JORNALISTAS, PRECISAMOS FALAR SOBRE O CALOTE.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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8 min readDec 26, 2018

A Lei Complementar nº 135, de junho de 2010, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, determina que os políticos que tiverem o mandato cassado, renunciarem para evitar a cassação ou forem condenados por decisão de órgão colegiado devem se tornar inelegíveis por oito anos. A ideia é afastar do panorama os mandatários envolvidos em atos comprovados de corrupção. Legal!

Mas há uma verdade subjacente e inconveniente na lei. Ela reflete a crença de que o eleitor precisa ser tutelado, já que carece de discernimento suficiente para escolher candidatos honestos. Tipo assim: “Se deixarmos esse fulano aí se candidatar, o pessoal vai votar nele. Mesmo ele sendo corrupto. Então vamos impedir o cara de se candidatar. É pro bem do povo.” O ideal seria que o eleitor rejeitasse, por conta própria, o corrupto. Mas já que isso não acontece… a lei dá uma ajudinha ao pessoal.

Às vezes, eu gostaria que existisse uma Lei da Ficha Limpa para empresários de comunicação. Uma lei que protegesse os jornalistas, publicitários, designers, social medias e conteúdistas em geral das más escolhas que a classe costuma fazer — particularmente na hora de escolher seus empregadores/contratantes de frilas.

EVIDÊNCIA 1: já no meu primeiro emprego formal como jornalista, eu travei contato com o calote. Em meados da década de 1990, arrumei um bico de repórter/crítico de cinema num jornal diário que já deixou de circular, cuja sede ficava num sombrio sobrado na Rua do Lavradio. Eram frequentes os atrasos no (modestíssimo) salário; não vi nem sombra de rescisão ou FGTS quando deixei o veículo. Anos depois, o jornal foi fechado e deixou dezenas de profissionais, alguns com décadas de casa, sem receber um tostão. Seu dono mora em um casarão no alto do Jardim Botânico e até hoje diz que não tem coisa alguma a ver com a história.

Não creio que exista outra categoria tão acostumada a tomar calotes e a ser explorada, de forma voluntária, quanto o profissional de comunicação. De nada vale o instinto de preservação, a experiência prévia, a dor dos calotes passados. Sempre vai ter alguém oferecendo uma roubada explícita para nós. E nós, como os eleitores que votam em corruptos, sempre entramos na roubada. E não tardamos a tomar um novo calote.

O calote aplicado a jornalistas pode assumir variadas formas. Uma modalidade é a demissão em massa sem cumprimento das obrigações trabalhistas devidas pelos empregadores, algo cada vez mais comum diante das dificuldades enfrentadas pelos empresários do setor. Alguns casos degringolam para longas batalhas judiciais entre caloteiros e caloteados. A pejotização rampante da profissão abriu novas zonas cinzentas na relação com os patrões… e novas possibilidades de calotes, claro. A eterna crise do setor é usada como justificativa para atrasos de salários e outros benefícios, causando transtornos generalizados aos profissionais atingidos. Já quem trabalha como freelancer vive assombrado pelo fantasma do cliente caloteiro. Não importa qual seja o tipo de calote, os efeitos são os mesmos: além do prejuízo financeiro e do tempo e do esforço jogados fora, rola aquela sensação de traição, de quebra de confiança e de frustração.

EVIDÊNCIA 2: lá pelos idos de 2007, eu me encontrava desempregado e as contas se empilhavam. Uma conhecida me disse que havia vaga na agência de comunicação na qual ela trabalhava. “Mas vou te avisar: o salário atrasa”, a moça alertou. Mesmo sabendo disso, topei o trabalho. Dei expediente por dois meses na tal agência. O salário era uma merreca. Ainda assim, não recebi um tostão. Deixei o emprego (tinha arrumado outro) e passei semanas pendurado no telefone, cobrando e pedindo um prazo para saldarem a dívida. “Não temos previsão…” Procurei um advogado mas fui dissuadido de levar a pendenga adiante. O valor não compensava.

Mas por que essa situação se repete tanto com os jornalistas? Por que os empresários de comunicação costumam ser tão picaretas, e por que os profissionais do ramo se sujeitam a essas picaretagens — muitas vezes, sabendo que estão embarcando em uma furada? É uma relação que bordeja o sadomasoquismo. A explicação pode estar naquele folclórico diálogo travado entre um dono de jornal e um candidato a repórter. O cara pergunta ao futuro patrão sobre o salário e o chefe retruca: “Salário? Eu já vou te dar a carteirinha de jornalista, e você ainda quer salário?!” (Algumas fontes creditam a história a Assis Chateaubriand, na década de 1940.)

O tal diálogo pode ser apócrifo mas revela uma segunda verdade inconveniente: muitos patrões acreditam que sim, basta dar a carteirinha de jornalista (e mais nada) e muitos jornalistas acreditam que sim, vale a pena trabalhar apenas pela carteirinha (e mais nada). Eu não julgo quem topa esse tipo de acordo, cada um sabe de si. Só que as regras têm de ser claras. Se o cara chega pro jornalista, oferece um trabalho e diz de primeira que o job será não-remunerado, tá limpo; pega quem quer, quem pode, quem acha que “vai ser bom pra aparecer”. O problema é quando há um pagamento prometido, um contrato firmado, uma carteira assinada, um trabalho entregue — e a grana não sai.

EVIDÊNCIA 3: alguns anos depois do último calote, eu trabalhava num outro diário carioca, que outrora fora o mais prestigiado do país, mas que na época vivia um melancólico apagar das luzes. Atrasos de salário (o recorde foi de três meses) eram constantes. Foi quando caiu no meu colo um “projeto de interesse especial”, encomendado pela presidência do veículo, e que deveria ser acumulado com minhas atribuições usuais. O projeto me custou muitas noites viradas na redação, numa correria destrambelhada para não perder os prazos. O pagamento extra prometido pelo trabalho não saiu no prazo combinado. Um ano depois, quando deixei o jornal, a grana ainda não tinha saído. Só fui receber quase três anos depois. Sem correção monetária.

O mercado de trabalho para jornalistas é, desde sempre, uma merda. O desemprego é alto, as redações encolhem ou desaparecem, os frilas pagam mal e são disputados à tapa, a precarização já virou regra. Esse cenário penumbroso certamente torna os profissionais do ramo mais propensos a encarar “oportunidades” com cara de roubada. Quando não existe emprego, ninguém discute o subemprego (do qual o risco de calote é um componente). Aceitamos o trabalho e tentamos nos convencer de que desta vez vai ser diferente. Isso também explica os muitos casos de profissionais que, depois de muito serem sacaneados por determinada empresa, afinal deixam o emprego— demitidos ou por vontade própria — e dali a alguns anos, retornam à velha casa, prontos para serem sacaneados de novo.

Por outro lado, os caloteiros sabem ser sedutores, quando lhes convêm. Prometem, planejam, combinam. Alguns até assinam contratos, vejam só. Uns são bem-intencionados e descumprem os compromissos por questões alheias à sua vontade. Manter um empresa de comunicação não é bolinho, nunca foi, e às vezes a maré vira de vez e o cara não consegue fechar as contas. Outros são safardanas mesmo. Não têm intenção alguma de pagar o acertado e vão enrolando o quanto podem — o velho mantra “devo, não pago; nego enquanto puder”. Muitas vezes, não é por falta de dinheiro. É malandragem pura mesmo.

EVIDÊNCIA 4: eu trabalhava em uma outra agência de comunicação carioca. Seu dono era (é) famoso por tentar passar a perna em todo mundo, invariavelmente sem sucesso. Comigo, ele quase se deu bem. À determinada altura, ele demitiu todos os funcionários para mantê-los trabalhando sem carteira assinada. Mas não se preocupou em pagar rescisão, fundo de garantia, horas extras vencidas… Só fui ver a cor da grana anos depois. Para tanto, precisei levar o ~empresário~ à justiça do trabalho.

Então, podemos concluir que a propensão dos jornalistas para levarem calotes se deve 1) ao desespero diante de uma profissão em ruínas e 2) à incompetência e/ou irresponsabilidade e/ou canalhice dos empregadores. Decerto que o calote não é exclusividade da nossa profissão. Praticamente todas as categorias profissionais estão sujeitas a isso. A ironia é que jornalistas são treinados para desconfiar e duvidar de tudo em seu trabalho. E, no entanto, se transformam em presas fáceis de patrões inescrupulosos, numa batalha desigual.

O que fazer então, enquanto não surge uma Lei da Ficha Limpa que impeça os jornalistas de, voluntariamente, ingressarem em barcas furadas? Há algumas medidas práticas de autoproteção contra o calote.

EVIDÊNCIA 5: meu mais recente (e derradeiro, espero) contato com o calote veio de onde eu menos poderia esperar. Fui convidado a trabalhar como ghost-writer para um famoso empresário, produtor cultural e bon vivant carioca, que gostaria de ver seu nome na capa de um livro — mas que não estava a fim de sentar a bunda na cadeira e digitar milhares de caracteres. Dediquei-me à tarefa com afinco, na expectativa de agradar o sujeito. O cara é rico, influente, vai que me chama pra fazer mais coisas? E acabou chamando: depois de concluir o livro (mas antes de receber toda a grana combinada), recebi outra tarefa de produção de conteúdo, dessa vez para internet e redes sociais. Fiz o trabalho direitinho, passei a nota fiscal, paguei o imposto e… cadê o pró-labore? O figurão (com quem nem cheguei a ter contato direto) só pagou metade do combinado pelo livro, e zero (R$ 0,00) do combinado pelo segundo job. Meses de ligações e emails infrutíferos se seguiram, até que um dos aspones do figurão me aconselhou a simplesmente deixar o negócio pra lá. Protestei a nota fiscal e, até agora, mais de dois anos depois do imbroglio, não tive resposta alguma.

Não aceite combinados sem documentação formal. Mesmo que você confie na pessoa que lhe contratou. Informe-se sobre o retrospecto do contratante: será que ele costuma dar calotes? Se você vive de frila, busque registrar-se como MEI, o que insere uma camada de formalização no relacionamento com seus empregadores. Pense duas, 10, 100 vezes antes de aceitar trabalhar de novo para uma pessoa ou uma empresa que já te sacaneou. Não tenha medo de ser chato e insistente na hora de cobrar. Tenha o nome de um bom advogado trabalhista no bolso.

E vocês? Têm alguma história boa (quer dizer, ruim) de calote pra contar? Botem aí nos comentários.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)