LOVELESS, BANDWAGONESQUE, SCREAMADELICA: 1991, THE YEAR CREATION RECORDS BROKE

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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8 min readJan 25, 2017

Publicado originalmente em março de 2011.

1991: o ano em que o punk rock estourou. Em todo o lugar, só se falava/via/imitava o que vinha de Seattle. Camisas de flanela, o clipe de “Smells Like Teen Spirit” tornando-se um evento em si mesmo, o underground ianque finalmente emergindo, aquele espírito de “agora vai!” capitaneado por Kurt Cobain & Cia. E aí, quando sai a lista de melhores do ano de 91 da revista Spin, a mesma que tinha trombeteado o ano todo a revolução grunge, tá lá, em número 1… Bandwagonesque, do Teenage Fanclub, uma banda escocesa que professava um power pop barulhento mas acima de tudo doce. WTF?

WTF também para quem esperou por três anos o segundo álbum do My Bloody Valentine, salivando por conta dos sons esquisitos e hipnóticos contidos em Isn’t Anything (1988), dando cambalhotas com o interlúdio ruidoso do single “You Made Me Realise” e franzindo as sobrancelhas com os EPs Glider (1989) e Tremolo (1990). Loveless, o disco que finalmente saiu depois de um entra-e-sai interminável entre 19 estúdios diferentes, abria com quatro batidas secas de caixa e um som que, bem… descrever com palavras, como?

Mais WTF? Bem, na mesma época os fãs do Primal Scream já deviam estar tão bolados quanto, ou mais. Afinal, em menos de dois anos eles sairam disso aqui…

…para isso aqui…

…transformando-se de uma (entre milhares) de bandas indies revisionistas para uma das principais forças (se não a principal) da nova onda psicodélica-dançante que revirou o cenário britânico no fim dos anos 80/começo dos 90. ”Better music, better sex, better drugs”, dizia Bobby Gillespie sobre a virada concretizada no LP (duplo!) Screamadelica.

Cada um desses discos foi uma revolução em seus respectivos estilos. Screamadelica, lançado em 23 de setembro de 1991, encapsulou perfeitamente o clima neolisérgico do segundo Summer of Love: guitarras, synths & loops, ecstasy, black music, indie rock, um olho no futuro e outro no passado, um pé no show de rock e outro na pista de dança. Loveless, lançado em 4 de novembro, representou o píncaro de uma “linha evolutiva” da combinação entre ruído e melodia — uma estética herdada do Velvet Underground e escancarada pelo Jesus & Mary Chain. Bandwagonesque, que saiu no mesmo dia de Loveless, revitalizou o já cansado power pop à base de melodias cristalinas e do equilíbrio exato de doçura e sujeira. Cada um desses discos foi imitado à exaustão, mas nunca igualado por seus emuladores. E cada um desses discos, que neste 2011 completam 20 anos de lançamento, foram lançados por uma mesma gravadora: a Creation Records.

Paulatinamente, Alan McGee, o dono da Creation, vinha acertando uma série de home-runs no cenário indie britânico desde a segunda medida dos anos 80. Ele botou o Mary Chain no mapa (OK, os irmãos Reid só lançaram um single pelo selo, mas…). Ajudou a emplacar a Class of 86 lançando bandas como The Weather Prophets, The Pastels e The Bodines. E preconizou o shoegazing com discos como o já citado Isn’t Anything eNowhere, do Ride (que aliás ganhou uma linda reedição há pouco). Essa escalada culminou em 1991, o annus mirabilis da gravadora, com o lançamento dos três discos dos quais este post trata. Ainda que McGee tenha atingido, posteriormente, um sucesso comercial maior ao revelar o Oasis — quando o selo já pertencia à Sony Music — essa trinca sagrada uniu corações & mentes (e crítica & público) de uma forma insuperável. Loveless, Bandwagonesque e Screamadelica não são apenas três dos melhores discos da década de 90; são marcos que encerram uma era do pop britânico diante da “terra arrasada” deixada pelo grunge. O próximo suspiro só viria com a geração Britpop, reação sintomática à tosqueira importada de Seattle, mas que — sendo um movimento essencialmente revivalista — não seguiu o pensamento prafrentex da Class of ’91. Aliás, nem os próprios baluartes da Creation conseguiram seguir a linha que eles mesmos traçaram. O Teenage Fanclub faria, eventualmente, canções melhores do que as de Bandwagonesque. Mas iriam perdendo a faísca ao longo dos anos com o polimento incessante de sua fórmula. O Primal Scream, graças a Deus, não cabia em linha alguma, seguia num zigue-zague iconoclasta impossível de ser replicado. E o MBV… Bem, depois do bem documentado colapso físico e mental de Kevin Shields, a banda entrou em coma por quase 20 anos, enquanto dezenas de imitadores tentavam, sem sucesso, copiar seus timbres e climas.

Loveless é o manifesto definitivo do chamado (às vezes pejorativamente) indie guitar rock. A obsessão de Shields, que queria a qualquer custo registrar “os sons que ouvia em sua cabeça”, rendeu uma obra na qual esporro guitarrístico se convertia em beleza sinestésica. É quase possível “ver”, ou melhor, “ofuscar-se” com o “brilho” emanado pelas ondas de feedback de “Loomer”, “I Only Said”, “What You Want” e “Sometimes”. Por outro lado, o impacto da supracitada “Only Shallow” é literalmente físico (algo que, ao vivo, a banda levaria a extremos com sua versão rompe-tímpanos de “You Made me Realise”). A simplicidade das melodias e a impenetrabilidade dos vocais ampliavam o potencial de transe das canções: é fácil perder-se na hipnose induzida por “Soon”, “I Only Said” e — a mais radical de todas — “To Here Knows When”. Todas as guitarras do mundo parecem caber na barragem sonora de “Loomer”; não há ponteiro de V.U. que resista ao overdrive de “What You Want”; “Only Shallow” traz um ruído que já foi descrito pela revista Guitar World como “elefantino” . E apesar desses excessos, nada disso soa agressivo, e sim sedutor. Faça o teste: pegue uma canção, digamos,“I Only Said”, e concentre sua atenção apenas no melodioso assobio em loop que serve de “refrão” para a música. Aos poucos, o ruído guitarrístico perde o foco, se dissolve, e você mal consegue notar os decibéis e a dissonância. (Funciona melhor com bons fones.) Noise esculpido cuidadosamente para gerar encantamento… e dor de ouvido.

Também ruidoso e também encantador era Bandwagonesque, que, se não me falha a memória, foi o primeiro CD que comprei na vida, em 1994. (O original foi roubado e já substituído.) Só que enquanto o objetivo do MBV era a transcendência, não poderia haver banda mais pé-no-chão que o Teenage Fanclub. O segundo álbum do grupo (e, a rigor, toda a sua discografia) é a evidência de que, no rock, muitas vezes a qualidade (e a sinceridade) têm primazia sobre a originalidade. Não há coisa alguma no disco que não tenha saído diretamente da escola BBB (Beatles + Byrds + Big Star) de power pop. Mas todo o vanguardismo do mundo derrete-se diante do talento inegável dos três, eu disse três, compositores da banda. Norman Blake, Gerard Love e Raymond McGinley nasceram com O DOM. A equação é aparentemente simples: pegue canções pop perfeitas, gire o botão dos amplificadores até 11 e vambora. “The Concept”, “What You Do to Me”, “Alcoholiday”, “Starsign”, “Metal Baby”; não tem segredo nem na doçura das melodias, nem na sujeira das guitarras. Mas vai tentar fazer igual, pra tu ver. Os longos interlúdios instrumentais, recheados de solos qualquer-nota (influenciados por Neil Young, sem dúvida), complementavam a beleza dos refrões. Grand Prix, de 1995, é para mim o disco no qual o TF atingiu a perfeição. Mas o charme rústico de Bandwagonesque já havia esmaecido.

Já o Primal Scream vinha de um ponto de partida parecido com o do TF… e decolava rumo ao espaço. A banda de Bobby Gillespie, projetada no boom do rock regressivo, mirava vários alvos (jangle pop, riffões stonianos, garage rock sessentista) sem acertar em quase nada. Até que, em 1990, começaram a frequentar raves — e a colaborar com o produtor Andy Weatherall, que na base do corta-copia-cola-embaralha transformou a canção“I’m Losing More Than I’ll Ever Have”

em “Loaded”.

No gif: a molécula do MDMA (AKA ecstasy), a maior influência de ‘Screamadelica’

Screamadelica é o documentário aural do verdadeiro warp temporal que o grupo protagonizou naqueles anos. O PS modernizou seu som de forma radical, mas sem deixar de lado a obsessão com os anos 60. Há samples de Peter Fonda discursando, cover do 13th Floor Elevators, uma cítara riponga na foto principal do vinil. E tacou mais um monte de referências no caldeirão: kraut, dub, gospel, blues, Stones fase Exile, muuuuuuuita música eletrônica. Além de psicodelia de verdade, inspirada não mais pelo ácido lisérgico, mas pelos eflúvios da metilenedioximetanfetamina. Títulos como “Higher than the Sun”, “Inner Flight”, “I’m Comin’ Down” e “Loaded” não poderiam ser mais bandeirosos. Uma brigada de produtores (Weatherall, o duo The Orb, o stoniano Jimmy Miller, Hypnotone, Hugo Nicholson), mais uma brigada de convidados (incluindo o baixista Jah Wooble, do PiL) ajudaram a dar o(s) tom(ns). O terceiro disco do Primal Scream é daqueles raríssimos trabalhos que conseguem retratar todo o espírito e a cultura de uma época e, duas décadas depois, não soar nem um pouco datado. Cada single era uma surpresa. O balanço chupado dos Stones que move “Movin’ on up” não se repete no space lounge de “Higher than the Sun”; o groove chapado de “Loaded” não escorre para a beatitude radiante de “Come Together” (que só comparece no disco em sua versão mais longa, sem o vocal de Gillespie). Mesmo assim, há uma coerência interna que une não só essas canções, mas também serve de fio para outras viagens como a recriação ultradançante de “Step Inside this House” (do 13th Floor Elevators), a balada “Damaged” e a mastodôntica “Higher than the Sun (A Dub Symphony in Two Parts)”.

O paroxismo de inspiração que a Creation atingiu há duas décadas também deflagrou o processo de desmanche da gravadora. As cabriolas sonoras registradas em Loveless e Screamadelica custaram caro, a ponto de levar McGee perigosamente perto da falência. Sucessos no circuito indie, nenhum dos três álbuns citados neste post chegou a ser um campeão de vendas. As brigas constantes com Kevin Shields (que não entregava o disco nunca), os excessos químicos e a egotrip foram demais para a cabeça do chefe do selo, que se viu obrigado, em 1992, a vender o selo para a major Sony. A ironia das ironias é que McGee seria salvo pelo britpop. E logo pelo Oasis, que, de toda aquela geração, era justamente a banda que mais reverenciava o passado, contrariando o legado deixado por estes três discos.

O Teenage Fanclub tornou-se uma das mais amadas bandas indie do mundo. Mesmo fazendo discos cada vez menos marcantes. E eu deixei cair uma lagriminha furtiva quando eles tocaram “Ain’t that Enough” no Sesc Pompéia, em 2004. Kevin Shields conseguiu catar os pedaços de sua sanidade e levar o My Bloody Valentine a uma esporrenta turnê de comeback em 2008, depois de passar 13 anos longe dos palcos. Bobby Gillespie seguiu inquieto como sempre, pulando de rock retrô para o funk para a eletrônica para o blues… E quando menos se esperava, o filme sobre a história da Creation ganha uma exibição no Brasil, nesse festival aqui.

Foram 20 anos que passaram voando, né?

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)