O DIA SEGUINTE (ao golpe)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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6 min readJul 23, 2021
Palácio de La Moneda, Santiago do Chile, 11/09/1973

BRASÍLIA (URGENTE), 01/10/2022— A Polícia Federal, com o apoio de tropas de paraquedistas do Exército, cumpriu no início desta manhã mandados de prisão expedidos contra autoridades dos poderes Judiciário e Legislativo, bem como contra todos os candidatos à eleição presidencial a ser realizada neste domingo. Foram detidos, na capital federal, 9 dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, todos os ministros do Tribunal Superior Eleitoral e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Os candidatos à eleição — incluindo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder nas pesquisas mais recentes — foram presos em seus domicílios. Não foram divulgadas informações sobre a localização atual dos detidos.

Os mandados de prisão foram emitidos de forma sigilosa e seu teor está sob segredo de justiça. Fontes ouvidas pela reportagem indicam que a operação foi concebida no Palácio do Planalto, sob supervisão e orientação do presidente Jair Bolsonaro e dos ministros militares do Palácio. Segundo as mesmas fontes, as Forças Armadas estão em estado de alerta máximo em todo o país e são esperadas mais prisões ainda hoje, em todos os estados, inclusive de governadores. Um pronunciamento do presidente em cadeia nacional de rádio e TV está previsto para hoje; as fontes consultadas pela reportagem mencionaram um anúncio do cancelamento das eleições.

Vejam bem. Eu não entendo coisa alguma de política. Mas tendo a concordar com a percepção generalizada de que Jair Bolsonaro não tem condições de dar um golpe de estado. Pelo menos, não da maneira como ele gostaria. O golpe raiz, o golpe-arte, o golpe de várzea, o golpe à moda de Santiago do Chile safra setembro de 1973: tanques na rua, fechamento do Congresso e do STF, fuzilamentos.

“As coisas precisam mudar, para continuarem as mesmas”, escreveu Lampedusa. (Para quem prefere o similar nacional, há a famosa frase de Antonio Carlos: “Façamos a revolução serenamente, antes que o povo a faça pela violência.”) Golpe de estado, seja um autogolpe camuflado por manobras constitucionais, seja uma quartelada roots, nunca é um movimento unilateral. Para dar certo, a ruptura institucional precisa ser bem coordenada em várias frentes: o poder econômico, os meios de comunicação, as oligarquias políticas, as relações com outros países. Nada disso pode acontecer sem uma concertação ampla dentro do “sistema”, em reação a uma ameaça (real ou imaginária) de disrupção da ordem estabelecida. Um golpe bem-sucedido é dado para que as coisas mudem, de modo a continuarem as mesmas.

Daí vem a impossibilidade, ou ao menos a improbabilidade, do golpe prometido por Bolsonaro… já que ele é a própria ameaça ao sistema. Enquanto a governabilidade se esfarela e o país se afunda num colapso generalizado, a resposta do presidente é afirmar, dia sim, dia também, que vai virar a mesa: intervir no STF, cancelar as eleições, botar as “suas” forças armadas na rua. Mas falta combinar com os russos ainda, né.

Quanto mais a retórica antidemocrática de Bolsonaro se inflama, mais o “sistema” a rejeita. Ao menos da boca pra fora, as instituições que seguram as pontas da nossa democracia representativa sinalizam que não vão embarcar na onda golpista. Claro que as respostas variam na contundência — mais para panos quentes do que para confronto direto — mas a hipótese de uma frente ampla de apoio a uma ruptura constitucional inexiste (por enquanto, né). Cada editorial e cada coluna de opinião que criticam os desmandos do capitão reformando são um recado do “sistema”: Vossa Excelência já foi longe demais e é melhor parar por aí.

Olhemos os livros de história. Apesar de seus episódios de violência, a Revolução de 1930 foi precedida de intensas negociações políticas entre as oligarquias do café-com-leite e os insurgentes liderados por Vargas — que só prevaleceram depois de garantir o apoio de Minas Gerais. O autogolpe de 1937, que instituiu o Estado Novo, foi gestado junto à cúpula das forças armadas e às maiores fortunas do país. Uma receita seguida pelo golpe de 1964, que contou com ampla cobertura favorável da imprensa. O jogo estava estava combinado com os russos. As balançadas que a república sofreu em 1954 e 1961? Não foram definitivas porque faltou combinar tudo direitinho com todos os envolvidos.

Não se dá golpe sem combinar o jogo antes com a Fiesp, com a rede Globo, com a embaixada dos EUA, com a B3, com o agronegócio, com o Centrão, com o Judiciário, com os comandantes das FFAA, com os investidores internacionais, com os governadores, com as polícias Federal, Militar e Civil. Bolsonaro tem hoje a seu lado um bando de altos oficiais militares, parte das polícias, um punhado de empresários e parlamentares fascistas e um séquito de malucos disseminando maluquices nas redes sociais. Só com essa galera, não se dá um golpe bem-sucedido.

Mas nada o impede de dar o golpe assim mesmo.

Pode ser necessário mais que a proverbial dupla de um cabo e um soldado para fechar o STF. Mas não tenho dúvida de que se Bolsonaro quiser mesmo, conseguirá reunir um contingente armado suficiente para prender ou mesmo executar seus opositores, ao menos em Brasília. Contando com o apoio da AGU, da Polícia Federal cooptada e do ministério da Justiça, certamente ele poderia produzir inquéritos e mandatos que “justificariam” seus atos em termos legais. As intervenções nos estados seriam mais complexas, demandariam mais negociação, mas aí ele pode contar com um provável efeito dominó: vendo as primeiras prisões, alguns poderiam aderir ao golpe por conta própria.

Seria fácil criar um cenário como o descrito nos dois primeiros parágrafos deste texto. O problema, como sempre, é o dia seguinte.

Um golpe de estado é como um processo de impeachment: não se deve inicia-lo quando não se tem certeza de seu resultado. Dar o golpe — prender, fechar, decretar etc. — é só a primeira parte, a parte mais simples até. Mas como fica a cotação do dólar no dia seguinte? A bolsa cai ou sobe? O que a mídia vai dizer? Qual será a reação dos comandantes militares não-golpistas? As exportações vão sofrer? E o governo dos EUA, o que vai dizer? Teremos passeatas e mobilizações nas ruas? Os governadores de oposição vão ficar quietos? Enfim, como ficam todos os outros atores políticos e econômicos com os quais o jogo não foi combinado?

Vejam bem (de novo). A crença de que Bolsonaro não dará um golpe não reside na impossibilidade do fato em si, mas na certeza de que o golpe, uma vez dado, não se sustentaria. A questão é: e se ele der o golpe assim mesmo? E se ele não se importar com as consequências ou com a sustentabilidade do novo regime? Ou pior, e se ele acreditar que vai dar certo, apesar de todas evidências em contrário?

Golpes de estado frustrados têm consequências pouco previsíveis e diversas possibilidades de desfecho. Uma reação rápida e coordenada do “sistema” pode matar a insurreição antes que a bagunça se instaure de vez. Na pior das hipóteses, podemos ter um cenário de guerra civil, com governadores sem controle sobre suas polícias militares, milícias aproveitando a confusão para ocupar espaços e variados atos de terrorismo. Para quem se elegeu prometendo destruir o país, seria uma vitória e tanto.

Bolsonaro é notoriamente inepto em relação aos “dias seguintes”. O improviso freestyle é uma das marcas de seu estilo de desgoverno. Em sua mente limitada, incoerência e imprevisibilidade são sinônimos de assertividade e de capacidade de liderança. Sua missão declarada de “desconstruir muita coisa” nunca incluiu uma etapa de reconstrução posterior. O lema é “vâmo quebrar tudo e depois a gente vê como fica”.

Paranoico, impulsivo e teimoso, o capitão da reserva acumulou um notável número de apostas erradas desde que tomou posse. Apostou errado nas bancadas temáticas, na cooptação de Sergio Moro, no olavismo como política externa, na criação de seu próprio partido, na obsessão por uma fraude eleitoral que não consegue provar, na cloroquina. Devemos deixar apenas o bom senso (ou a falta do mesmo) guia-lo a respeito de um golpe fadado ao fracasso — ou esperaremos o dia seguinte?

Manchete sobre o golpe de estado fracassado de Hugo Chávez, em 1992

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)