DA ARTE ESQUECIDA DE SEQUENCIAR AS FAIXAS DE UM LP.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
6 min readApr 15, 2020
Há uma lógica que rege o ordenamento desta exata sequência de faixas (o que inclui a subtração de uma delas da lista impressa). Faz sentido botar “I Want You” pra fechar um lado; a rebordosa é rebatida com a leveza de “Here Comes the Sun”, abrindo o outro.

Se você é ligado em música e tem frequentado redes sociais nestes dias de distanciamento social, já deve ter participado, ou ao menos notado, correntes de posts pedindo indicações de “LPs para serem escutados do início ao fim”. Eu mesmo, que não sou muito chegado a esses joguinhos, contribuí uma ou duas vezes.

Essas correntes acabam por denunciar a idade de seus participantes. Afinal, hoje em dia, escutar discos “de cabo a rabo” é ~coisa de velho~. Com a consolidação do streaming como modo preferencial de se escutar música, a própria ideia de álbum — um conjunto de canções feitas para serem ouvidas em sequência, amarradas ou não por um conceito, e que capturam uma determinada fase criativa do artista — vem perdendo o sentido. Desnecessário elaborar, uma vez mais, a respeito do encolhimento do mercado de lançamentos físicos versus a expansão sem retorno do streaming.

Na verdade, quem ouve música online não se importa muito em escutar álbuns de cabo a rabo. Quando se analisa a lista dos álbuns mais tocados nas plataformas, vê-se que praticamente todos os acessos se concentram apenas nos hits incluídos nos LPs. Pouca gente escuta as demais faixas. Sabendo disso, alguns dos mais populares artistas do momento não consideram mais o formato long-playing como o ápice de seu processo criativo. (“Criativo”, em termos; o trabalho “artístico” hoje leva em consideração análises de big data e intensas pesquisas sobre o comportamento dos ouvintes.)

Essas mudanças todas tornaram o álbum algo ultrapassado. (Ao menos, mercadologicamente.) O que dizer, então, do trabalho de ordenar as músicas de um LP “de cabo a rabo”, considerando o clima geral do disco, a transição adequada entre uma faixa e outra, o posicionamento dessa ou daquela canção e até — nos tempos do vinil — a decisão sobre qual música fecha o lado A e qual inicia o lado B? É uma arte que hoje parece uma bruxaria, uma habilidade arcana — e inútil — , remanescente de tempos remotos.

Mas o sequenciamento apropriado das faixas é fundamental para elevar a experiência do ouvinte. Mesmo que não se trate de um álbum conceitual, o ordenamento das faixas sugere uma “história”, um caminho de audição que é inerente à própria ideia do long-playing. Let It Bleed não seria o que é, se os Stones tivessem posto “Country Honk” para abrir o disco, em vez de “Gimme Shelter”. É impossível imaginar o encerramento de Revolver com outra música que não fosse “Tomorrow Never Knows”. Não há uma ordem melhor para Raio X do Brasil do que a iniciada com “Fim de Semana no Parque” (logo depois da intro falada) no começo do lado A e “Homem na Estrada” abrindo o B. Da Lama ao Caos precisava começar com a dobradinha “Monólogo ao Pé do Ouvido”/“Banditismo por uma Questão de Classe”, seguindo com “Rios, Pontes & Overdrives…”

Quer dizer, às vezes há um raciocínio lógico por trás da sequência, às vezes não. Às vezes a razão é puramente de ordem técnica (como a tendência de se colocar músicas mais leves e com volume mais baixo no “meio” dos lados do vinil, para minimizar distorções). Às vezes a ordem embute uma pegadinha, como na coletânea Songs in the Key of X, que tem uma faixa do Nick Cave escondida antes de o disco começar de fato. Tanto faz: um grande disco se torna grande também por conta de um sequenciamento adequado. Vamos conferir?

Matutando aqui, consegui identificar na história da música pop algumas marcas que se distinguem no processo de sequenciamento de grandes álbuns.

Para as aberturas:

Em algum universo paralelo, existe uma versão de “Led Zeppelin II” que NÃO começa com esta música. Esse universo é um lugar muito sem graça.
  1. O pé-na-porta. O LP é iniciado com a música mais impactante de todo o repertório — não precisa ser o single de trabalho, nem a mais pesada ou agressiva (embora isso ajude), mas tem que ser aquela em que o artista soa mais convicto, mais resoluto. Isso requer um conjunto de músicas coerentes com o clima evocado pela primeira faixa, sob o risco de o resto do álbum soar anti-climático após a abertura. É uma abordagem muito popular e é também uma dica dada por muitos produtores. Exemplos clássicos: Doolittle, Pixies; Raw Power, Iggy & The Stooges; Check Your Head, Beastie Boys; Chega de Saudade, João Gilberto; Thriller, Michael Jackson.
  2. O prelúdio. Põe-se, propositalmente, uma faixa mais leve e/ou mais calma e/ou menos característica dentro do repertório para abrir. Depois, o disco “começa” de fato. Funciona muito bem quando o artista é conhecido por um determinado tipo de som, e a música de abertura quebra as expectativas. Exemplos clássicos: The Velvet Underground and Nico; Daydream Nation, Sonic Youth (com a introdução lentinha de “Teen Age Riot”); Diamond Dogs, David Bowie; Is This It, Strokes; Psychocandy, Jesus and Mary Chain.

Para a meiúca do álbum:

  1. O “crescendo infinito”. É quando o disco capta o clima sugerido pela abertura e vai intensificando esse sentimento até o fim (ou perto do fim). Se o álbum começa deprê, vai ficando mais e mais deprê até o final; se começa frenético, o frenesi redobra de intensidade. Exemplos clássicos: Closer, Joy Division; White Light White Heat, Velvet Underground; Fresh Fruit for Rotten Vegetables, Dead Kennedys; Get Happy!!, Elvis Costello; Dark Side of the Moon, Pink Floyd.
  2. O “platô”. Às vezes, o artista escolhe uma piéce de resistance bem definida e a taca bem no meio do disco, de modo a sinalizar: aqui é o topo da jornada, este é o ponto alto incontestável do álbum. As faixas que seguem servem como uma coda, um post-scriptum. É como se a música “pé-na-porta” fosse empurrada para o fim do lado A ou o começo do lado B. Exemplos clássicos: Pet Sounds, Beach Boys; Marquee Moon, Television; Street Hassle, Lou Reed; Sound of Silver, LCD Soundsystem; Pinkerton, Weezer.

Para o encerramento:

  1. A apoteose. Certos discos guardam, de propósito, a faixa mais marcante ou mais ambiciosa para o fim. Em geral (mas nem sempre) são canções mais longas, ousadas — ou apenas um paroxismo criativo que ajuda a amarrar toda a experiência do LP. Em raros casos, o artista empilha mais de uma faixa nesse ápice (caso da trinca “Ziggy Stardust”/ “Sufragette City” / “Rock’n’Roll Suicide”, com a qual Bowie encerrou The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars). Exemplos clássicos: The Doors; o disco azul do Weezer; Sgt. Peppers Lonely Heart’s Club Band, Beatles; The Stone Roses; Blonde on Blonde, Bob Dylan.
O muito subestimado segundo disco dos igualmente subestimados Th’ Faith Healers, “Imaginary Friend”, termina com uma música de 20 minutos de duração que vai até os 14 minutos, dá uma pausa silenciosa de quase 20 minutos e depois retorna. A faixa completa tem cerca de 40 minutos e é mais longa que o restante do disco.

2. O suspiro final. Funciona bem em conjunto com a apoteose, ou como um P.S. dos álbuns que vêm num crescendo interminável. Depois que o disco já disse tudo o que tinha pra dizer, pode ainda haver tempo para mais um recadinho. Aí entra mais uma música, em geral curta e meio deslocada do tom prevalente no resto do LP, mas que acaba compondo bem e servindo de despedida. Eventualmente, pode ser uma faixa oculta, não creditada na capa (ou mesmo no selo). Exemplos clássicos: Abbey Road, Beatles; On the Mouth, Superchunk; Nevermind, Nirvana; Definitely Maybe, Oasis; Raimundos, Raimundos.

Nunca escutamos tanta música, e, paradoxalmente, nunca prestamos tão pouca atenção à música que escutamos. O LP pode ser hoje um formato ultrapassado e mesmo inadequado ao mercado hodierno, mas a história do pop rock foi construída, em larga medida, sobre os ombros do LP. A ordem das músicas em um álbum — o trabalho e o tempo consumidos no processo de ordená-las — também é parte fundamental do próprio álbum, e não deve ser desprezada. Um LP bem sequenciado sempre será algo muito maior que um mero amontoado de singles + meia-dúzia de fillers.

E vocês? Já pensaram nessas cuêstões todas? Têm outros exemplos que se encaixem em minhas classificações? Ou discordam da porra toda? Manifestem-se nos comentários.

--

--

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)