso que a banda obteve na Inglaterra, expandindo o alcance do rock indie para além do gueto alternativo, Morrissey exibe-se paranoico e rancoroso. Todos parecem conspirar contra a banda. As palavras mais duras são reservadas a Geoff Travis, dono do selo Rough Trade (que editou originalmente todos os discos dos Smiths) — segundo o cantor, Travis menosprezava a banda e só atrapalhou a ascensão deles. Seymour Stein, presidente da Sire Records, que lançava o grupo nos EUA, é igualmente enxovalhado. A cantora Sandie Shaw, que gravou “Hand in Glove” em 1984 (obtendo seu primeiro hit em 15 anos), é retratada como mal-agradecida e insensível — e ela era uma das favoritas de Morrissey na infância. Tony Wilson (Factory), Joe Moss (primeiro empresário do grupo), John Porter (produtor do álbum de estreia da banda)… sobram recriminações para todo mundo. Anotando obsessivamente o desempenho do grupo nas paradas inglesas e americanas, reclama sem parar da ausência das canções dos Smiths nas rádios. E, claro, xinga também a imprensa, com o NME ocupando lugar de destaque na lista de reclamações. A dissolução da banda não ganha uma explicação detalhada; Morrissey limita-se a discordar das versões apresentadas na mídia em 1987, sem apresentar sua própria explicação.

E entram os anos solo, e Autobiography segue na mesma toada: Morrissey afogado em autopiedade, sozinho contra o mundo injusto. Há pouca preocupação com o factual e muita acumulação de rancores e maledicências. David Bowie, por exemplo, é mencionado várias vezes — mas o autor não explica por que a turnê que os dois fizeram juntos, em 1995, acabou abruptamente (e foi ele, Morrissey, quem puxou a tomada). O encontro com Siouxsie Sioux, que rendeu o dueto “Interlude”, é usado para apresentar a cantora como uma megera insuportável. As mortes repentinas de várias pessoas próximas ao cantor, como os produtores Mick Ronson e Jerry Finn, o empresário Nigel Thomas e o diretor de clipes Tim Broad, merecem recordações lamuriosas, fixadas apenas no impacto que as mortes tiveram na vida do autor — e mesmo “de luto”, Morrissey sugere que a família de Thomas devolva parte do adiantamento pago ao empresário, para pagar custas legais de um dos muitos processos no qual o cantor se meteu anos afora. Por falar em processo, como era de se esperar, a ação judicial movida (e vencida) pelo baterista dos Smiths, Mike Joyce, requerendo 25% dos lucros obtidos pela banda (excetuando-se os direitos autorais das canções), ganha um catatau de páginas. Morrissey reserva doses extra de veneno para Joyce e para o juiz que decidiu o caso, além de culpar Marr (que também tomou um tremendo prejú). A descrição que o juiz faz de Morrissey — “deviant, truclent and unreliable” — é citada diversas vezes na narrativa, em jorros de autodepreciação.

Surpreendentemente, há poucos detalhes sobre gravações, discos e shows, exceto pela preocupação obsessiva de anotar o desempenho nas paradas e buscar culpados pelo fato deste ou daquele single não ter chegado ao Top 10. Os sete anos (1997 a 2004) em que ficou sem lançar um álbum inédito são narrados quase que en passant, com Morrissey mais interessado em listar as celebridades que encontrou pelo mundo no período. A saída de Alain Whyte da banda, principal parceiro musical dos últimos 20 anos (junto a Boz Boorer), fica sem maiores explicações. Claro que abundam anedotas interessantes, como o tempo em que ele foi vizinho de Johnny Depp, na Califórnia (“My neighbor is the very famous Johnny Depp, who looks away should I ever appear. When my seven-year tenure at Sweetzer ends, Johnny Depp will buy the house for use as a guest annex.”) ou a passagem do cantor pela cidade natal de James Dean, onde foi gravado o clipe de “Suedehead”(“A diner on Main Street remains where the young Jim slipped away his days, and he is remembered politely by the owners as I plough into French fries with white bread, for there is nothing else on the menu that I can eat.”)

Trata-se de uma leitura fundamental para os convertidos. Mas… e o resto do mundo? O cantor prefere os resmungos à substância, o apontar-de-dedos em lugar de detalhes cruciais. Essa escolha restringe o interesse das “pessoas normais” pelo livro e dá munição aos muitos que, não sem razão, vêem Mozz como nada além de uma bicha velha e rancorosa. Estiloso, bem redigido, muitas vezes hilário, Autobiography não merece, contudo, a comparação com outros volumes de memórias pop como as Crônicas de Bob Dylan. É um livro feito para aqueles que ainda enxergam grandeza e importância no mito que Morrissey construiu sobre sua própria vida. Ou seja, acima de tudo, é um livro feito para o próprio Morrissey.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)