DISCOGRAFIA COMENTADA: BUILT TO SPILL.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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8 min readNov 1, 2018
O BtS em 2016. Ao centro, Doug Martsch

O Built to Spill é o mais bem guardado segredo indie da década de 1990. “Bem guardado”, no caso para nós, brasileiros, uma vez que a banda nunca teve sequer um álbum lançado oficialmente no país e que, no auge de sua criatividade, passou em brancas nuvens por aqui — não lembro de, nos anos 90, ter visto clipes do BtS na MTV ou mesmo menções à banda na imprensa. Atrasadão, só descobri o grupo, no começo da década de 2000, já na era da internet, lendo sobre eles em listas de melhores da década anterior e baixando (no Kazaa? Ou será que o Soulseek já tinha aparecido?) seus álbuns.

Na moita, sem nunca bombar nas paradas nem ser apontado como o “próximo Nirvana”, o grupo não apenas conquistou um considerável número de fãs, como também construiu uma das mais sólidas discografias de sua geração. Fundado em 1992 no estado norte-americano de Idaho, o Built to Spill desamarrou o indie rock de suas (muitas vezes auto-impostas) limitações estéticas aplicando-lhe complexidade, sem dispensar a essência DIY do estilo. Naturalmente melódicas e cativantes, as melhores composições do grupo se sustentam no equilíbrio entre harmonias/estruturas ambiciosas e a desconcertante fragilidade da voz de Doug Martsch, fundador, líder e, na prática, o único membro fixo na carreira do grupo. Dono de um timbre agudo, quase pubescente (apesar de seus 49 anos), Martsch também é um guitarrista muito versátil, que brilha tanto em solos distorcidos quanto em levadas rítmicas surpreendentes. Todos esses elementos díspares tornam o BtS uma banda única na história recente do rock alternativo. Soa, ao mesmo tempo, delicada & expansiva; intimista & barroca; tímida & exuberante.

A reboque dos dois shows que a banda fará no Brasil no começo de novembro, revi toda a discografia dos caras. É uma produção concisa (oito elepês de estúdio e um ao vivo em 26 anos), na qual os trabalhos mais consagrados foram lançados ainda nos anos 1990, mas que reserva bons achados em todos os discos. Vamos lá:

DISCOS DE ESTÚDIO

ULTIMATE ALTERNATIVE WAVERS (1993): já na primeira música (“The First Song”, hahaha) de seu primeiro disco, o BtS mostrava a que vinha. É notável perceber como a proposta sonora do grupo nasceu pronta e apenas ganhou novas nuances nos discos seguintes. Dedilhados delicados interpolados com riffs agressivos e microfonias; uma letra versando sobre conflitos internos e culpas suprimidas, que ganha sinceridade com a interpretação de Martsch (creditado no encarte como “Dug”); um comprido solo inspirado nas viagens guitarrísticas de Neil Young. A vocação para canções longas era exposta em “Shameful Dread” e “Built Too Long Parts 1, 2 & 3” — repletas de mudanças de andamento e de dinâmica, truques que seriam aperfeiçoados nos próximos anos. Há também momentos mais convencionais e contidos, em “Three Years Ago Today” e “Nowhere Nothing Fuckup”, e uma esquizofrênica tentativa de criar um single pop (“Lie for a Lie”) “estragada” com dissonâncias e outras esquisitices. O título, irônico, tornava-se ainda mais engraçadinho combinado com a capa.

THERE’S NOTHING WRONG WITH LOVE (1994): mais variado que a estreia, o segundo álbum podou eventuais excessos e experimentalismos. Para tanto, o grupo contou pela primeira com a ajuda do produtor Phil Ek, na época um iniciante, e que viria a trabalhar nos próximos quatro álbuns do BtS (e que se tornaria um renomado produtor no meio alternativo). O resultado é uma coleção de eficazes canções guitar-pop, na qual reluz a singeleza de “Car”, legítimo clássico que, com seu tom tristonho e narcotizado, é uma das composições que melhor definem o estilo de Martsch. Mas havia mais. “Big Dipper” e “Distopian Dream Girl” levavam o BtS para um território próximo ao do Weezer. “Cleo” soava como uma canção de ninar feita pelos Pixies. A beleza acústica de “Fling” era complementada por um solene violoncelo. E a distorcida “Some” recuperava mais uma vez a influência de Neil Young. Sem perder o humor auto-depreciativo, a banda encerrava o disco com uma vinheta anunciada como uma prévia do próximo álbum, mas que na verdade trazia apenas trechinhos de paródias de estilos como country-rock e hardcore.

PERFECT FROM NOW ON (1996): “I’m gonna be perfect from now on / I’m gonna be perfect, starting now”, prometia Doug na faixa de abertura do primeiro álbum que o BtS gravou para a Warner Bros. (Apesar de ser um ícone indie, o grupo lançou sete de seus nove discos por uma gravadora multinacional.) “Perfeccionista” deriva de “perfeição”, e sem dúvida Martsch atingiu o píncaro de seu perfeccionismo neste terceiro trabalho, que foi regravado integralmente, do zero, duas vezes (!) antes que o líder e compositor se desse por satisfeito*. De todo o guitar rock alternativo americano dos anos 1990, talvez seja o trabalho mais ambicioso (e generoso em termos de criatividade). Martsch afirmou, de forma nada modesta, que o template para PFON era o Álbum Branco dos Beatles. Quase todas as músicas do disco têm duas, às vezes três partes bem distintas; uma banda mais acomodada teria desdobrado todas aquelas ideias em dois, três elepês, mas o BtS preferiu construir uma pequena suite em cada faixa. São canções longas (das nove, apenas uma tem menos de cinco minutos de duração), quase todas lentas e em tom menor, nas quais os arranjos e overdubs cuidadosamente empilhados e as variações de clima não sufocam a beleza simples das canções; pelo contrário, ajudam a alça-las a níveis transcendentais. Surpresas abundam: a virada rítmica ao final de “I Would Hurt a Fly”, a luminosa melodia de “Kicked in the Sun”, a hipnose em compasso 3/4 de “Velvet Waltz”, o rompante de agressividade em “Out of Site”. Perfeito dali em diante, até hoje.

*As gravações originais foram abandonadas porque Martsch não ficara satisfeito com o resultado. Regravaram o disco todo, e quando afinal estavam contentes… as fitas foram destruídas acidentalmente. O jeito foi gravar tudo pela terceira vez.

KEEP IT LIKE A SECRET (1998): o único disco capaz de rivalizar com Perfect From Now On no coração dos fãs, KILAS nasceu do desejo de Martsch de fazer músicas mais simples, curtas e diretas, em contraposição às labirintinas composições do álbum anterior. Desse desejo surgiram algumas das faixas mais populares da carreira da banda: “The Plan”, “Carry the Zero” e “Center of the Universe”. Em canções como “Sidewalk” e “Bad Light”, as típicas mudanças de dinâmica davam as caras, só que de forma mais contida. A ambígua relação que Martsch sempre manteve com o classic rock se manifestava de forma irônica em “You Were Right”, cuja letra não passa de uma colagem de citações a hits dos Stones, Pink Floyd, Hendrix e outros medalhões. A pesada e longa “Broken Chairs”, que encerrava o disco, era a única a manter o clima épico de PFNO. Em suma, o trabalho apresentava uma bem-sucedida depuração dos principais elementos da personalidade da banda, transformada no disco mais acessível de sua obra.

ANCIENT MELODIES OF THE FUTURE (2001): Três anos depois, Martsch & o BtS retornavam (ainda mais) melancólicos. E, pela primeira vez, soavam autorreferentes, um tanto acomodados. A abertura clichêzona de “Strange”, single que abria o álbum, entregava todo o serviço. Não que falte inspiração a este quinto registro. “The Host”, “The Weather”, “Alarmed” e “In Your Mind” são tão envolventes quanto os melhores momentos dos discos anteriores. Outras, no entanto, parecem apenas pretextos para alongadas jams construídas em torno dos solos de Martsch (“Trimmed & Burning”) ou abusam de uma simplicidade melódica que se torna repetitiva (“You Are”). No fim das contas, faltam tanto a concisão de Keep It Like a Secret quanto a ambição desmedida de Perfect From Now On.

YOU IN REVERSE (2006): Depois de um hiato de cinco anos, o então quarteto optou por um som mais cru, basicamente gravado ao vivo no estúdio. O approach confere energia extra a “Goin’ Against Your Mind” (a paquidérmica faixa de abertura, com quase nove minutos), “Mess with Time” e “Conventional Wisdom” — o mais próximo que o BtS chegou de soar como o Dinosaur Jr. Nas músicas mais calmas, os resultados são irregulares. Quando a composição é inspirada, caso de “Traces” ou “Saturday”, a coisa flui. Mas quando falta criatividade, como na esticada “Wherever You Go”, o negócio empaca. A faixa final, “The Wait”, é encerrada com uma das melhores codas guitarrísticas gravadas por Martsch.

THERE IS NO ENEMY (2009): este álbum mostra um BtS domesticado. De todo modo, foi saudado pela crítica como um retorno aos bons tempos. O raciocínio era o seguinte: a banda já não pretendia mais “enganar” ninguém arriscando inovações forçadas e ainda assim era capaz de surpreender. Um bom exemplo era a faixa de abertura, “Aisle 13”, que soava familiar, mas não exatamente repetitiva. Melodias calminhas, guitarras em volume mais baixo, e o uso discreto de elementos como arranjos vocais elaborados, um naipe de metais, órgão e slide guitar evocavam sons das décadas de 1960 e 70. É o clima prevalente na maioria das faixas, seja nas lentinhas (“Nowhere Lullaby”, “Life’s a Dream”, “Things Fall Apart”), seja nas mais animadas (“Hindsight”, “Good Ol’ Boredom”). Apenas a curtinha “Pat” quebra o clima, com sua levada punk.

UNTETHERED MOON (2015): seis anos separavam o (por enquanto) último disco do BtS e seu antecessor. Nesse interregno, a banda chegou a gravar um álbum inteiro que acabou engavetado e perdeu dois membros de longa data, Scott Plouf (bateria) e Brett Nelson (guitarra, baixo, teclados, whatever). Em 2013, Martsch afirmou em uma entrevista que se sentia “velho e desorientado” e que contemplava o possível fim do grupo. Esse tom reflexivo está estampado em Untethered Moon, ainda que de forma ambígua. Em “All My Songs”, Martsch soa nostálgico e cansado ao cantar “All night listen to the second record / Yeah, and all these songs sounded like we’re in this together” — mas encerra a canção com um solo dos mais escorchantes. Em “Living Zoo”, se lamenta: “Sometimes when you wake up / Sometimes wake up lonely /
Feel alone / Somehow we get over it” — mas o som é ruidoso e pra cima. “Another Day” fala sobre se sentir deslocado (“And I was made from material that could never last / An obsolescence that no one would have planned”) — mas a música soa confortável como um chinelo antigo. É apenas o bom e velho Built to Spill, mais velho, não tão bom quanto antes, só que ainda dando no couro.

AO VIVO

LIVE (2000): uma vez eu compilei um Top 10 com meus discos ao vivo favoritos de todos os tempos, e este álbum estava na lista. O BtS certamente estava em seu auge como “banda ao vivo” quando essas gravações foram feitas, durante turnês em 1999, com uma formação de três guitarras (Martsch, Brett Netson e Jim Roth) para dar conta dos arranjos mirabolantes daquela fase. As versões de “Randy Described Eternity”, “I Would Hurt a Fly”, “The Plan” e “Stop the Show” ficaram incríveis, mas as surpresas são o real destaque do repertório. A obsessão com Neil Young é celebrada com uma gigante reinterpretação de “Cortez the Killer” (20 minutos!), e Martsch resgata “Virginia Reel Around the Fountain” — música do The Halo Benders, projeto paralelo que ele criou com Calvin Johnson — e transforma a canção em mais um legítimo mini-épico. Já a versão de “Broken Chairs”, que encerra o disco, ficou com mais de 19 minutos e nada de “mini”. Vocês não vão perder esse show, né?

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)