DISCOS DA VIDA: PSYCHOCANDY

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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3 min readNov 18, 2020

Publicado originalmente no site Discos da Vida, março de 2011.

Nasci e cresci em São Gonçalo, a cerca de 30 km do Rio de Janeiro. Apesar da proximidade com a capital, e de ser um dos maiores (em população e extensão) municípios do estado, é, ainda hoje, essencialmente uma cidade do interior. Imagine na segunda metade dos anos 80 do século passado, pré-internet, pré-CD, pré-MTV. Para um adolescente durango, conhecer aqueles LPs fabulosos que figuravam nas páginas da revista Bizz significava ter de ir ao Centro do Rio — não havia loja de disco que prestasse em SG. Mencionei que eu era (mais) durango? Eu economizava todo e qualquer trocado que pintasse para, periodicamente, excursionar às lojas da capital. Meu pai me acompanhava, para que eu não me perdesse pelas ruas da cidade grande. Foi numa dessas excursões com meu pai, em 1988, que comprei o disco que mudou a minha vida. Chegamos em casa, corri para a vitrola e botei a bolacha pra rodar. A primeira música não causou grande impressão no coroa. Quando começou a segunda, Marco Antonio Pai franziu a testa. “Ih, o disco tá com problema. Vamos ter que ir lá trocar”.

A música era essa:

“Não, pai, o disco não está com problema. É para ser assim mesmo.”

O momento mágico de Psychocandy, primeiro álbum do Jesus and Mary Chain, é justamente o silêncio entre o fim de “Just Like Honey” e o começo de “The Living End” — quem nunca ouviu o disco leva um susto, quem já ouviu mal consegue conter a expectativa. Eu nunca tinha escutado nada tão barulhento, e aquilo era só o começo. “Taste the Floor” emendava em “The Hardest Walk” e chegava a “In a Hole”, o paroxismo ruidoso do primeiro lado do vinil. A acústica “Cut Dead” era o único momento de respiro. “Taste of Cindy”, uma das minhas favoritas, fechava a sequência. Na outra face, “Never Understand”, “Inside Me”, “You Trip me Up” e “It’s So Hard” garantiam os picos de VU. O encanto perverso era a união de melodias assobiáveis, (remetendo à surf music e aos girl groups sessentistas) com a mais furiosa torrente de microfonia registrada num disco mainstream (eles gravavam pela Blanco Y Negro, selo da multinacional Warner). É preciso gastar espaço com a avalanche de bandas que devem suas carreiras inteiras a esse disco? Não, né?

Eu me apaixonei pelo J&MC antes de ouví-lo. Só ver as fotos e ler a descrição do som da banda (“Um bombom de cereja recheado de ácido sulfúrico”, como rezava a resenha da Bizz) foi o suficiente. Uma mistura de Velvet Underground com Beach Boys — algo indecifrável para mim, que nunca tinha ouvido Beach Boys, que dirá Velvet. Consegui ouvir uma música deles aqui e ali: o clipe de “Never Understand” no Vibração, uma execução de “You Trip Me Up” na Fluminense FM… Na época eu já tinha sido cooptado irremediavelmente pelas hostes alternativas. Em vez de ouvir Kiss e Led Zeppelin como qualquer adolescente padrão, minha cabeça andava cheia de Talking Heads, Sex Pistols, Echo & The Bunnymen e New Order. A aura que emanava da banda dos irmãos Jim e William Reid sibilava: esse grupo é para mim. A compra relativamente tardia de Psychocandy confirmou essa impressão. O ruidoso canto de sereia dos escoceses me enfeitiçou — e até hoje impede que eu me conforme com qualquer rock que cheire, ainda que remotamente, à “normalidade”. A partir de Psychocandy, eu nunca mais deixaria de procurar por sons desafiadores, dissonantes, imprevisíveis. O Jesus me abriu os ouvidos para uma linhagem sônica que mirava o passado (Velvet, MC5, Stooges, Modern Lovers, Sonic Youth…) e para o que viria depois (Spacemen 3, My Bloody Valentine, todos os shoegazers…) e que ocupa uma grande fatia da minha discoteca.

O velho vinil que causou tanto espanto ao meu velho pai continua na minha estante. E com uma vantagem: é um dos poucos LPs que melhoram com o tempo. Quanto mais arranhado, melhor.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)