FÁBULA FABULOSA (À MANEIRA DE… D. P. MOYNIHAN)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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4 min readSep 29, 2022

Primeiro havia o riacho, com águas frescas e limpas. Daí começaram a chegar as pessoas; uma única família de pioneiros, que ergueu sua cabana a uma distância conveniente do riacho. Seguiu-se a chegada de mais uma família, e outra e outra, e em breve aquela região se transformou em um proto-vilarejo, dependente do riacho para pesca e abastecimento de água.

Pois o pessoal daquele proto-vilarejo começou a ficar doente. Primeiro uma criança aqui, depois um idoso ali, e os sintomas iam se espalhando. Dores de estômago, febre, náuseas e, mais que tudo isso junto, diarreia. Alguns dos casos eram graves o suficiente para levar os pacientes à morte.

O povo do proto-vilarejo não entendia de onde vinha a doença. Uns desconfiavam de castigo divino. Outros apostavam tratar-se de envenenamento — talvez um vilarejo rival, interessado naquelas terras? Banhos de descarrego, danças rituais, correntes de oração, nada funcionava para prevenir a misteriosa moléstia.

Enquanto as vítimas se acumulavam, um dos aldeões um tiquinho mais vivido e viajado percebeu que, por meio de um canal improvisado, os dejetos acumulados nas “casinhas” usadas pelos pioneiros para aliviar suas necessidades fisiológicas iam parar no riacho. O mesmo riacho que era usado como fonte de água potável pelo povo do proto-vilarejo.

“Amigos pioneiros”, disse o aldeão vivido, discursando perante seus concidadãos, “conheci um outro proto-vilarejo não muito diferente do nosso, à beira dum riacho não muito diferente deste aí, e que enfrentou uma doença não muito diferente desta que nos assola hoje. Eles resolveram o problema colocando as ‘casinhas’ bem longe do rio. Não entendi muito bem a razão, mas funcionou: eles afastaram os dejetos da água e ninguém mais caiu doente.”

Assim os aldeões fizeram: desmontaram suas “casinhas” e cavaram um canal que levava a sujeirada para longe do riacho. Em poucos dias, os casos de diarreia, febre e vômito foram se tornando mais raros, até que a doença desapareceu por completo. O povo do proto-vilarejo ainda não conhecia o conceito de saneamento básico, mas pôde comprovar a eficácia da medida. E dali em diante, a medida —pôr as “casinhas” longe do rio — tornou-se uma regra preservada pela próxima geração, e pela seguinte, e pela geração que sucedeu a esta.

A salvo da disenteria, aquele grupamento de pioneiros se desenvolveu, prosperou e transformou o proto-vilarejo em um vilarejo de verdade e daí, em uma cidadezinha.

Imaginem vocês que um dia, muitos anos depois da adoção da prática de afastar as “casinhas” do rio, um dos aldeões resolveu questionar a regra. Ele postou-se no topo dum caixote (sim, o vilarejo tinha se desenvolvido o suficiente para ter artesãos capazes de produzir caixotes) na praça central da cidadezinha e começou a arengar.

“Sim, depois que nossos antepassados afastaram as ‘casinhas’ do rio, não tivemos mais casos da terrível moléstia”, discursou o aldeão contestador. “Mas também não há provas de que uma coisa está ligada à outra. Pode ser sido totalmente por acaso. Eu não tenho provas nem de uma coisa, nem da outra. Mas no meu entender, eu tenho o sentimento de que a cuestão da moléstia se deveu à bruxaria, e não a essa cuestão aí da distância entre as ‘casinhas’ e o rio.”

Dentre o grupo de pessoas que ouvia o aldeão contestador, algumas começaram a ter dúvidas. “Ele pode ter razão”, disse um. Outro proclamou: “Acima de tudo, ele deve ter a liberdade para afirmar sua crença”. Um terceiro questionou: “Todo esse processo de mudança das ‘casinhas’ foi envolto em mistério. Uma verdadeira caixa-preta. Só queremos transparência!”. Em seguida, uma voz em tom mais elevado bradou: “A QUEM INTERESSA AFASTAR AS ‘CASINHAS’ DO RIO?! TIREM SUAS PRÓPRIAS CONCLUSÕES! VAMOS TRAZER AS ‘CASINHAS’ DE VOLTA!”

“Concidadãos!”, disse afinal um dos mais velhos aldeões do grupo, que até ali acompanhava quieto o discurso e sua repercussão. “Eu me lembro de quando nossas ‘casinhas’ ainda ficavam perto do rio. Era terrível, muita gente caindo doente. Concordamos em testar a ideia de afastar as ‘casinhas’ do riacho e os resultados positivos foram inquestionáveis. E assim nosso proto-vilarejo se tornou um vilarejo de verdade. Por que estamos aqui contestando um fato consumado, em nome da liberdade de expressão?”

“Mas é a opinião dele. Ele tem direito de expressa-la”, apontou um dos ouvintes do contestador. Ouvindo isso, o contestador sorriu e retomou o discurso, ainda mais inflamado: “É isso mesmo. E como não sou homem de ficar apenas no discurso, vou obter as provas e mostrarei que tenho razão”. Ato contínuo, o contestador — seguido pela ruidosa minoria de aldeões que o apoiavam — dirigiu-se ao ponto afastado no qual ficava o canal por onde corriam os dejetos das ‘casinhas’. Sem hesitação, ele pulou no meio do lodaçal fedorento.

“Vejam!”, berrou ele, coberto de sujeiras as mais variadas. “Não há como provar que a doença tem qualquer relação com a sujeira que vem das ‘casinhas’! Estou aqui, afundado até os joelhos nos dejetos, e nada aconteceu!”

O contestador morreu de disenteria alguns dias depois, após intensos padecimentos.

MORAL DA HISTÓRIA (versão editada): “Todos têm direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos” (D. P. Moynihan).

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)