JÁ REINVENTARAM O JORNALISMO, RAPAZIADA, E A GENTE NEM VIU

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
5 min readOct 18, 2017
Dica: é um placebo.

(…) A esperança era que a convergência das mídias sociais com o jornalismo criaria uma versão superior, ou híbrida, de ambos; uma rica rede povoada por informações uteis e atualizadas, que poderiam ser facilmente aumentadas, compartilhadas e comentadas por uma população altamente engajada. Em vez disso, os piores elementos de ambos os mundos se combinaram, manchando as imagens da antiga e da nova mídias.” (trecho de The Platform Press: How Silicon Valley reengineered journalism. Tradução minha.)

Se você (por vocação, influência externa, falta de alternativa ou azar) marcou “Jornalismo” como opção de carreira no vestibular, deve ter ouvido nos últimos anos alguma conversa parecida com as seguintes:

“Jornalistas, temos que nos reinventar.”

“Como reinventar o jornalismo?”

“Quer reinventar sua carreira no jornalismo? Pergunte-me como!”

O desânimo é grande, as promessas são muitas, as picaretagens variadas. O fato é que, muito à revelia dos jornalistas, o ofício já foi reinventado. E não foi por algum esquema Herbalife. Passei alguns dias há pouco deglutindo o ajumentado estudo The Platform Press: How Silicon Valley reengineered journalism, editado em março último pelo Tow Center for Digital Journalism da universidade Columbia (EUA). Essa galera está na vanguarda da análise sobre os rumos do jornalismo na era digital. Volta e meia, eles soltam tijolaços como o que acabei de ler: 170 mil caracteres a respeito da influência das plataformas de redes sociais no modo como se produz e se consome jornalismo em 2017.

(Parêntese: Facebook, Twitter, Instagram etc. não são redes sociais, e sim plataformas digitais para as mesmas redes. A rede em si é o conjunto de relacionamentos entre as pessoas e, mais recentemente, entre pessoas, marcas, empresas, organizações etc.).

Organograma da estratégia digital da CNN. No centro, a distribuição de conteúdo em apps, mobile e na web; depois, as diversas plataformas que a emissora usa para distribuir vídeos, promover engajamento e marcar posição em canais inovadores/experimentais.

Não sei se a galera que prega a “reinvenção” por aqui chegou a ler. Pesquisão superaprofundado, com entrevistas, análise de dados, contextualização. Sim, eu sei que é um treco gigante, e em inglês ainda por cima. Não é todo mundo que tem tempo/paciência para a tarefa. Então compilei nos bullets abaixo as principais conclusões do estudo (que pode ser lido todo aqui também, num conveniente PDF). Conclusões, aliás, funestas para quem ainda busca a proverbial reinvenção e que, provavelmente, já perdeu o bonde. Vamos a elas:

• O futuro dos veículos de comunicação está ligado ao futuro das plataformas de redes sociais;

• Google, Facebook, Snapchat, Twitter, Pinterest, LinkedIn, YouTube e outras plataformas já são, de fato, veículos de mídia (por mais que o neguem). A distribuição e apresentação da informação, a monetização da publicidade e o relacionamento com a audiência são dominados por essa meia-dúzia de plataformas. Essas empresas podem se dizer “preocupadas” com o futuro do jornalismo, mas o jornalismo não é seu negócio principal;

• A essência do jornalismo não mudou, mas as notícias agora são veiculadas em plataformas que privilegiam a escala, a velocidade e a geração de receita. O negócio das plataformas é viralizar, algo que não tem relação direta com a qualidade do jornalismo praticado. A própria arquitetura que possibilita aos veículos o acesso ao público é prejudicial à sustentabilidade desses mesmos veículos;

• A integração com essas plataformas não tem sido vantajosa do ponto de vista financeiro para os veículos, especialmente para os de pequeno/médio portes e/ou regionais;

• Aparentemente, dois caminhos se apresentam aos veículos. 1) Manter seus canais próprios de publicação (sites, jornais, canais de vídeo etc.), num mundo em que o retorno de publicidade é mínimo e que a única receita possível vem de assinaturas ou outros meios de pagamento feitos diretamente pelos leitores ou 2) Migrar totalmente para a publicação dentro das plataformas, abrindo mão do controle sobre quem vê seu conteúdo, quando esse conteúdo é exibido e quanto se fatura em publicidade — em troca de uma receita potencialmente maior (dividida com as plataformas);

• É possível ver um futuro no qual a publicação de notícias não será mais o negócio principal dos veículos de comunicação, e sim a busca por engajamento/posicionamento de marca/viralização/difusão de publicidade nativa/estratégia multiplataforma;

• Em apenas 14 anos de existência, o Facebook se tornou a mais influente “redação” da história do jornalismo — sem produzir jornalismo algum;

•Fake news, clickbaits, discursos de ódio etc.: por causa do imenso volume de dados circulantes, as plataformas dependem de algoritmos para fazer sua gestão. Mas sem a participação de humanos no processo, é difícil selecionar de forma eficaz o que é verdade e o que é mentira, o que é liberdade de expressão e o que é pura trollagem.

Questão fundamental: como o jornalismo vai poder questionar e cobrar transparência dessas plataformas em seu relacionamento (cada vez mais complexo) com a sociedade, se sua própria sobrevivência agora depende dessas mesmas plataformas? Para manterem sua independência e sua relevância, os veículos precisam gerar receitas não vinculadas a esse ecossistema de redes sociais, usando as plataformas para engajar os leitores mas sem depender delas para monetizar seu conteúdo.

“Com a regulação da mídia em queda livre, as lideranças — das instituições jornalísticas e das companhias de tecnologia — estão livres para arbitrar sobre as regras de seu relacionamento. Econômica e culturalmente, as empresas de tecnologia controlam o equilíbrio de poder. É necessário que todas as organizações que se interessam pelo jornalismo cheguem a um acordo sobre as questões específicas do mercado de publicidade nas plataformas, e também sobre uma questão mais ampla e duradoura: qual é o tipo de ambiente jornalístico que queremos?” (Trecho de The Platform Press: How Silicon Valley reengineered journalism. Tradução minha.)

P.S. Um ponto interessantíssimo do estudo é seu tratamento das fake news e outros tipos de conteúdos que, mesmo não necessariamente “fake”, buscam apenas trollar/inflamar/manipular a audiência, e não informar.

“Um dos desafios centrais do atual sistema midiático é a intersecção entre fato e ficção. Notícia após notícia, jornalistas e teóricos de conspiração convergem em torno de um determinado tópico e dão cobertura contínua a ele, polarizando o discurso público em comunidades que compartilham crenças prévias. Nenhum dos lados é necessariamente falso, mas as histórias cuidadosamente construídas por cada facção podem omitir contextos e detalhes importantes. Quando isso acontece de forma consistente e persistente (…), nossa percepção sobre o que é real é afetada de maneira profunda e sistemática.” (Trecho de The Platform Press: How Silicon Valley reengineered journalism. Tradução minha.)

O ponto de inflexão no cenário americano citado no estudo é a eleição presidencial de 2016 e a influência que fake news disseminadas via Facebook teve sobre seu resultado. O calhamaço do Tow Center aponta que a manipulação da opinião pública ocorrida no ano passado pode ter causado um impacto similar ao do 11 de Setembro — invisível e sem violência física, mas feito com a mesma precisão cirúrgica.

É bom lembrar que no Brasil nós passamos, há pouquíssimo tempo, por um marco histórico similar: notícias (sic) de conteúdo inflamatório, com informações distorcidas ou tiradas de contexto, que detonaram uma onda de histeria coletiva veiculada pelas redes sociais — nominalmente “em defesa da família”, mas na verdade a serviço de um bem conhecido projeto político-ideológico.

Ano que vem tem eleição presidencial.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)