ENTREVISTA: WALTER FRANCO (1945–2019)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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5 min readOct 24, 2019

Depois de sofrer um AVC e ficar internado por cerca de 20 dias, morreu hoje (24/10) em São Paulo o cantor e compositor Walter Franco. Inquieto, não cabia em rótulos — nem mesmo no de “maldito”, usado com insistência para defini-lo. Seu último álbum saiu em 2001 e, quando do lançamento, eu o entrevistei para o site Cliquemusic. Da conversa, lembro que ele ficou brabo comigo quando o perguntei sobre as razões dos hiatos tão longos entre um disco e outro (o álbum anterior tinha saído em 1982). Mas depois ele relaxou. RIP.

E lá se foram, voando, 19 anos desde o último álbum de Walter Franco. Seria maldade dizer que ninguém sentiu a diferença. Afinal, o cantor e compositor revelado no começo dos anos 70 é cultuado até hoje por um (pequeno mas influente e fiel) séquito, apesar de vários pesares — do incômodo rótulo de maldito; do refinamento de sua música, incompatível com a burrice mercadológica; da calculada inconstância de sua produção; e também de sua recusa a se enquadrar em qualquer jogo de mídia. Se para os fãs não chegou a haver um sumiço nesse hiato de quase duas décadas, para o próprio Walter é que o tempo não parou mesmo. Zen como sempre (também o título da canção com que ensaiou seu retorno, ano passado), Franco agora lança Tutano (YBrazil?), seu primeiro disco desde o homônimo Walter Franco, de 1982. E afirma: não está pronto para outra. Na verdade, sempre esteve pronto — para a mesma carreira.

“Ficar falando agora em ’19 anos parado no estaleiro’ é absurdo. Quem me acompanha pode ver que não foi assim. O público que se orienta pela grande mídia é que pode achar que eu sumi. Mas eu estive este tempo todo compondo e tocando”, sustenta Walter Franco em entrevista ao Cliquemusic. O autor de Cabeça tece considerações sobre os rumos de sua carreira: “O afastamento foi apenas do mundo do disco, porque eu nunca fui de bater em porta de gravadora. Elas (as gravadoras) tem a mania de querer mandar no artista. Isso de ficar todo este tempo sem lançar um álbum novo não prejudicou meu trabalho. Tenho consciência de que minha obra é de longo prazo.” Por essas e outras é que sua carreira, que bate perto dos 30 anos, só conta com cinco discos oficiais.

Mais do que a insinuação de que teria ficado “congelado” nestes últimos 19 anos, o que tira Walter Franco do sério mesmo é a velha alcunha de maldito. A qual, ele admite, já teve seu, digamos, propósito estético. “Nos anos 70 fazia sentido, havia até um certo interesse dos meios de comunicação por isso”, começa a teorizar o compositor. “Mas o rótulo é uma bobagem. O artista é muito maior que isso. Virou um clichezinho. É como se aquela geração que surgiu comigo ainda não tivesse sido anistiada, depois de todos estes anos. Quando apareci, fui chamado de vanguarda, comparado a Chico Buarque, Caetano Veloso e Hermeto Paschoal. Depois, apareceu isso de maldito. Parece que todo mundo que foge aos padrões acaba estabelecendo um mal-estar… Não há pessoa de bom senso que ache bom ser chamado de maldito. Maldito foi Baudelaire!”, solta o verbo Walter.

Tutano, o disco, é zen. Aliás, este é o título da música que Walter compôs para o Festival da Música Brasileira promovido no ano passado pela Rede Globo, contida no novo álbum. A estranha inventividade do compositor continua lá, como nos tempos de clássicos como Ou Não (73) e Revolver (75) — o sabor pós-tropicalista nas composições, as letras repletas de brincadeiras herdadas do concretismo, a eterna disposição em desconcertar. Canções novas como Na Ponta da Língua, Totem, Quem Puxa aos Seus Não Degenera, mais as regravações das antigas Cabeça e Muito Tudo compõem o repertório. “O meu baú de composições acabou ficando enorme nos anos 90”, relata Walter, “e tive que usar a intuição para selecionar o material a entrar no disco. Era tudo muito vasto, optei pelas músicas que compusessem uma certa unidade. É importante entender que este não é um ‘repertório novo’, e sim parte do todo do meu trabalho.”

O repertório novo andou sendo testado em shows com diversos formatos. “Nos últimos anos, toquei com muita gente, minha banda teve várias formações — mas também fiz muitas apresentações só de voz e violão. Era uma questão de adequar-me ao projeto do espetáculo”, diz Walter. Na hora de gravar o disco, produzido por Constant Papineau (roqueirão dos anos 70, com passagem pela banda O Peso), o compositor cercou-se de participações de latitudes diversas. Há vanguardistas (Arnaldo Antunes, Lívio Tragtemberg), eletrônicos (Anvil FX, Apollo 9), instrumentistas de renome (Guga Stroeter, Nuno Mindelis) e suingueiros (João Parahyba, do Trio Mocotó). “São todos músicos de primeira. Quanto à mistura de influências, tudo cabe naturalmente dentro de minha música. Não compartimento as coisas”, conta Walter. “O uso da eletrônica neste disco novo foi totalmente a serviço da minha imaginação. E o Constant — que tocou comigo nos anos 70 — é um cara que conhece profundamente o meu trabalho. Acabou ficando um disco de ‘não-arranjos’, o que vai bem com o meu universo.”

O fato é que Tutano vem coroar a gradual reentronização de Walter Franco no mercado, a partir do resgate feito pelos cineastas Sandro Serpa e Bel Bechara, no curta-metragem documental Walter Franco Muito Tudo, que fez sucesso em festivais ano passado. “O filme foi muito importante, aqueles depoimentos me fizeram pensar e repensar em muita coisa sobre minha carreira”, diz Walter. Em seguida, veio o envio de Zen ao Festival da Globo. Participante de festivais desde o começo dos anos 70 (Cabeça levou prêmio especial no Festival Internacional da Canção de 1972), o compositor reconhece a importância dos eventos para sua carreira: “(Festivais) são uma maravilha para gente como eu que não pode contar muito com marketing ou apoio da mídia. É um instrumento veloz para o reconhecimento de talentos. Nunca tive preconceitos sobre os festivais.” O contato com a gravadora YBrazil?, Walter volta a dizer, não foi iniciativa sua. “Depois da repercussão conseguida pelo filme, fui procurado no ano passado pelo (produtor e jornalista) Alex Antunes, que na época trabalhava no selo. Foi uma relação muito diferente de todas que eu já tive com gravadoras, porque finalmente estou trabalhando com gente que entende o meu trabalho”, fala Franco.

Indagado se seus novos planos de “longo prazo” incluem outro jejum de 19 anos até o próximo álbum, Walter teoriza sobre sua instável relação com o mercado: “Não tenho bola de cristal para prever o que pode acontecer, mas também não me iludo. Sei que continuo meu trabalho como sempre; neste momento, o bastão acabou sobrando para mim e eu gravei este disco. Posso dizer que me sinto estimulado, porque noto que os jovens de agora me entendem melhor do que as gerações anteriores. Talvez a virada do milênio tenha sido um incentivo extra para mim.”

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)